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ReportagemDescubra se você é cybercondríaco
Busca excessiva por informações sobre doenças traz ansiedade e outros transtornos mentais
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Descubra se você é cybercondríaco
Busca excessiva por informações sobre doenças traz ansiedade e outros transtornos mentais
Que atire a primeira pedra quem nunca especulou sobre saúde no mundo virtual. Fenômeno típico da contemporaneidade, a cybercondria (do inglês, cyberchondria, sendo cyber referente à tecnologia e chondria, desordem obsessiva) é caracterizada pela busca excessiva de informações sobre doenças, que transcorre num quadro de ansiedade desproporcional, segundo o Dr. Ivan Mario Braun, psiquiatra e doutor em Medicina pela Faculdade de Medicina da USP. “Na cybercondria, a pessoa fica compulsivamente buscando informações, o que acaba levando a uma procura médica mais frequente e a uma hipervalorização dos sintomas“, acrescenta o profissional.
A automedicação também é consequência do problema – segundo o Conselho Federal de Farmácia, 77% das pessoas possuem esse hábito no Brasil, país que lidera o ranking mundial –, mas não é condição sine qua non para que a cybercondria seja diagnosticada (por um médico, de preferência). Existe uma linha tênue entre se consultar com o Dr. Google e efetivamente ser considerado cybercondríaco. “É algo que persiste por meses a fio, não é uma situação isolada, apesar de que isso já é um problema”, complementa o Dr. Ivan.
Observa-se uma dificuldade de conviver com o fato de que qualquer um de nós pode ficar doente
Pertencente à área da psiquiatria, a cybercondria é um fenômeno recente, do começo dos anos 2000, e por esse motivo ainda são escassos os estudos sobre o tema. De acordo com o Dr. Ivan, ela ainda não é um transtorno psiquiátrico classificado, por exemplo. “As pessoas que têm cybercondria são classificadas dentro de transtornos somáticos, de transtornos ansiosos, de TOC (Transtorno Obsessivo Compulsivo). Aí o tratamento é baseado no que você diagnostica na pessoa”, ele esclarece. Isso porque a raiz da cybercondria está fincada muito antes do advento da internet: na hipocondria. Ainda que o termo tenha sido banalizado ao longo dos anos e não seja raro uma pessoa fazer brincadeiras sobre a “mania de remédio” da outra, a hipocondria se caracteriza pela ansiedade e nervosismo em relação à saúde do corpo físico.
Pode-se dizer que a chegada do mundo online causou a cybercondria? Sim e não. “De alguma forma isso sempre existiu”, diz o Dr. José Toufic Thomé, psiquiatra e psicoterapeuta psicodinâmico, especialista em situações de crises e transtornos da contemporaneidade. A verdade é que a internet trouxe um novo elemento para as pessoas com potencial hipocondríaco. “A hipocondria encobre sempre um quadro de ansiedade e ligado a sintomas depressivos“, fala o Dr. Thomé. “Se eu tenho uma tendência, eu já tenho uma insegurança, um medo. Dentro do meu substrato já hipocondríaco, vai me gerar uma ansiedade, uma angústia maior. A cybercondria pode ser um elemento desencadeador de outras patologias”, ele exemplifica.
Para o Dr. Ivan, a abordagem comportamental é muito importante para o diagnóstico dos pacientes que chegam ao consultório. “Você observa uma dificuldade de conviver com o fato de que qualquer um de nós pode ficar doente. Dentro de um procedimento mais de psicoterapia, você tem que ensinar as pessoas a conviverem com as próprias inseguranças”, explica o profissional da saúde.
“Quem não sabe o que procura, não identifica o que acha”
A frase de Immanuel Kant é um dos lemas do também filósofo Antônio Pessanha Henriques Júnior, médico na Santa Casa de Cajuru, interior de São Paulo. Há mais de 40 anos atuando na área, e autor do podcast Diário de Um Cuidador, ele acredita no potencial da educação envolvida no contato médico – paciente, e como ela é importante para evitar a desinformação sobre as doenças. “Eu fico sempre imaginando que um profissional da área da saúde, principalmente um médico, tem que ser um educador”, ele diz.
Para o Dr. Pessanha Júnior, é papel do profissional não só o tratamento propriamente dito, mas a transmissão do conhecimento e o cuidado com o histórico pessoal de cada indivíduo. Segundo ele, a anamnese – que tem o bonito significado de lembrança, recordação – é uma das mais importantes etapas da consulta, pois é esse primeiro contato que permite ao médico conhecer mais detalhes sobre a vida daquele paciente. “A presença é fundamental”, ele destaca, acrescentando que, além de prevenir as doenças, é função do médico promover a saúde.
Nesse caso, a orientação para a observação do corpo é bastante relevante para que a pessoa tratada não desenvolva transtornos de ansiedade. “Eu moro nesse ‘endereço’, então eu tenho que conhecer esse ‘endereço’. Não preciso ser um técnico da área da saúde, mas preciso me observar. O que eu sinto, como eu estou, se está diferente do que eu esperava que estivesse. Aí sim, com essa dúvida, procurar alguém que possa te ajudar, e esse alguém é um interlocutor que não é o Google”, ele pontua.
“A internet é uma fonte de informação”, e agora?
Com essa frase, o Dr. Thomé admite que a disponibilidade das tecnologias atuais que compõem o uso da internet trouxe grandes avanços, mas também deformações. “Não vou ser fanático de viver só com isso”, ele reitera. Mas o veneno está na mesa. No mundo, são mais de 11 mil sites relacionados à saúde, apesar de uma pesquisa recente ter mostrado que nenhum é considerado “excelente” pelos usuários, de 37 a 79% são considerados “bons” e o restante é classificado como de “qualidade baixa”.
Ainda assim, enquanto no mundo mais de 90% das pessoas procuram informações sobre saúde online, no Brasil, segundo pesquisa do próprio Google, de 2019, 26% dos brasileiros recorrem ao site e ao YouTube, em primeiro lugar, na iminência de qualquer sintoma. Em pesquisa do ano seguinte, feita pelo Centro de Estudos sobre Tecnologias da Informação e Comunicação do Brasil, confirmou-se que 47% das pessoas buscam assuntos relacionados à saúde na internet, mas o número cai entre os idosos (39%) e nas classes DE (31%).
A quantidade de informações disponíveis hoje é mesmo infinitamente maior do que quando Eliana Macedo consultava o Aurélio e outros livros para entender o que se passava com seu corpo. Dona de uma curiosidade inata, considera que a internet trouxe facilidades, mas admite que, sem discernimento, a consulta feita sozinha, da cadeira de casa, pode agravar as dúvidas. “Existe um árduo e longo caminho de estudo e dedicação dos profissionais que, para o bem da nossa saúde, deve ser respeitado”, ela afirma.
Existe um árduo e longo caminho de estudo e dedicação dos profissionais que, para o bem da nossa saúde, deve ser respeitado
Além de priorizar endereços virtuais de profissionais da saúde e faculdades, ela lê as bulas nos sites dos laboratórios e gosta de consultar os laudos dos exames. “Como não tenho conhecimento necessário, entendo que no resultado da pesquisa se apresentam possibilidades que não necessariamente condizem com a minha realidade”, ela confessa. Aos 65 anos, entre as pessoas ao redor paira o medo de que se automedique, mas de tal reação adversa ela diz estar livre. “Meu intuito é apenas obter informações. E fazer perguntas pontuais, porque os médicos detestam que o Google participe da consulta”, brinca a aposentada.
Para a obtenção dessas informações, a orientação dos profissionais mais sérios é que elas partam de sites confiáveis, como aqueles associados a universidades, a associações médicas e a órgãos governamentais. Mas vale lembrar: nada de autodiagnóstico ou automedicação. Procure sempre um médico.
A cybercondria e os traumas atuais
Fato é que tanto a hipocondria quanto a cybercondria, como qualquer outro desarranjo de ordem psiquiátrica, também podem advir de traumas e a pandemia já se mostra como possível propulsora de novos casos. Além de as pessoas terem se isolado por necessidade ou por conta do trabalho remoto, lidou-se a todo o momento com a questão da finitude da vida, lembra o Dr. Thomé. “Nós vivemos uma ameaça concreta de adoecer e morrer. A pandemia nos colocou o tempo inteiro em confronto com a morte”, ele justifica um possível aumento da cybercondria no Brasil, ainda sem dados comprovados.
“Estamos vivendo uma incerteza, o que gera instabilidade emocional e acirra ainda mais esses sintomas que poderiam estar latentes. Coloca isso numa complexidade de fatores que a sociedade vive pressionada, então você vai entender a gravidade do que estamos vivendo”, ele contextualiza e acrescenta que, no consultório, o número de casos de cybercondria praticamente triplicou nos últimos dois anos.
Em um estudo recente realizado na Itália, mais de 40% dos entrevistados declararam ter sido muito difícil resistir ou parar de usar a internet para buscar informações sobre a saúde na covid-19.
Por falar no vírus propriamente dito, ainda que a população tenha contado com a disponibilidade de conteúdos confiáveis, como no próprio site do Ministério da Saúde e outros, o Dr. Ivan relembra a alta incidência de profissionais e influenciadores digitais publicando informações errôneas sobre a doença, com base em experiências pessoais e muitas vezes sem respaldo científico. Para ele, uma filtragem sistematizada poderia combater o desserviço e ajudar as pessoas a adquirirem um conhecimento prévio de qualidade, antes da consulta médica.
Integrante da classe médica, na prática, ele faz um apelo sobre a necessidade de um esforço conjunto para tratar os casos de cybercondria, dissolvida na forma dos mais diversos sintomas quando a pessoa procura um pronto socorro ou clínica médica. “Que os clínicos e médicos generalistas tenham a percepção que existe um problema psiquiátrico e encaminhem para um profissional. Muitas dessas pessoas são dispensadas, não vão procurar ajuda especializada e o sofrimento continua”, finaliza o Dr. Ivan.
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