Fernanda Staniscuaski fala sobre maternidade na área acadêmica
Qual o futuro da ciência?
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Isabela Durão

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Conversas

Fernanda Staniscuaski: "A maternidade não é considerada na grande maioria dos contextos acadêmicos"

Criadora de movimento que defende e propõe mudanças relacionadas à permanência de mães cientistas na academia pede uma reforma que “enxergue as nuances da vida dos pesquisadores”

Paula Miraglia 28 de Abril de 2024

Fernanda Staniscuaski: “A maternidade não é considerada na grande maioria dos contextos acadêmicos”

Paula Miraglia 28 de Abril de 2024
Isabela Durão

Criadora de movimento que defende e propõe mudanças relacionadas à permanência de mães cientistas na academia pede uma reforma que “enxergue as nuances da vida dos pesquisadores”

Ainda que haja um consenso sobre a importância da ciência para o desenvolvimento do Brasil, a carreira de cientistas enfrenta, hoje, uma série de desafios. Muitos deles associados ao apoio e ao financiamento da atividade de pesquisa, além de um mercado de trabalho pouco valorizado. Mais recentemente, outro tema vem ganhando espaço no debate sobre acesso, permanência e representatividade em se tratando particularmente das mulheres cientistas: o impacto da maternidade na carreira dessas profissionais.

A academia brasileira tem poucas formas consolidadas de apoio às mães cientistas. Não há um reconhecimento institucional em relação à maternidade em termos de licença, ampliação de prazos e condições distintas de trabalho. As consequências são inúmeras. Entre as mais importantes está o risco de afastar as mulheres de uma carreira onde elas têm feito contribuições extremamente relevantes.

Doutora em biotecnologia pela UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), Fernanda Staniscuaski, 43, tornou-se professora do departamento de biologia molecular e biotecnologia da mesma universidade, onde ela segue lecionando, depois de voltar de um pós-doutorado no Canadá. Com o nascimento do seu primeiro filho, em 2013, Fernanda passou a viver situações até então inéditas na sua trajetória profissional. A pesquisadora começou a receber negativas de apoio e financiamento e, pouco a pouco, viu suas oportunidades profissionais se restringirem. E a situação só se agravou com o nascimento dos seus outros dois filhos.

 Gustavo Diehl, Setor de Comunicação da UFRGS

Foi nesse contexto que, em 2016, a pesquisadora gaúcha criou o Parent in Science, um movimento que surgiu para ampliar o debate sobre o impacto dos filhos nas carreiras de mulheres e homens cientistas. A proposta é levantar dados inéditos, promover eventos e advogar por políticas públicas sobre o tema. Hoje, além de docente do departamento de biologia do Instituto de Biociências da UFRGS, ela se dedica às questões da parentalidade na ciência. Nesta entrevista a Gama, Staniscuaski fala sobre a forma como a maternidade tem sido tratada pela academia, os impactos para as mulheres, e como uma ciência mais inclusiva e que reconheça a diversidade tem muito mais potencial de impacto.

  • G |A falta de políticas de apoio para mães que trabalham tem sido apontada como um dos grandes obstáculos à progressão na carreira. Esse fenômeno se repete no universo acadêmico? De qual forma?

    Fernanda Staniscuaski |

    Com certeza. Essa questão das políticas de apoio ou, melhor, da falta das políticas de apoio se repete na academia. Começa pelas estudantes que são mães, que vão encontrar barreiras relacionadas à falta de creches, de escolas em turno integral, a falta de apoio dentro da instituição. Não há, por exemplo, uma lei que garanta licença-maternidade para discentes [alunos da graduação] de nenhum nível. Não temos uma lei ou uma regra geral que reconheça e abone faltas em função de doença dos filhos, ou acesso aos restaurantes universitários por parte dos dependentes. Então, se por acaso uma mãe precisa levar a criança para dentro da universidade (e a gente sabe que não é o ideal, mas, num contexto de falta de creches e escolas, isso acontece), muitas vezes a mãe não tem acesso ao restaurante universitário porque a criança não pode entrar, não pode se alimentar. Há uma inflexibilidade. Como, por exemplo, a falta de flexibilização de prazos em função da maternidade para essas discentes. Temos uma série de questões dentro da academia que vão impedir ou tornar a permanência das mães muito difícil. Quando falamos de pós-graduação, esbarramos na questão de não ter licença-maternidade reconhecida por uma lei ou por um regramento maior. Fica a critério de cada universidade. Aqui na UFRGS temos isso contemplado nas resoluções da graduação e da pós. Mas são poucas as universidades que preveem a licença em suas resoluções. Existe a Lei n. 13.536 que prevê a prorrogação dos prazos das bolsas, mas aí estamos falando apenas das bolsistas. Então, temos alunas sem o direito básico da licença. Isso vai influenciar o período de tempo de defesa [dos trabalhos finais], e os programas não querem isso porque é um dos fatores avaliados pela Capes em relação à pós-graduação. A maternidade não é considerada na grande maioria dos contextos acadêmicos. E a produtividade é avaliada sem considerar que vai, sim, existir uma pausa e uma queda nas métricas de produtividade. Porque, afinal de contas, a mãe está envolvida no cuidado. Vivemos numa sociedade onde quem cuida, exclusivamente, são as mães.

  • G |Há uma interface do tema da maternidade na academia com os debates sobre outras políticas de inclusão?

    FS |

    Estamos falando de diversidade. De gênero, de raça, de classe social, de pessoas com deficiência. Diversidade no sentido mais amplo que a gente possa pensar. Já sabemos que a diversidade contribui para a excelência da ciência e para inovação, então seguimos nessa luta, claro, com o nosso recorte da maternidade que é aquilo que a gente se propôs a enfrentar, mas é algo fundamental que seja feito.
    Com certeza há uma intersecção da maternidade na academia com o debate sobre outras políticas de inclusão porque a maternidade é um tema que vai atravessar as questões raciais, de classe social, vai atravessar as questões de pessoas com deficiência. Não tem como tratar a maternidade sem pensar nessas outras questões, e a gente não tem como tratar essas questões sem pensar na maternidade. Por isso é extremamente importante ter esse diálogo considerando todas essas interfaces.

  • G |De acordo com os dados do Currículo Lattes, as mulheres são maioria entre os novos mestres e doutores no Brasil: 72,7% mestrados e 53,1% dos doutorados foram concluídos por mulheres nos últimos anos. Como você interpreta esse protagonismo feminino?

    FS |

    Essa é uma análise geral. Temos um recorte muito grande de área de conhecimento que a gente não pode esquecer. Temos as exatas, as engenharias, as ciências agrárias. Nessas áreas, não se sustenta a questão de mais mulheres na graduação, no mestrado; elas já são minoria desde o início. Aí tem o outro extremo, com enfermagem, fonoaudiologia, em que temos basicamente mulheres. Daí, na média, temos esse número de mais mulheres na graduação e na pós. E tem um outro recorte que eu acho essencial, que é quem são essas mulheres. E a gente não tem os dados. Os dados disponíveis mostram, por exemplo, a participação muito baixa de mulheres negras, ou de mulheres indígenas e de mulheres que são pessoas com deficiência. Temos todos esses recortes que precisam ser considerados. É positivo que a participação das mulheres em diferentes áreas da ciência tenha aumentado. E isso talvez possa refletir em mudanças no futuro. Mas precisamos de uma análise bem criteriosa porque existem muitas nuances que não podemos desconsiderar.

Não é algo individual, é um problema muito maior do que ‘eu não vou dar conta’

  • G |Algumas pesquisadoras citam o apoio de outras mães cientistas como algo fundamental nas suas carreiras. Você teve essa experiência?

    FS |

    A questão do apoio de outras mães ou de outras mulheres é fundamental. Senti isso quando me tornei mãe e não vi essa discussão ao meu redor, não vi as pessoas dizendo “ah, realmente existe um problema”. Então comecei a internalizar e achar “eu não tô dando conta, eu não nasci para ser cientista, não sei lidar com minha maternidade junto com a minha profissão, com a minha carreira”. Internalizei isso e foi um momento muito complicado. Inclusive pensei “não vou seguir nessa carreira”. É fundamental a gente ter esse apoio. Primeiro para mostrar que não é algo individual, é um problema muito maior do que “eu não vou dar conta”. E há também a questão do entendimento, da empatia pela situação. A gente espera que todo mundo tenha empatia. Mas acho que quem passou por essas vivências talvez tenha um olhar um pouco mais atencioso e mais cuidadoso com aquela pesquisadora, com aquela aluna que está vivendo um momento parecido. Tem um caráter muito importante sobre a formação de redes, e eu acho que é uma das grandes contribuições do Parent in Science: deixar claro que é algo muito maior do que uma pessoa especificamente. A partir do Parent in Science temos várias redes que se formaram entre as pessoas das mesmas universidades, pessoas que acabaram se encontrando e que são da mesma área. Então foi algo muito fundamental. Acho que redes, não só das mulheres, não só das mães, mas redes de uma maneira geral são fundamentais, algo transformador para essas carreiras.

  • G |E qual o papel dos homens em um contexto de desigualdades como o que você descreveu?

    FS |

    Bom, os homens obviamente têm um papel muito grande em relação a essa questão de combater as desigualdades. Por várias razões, mas uma das principais tem relação com serem majoritariamente homens que estão nos cargos de gestão da ciência, da academia e da educação. Se eles não tiverem um olhar sobre as questões da maternidade, as questões de desigualdade social, racial, sobre as dificuldades e desigualdades que existem na academia, as mudanças vão ser muito mais lentas. A força de mudar vem sim da base, das organizações, dos movimentos e dos coletivos que demandam essa mudança. Mas, no fim, quem vai assinar o papel, promovendo alguma alteração, é quem está lá em cima. Então acho que essa é uma das principais contribuições. Precisamos dessa consciência de que ninguém está em busca de privilégios para as mulheres, como a gente escuta de vez em quando. A gente quer uma sociedade justa. E para isso, dentro da academia, vamos precisar mexer com estruturas. Isso só vai acontecer se as pessoas que estão em posição de poder, de tomada de decisão, se engajarem verdadeiramente nessa luta.

Ninguém está em busca de privilégios para as mulheres, a gente quer uma sociedade justa

  • G |Há algum tempo, o presidente do CNPq, Ricardo Galvão, afirmou que movimentos como o Parent in Science só atrapalham. Como vocês recebem esse tipo de crítica e por que o Parent in Science é importante?

    FS |

    Críticas ao movimento existem. O que precisamos entender é se essas críticas têm fundamento, se vêm de uma situação concreta que o movimento precisa refletir e melhorar. Sabemos que não somos infalíveis, temos evoluído e melhorado ao longo do tempo. Mas as críticas não podem ser vazias, no sentido de dizer simplesmente que a gente atrapalha por estar demandando uma reforma. Trabalhamos com essa questão de pensar em alterações no sistema, não só das bolsas de produtividade, mas como um todo. Isso para que os critérios de avaliação sejam justos, que levem em consideração os fatores da maternidade e todas as suas intersecções, como raça, gênero, classe social e tudo mais que deva ser considerado. Levantamos essa discussão há bastante tempo, produzimos dados para fomentar esse debate e fomentar o desenvolvimento de políticas de apoio. Então penso que seja inegável a contribuição do nosso movimento em relação a isso. Uma reforma no sistema como um todo é muito necessária, mas principalmente uma reforma que enxergue as nuances da vida dos pesquisadores, que vão influenciar nesse reconhecimento.

  • G |O que perde a sociedade, em diferentes frentes, ao não oferecer ferramentas suficientes para o desenvolvimento acadêmico e profissional das mulheres que também são cientistas?

    FS |

    A sociedade perde em diferentes instâncias. Primeiro, pensando na ciência, não temos mais dúvidas de que diversidade gera excelência e inovação. Se excluímos da academia uma parte significativa da população, perdemos em diversidade e, consequentemente, perdemos a riqueza de conhecimento que essa parte traria. Além disso, sabemos muito bem que educação é mecanismo de mobilidade social. Se a gente exclui as mães da educação superior e de melhores oportunidades profissionais, estamos impactando também as futuras gerações.