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ReportagemComo evitar brigas familiares nas festas de fim de ano
Discussões que acabam destruindo o clima festivo podem surgir de conflitos ideológicos ou rixas antigas; saiba como lidar melhor com esses momentos de tensão
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Como evitar brigas familiares nas festas de fim de ano
Discussões que acabam destruindo o clima festivo podem surgir de conflitos ideológicos ou rixas antigas; saiba como lidar melhor com esses momentos de tensão
Quase todo mundo tem uma lembrança do tipo. Uma festa ótima, repleta de familiares e amigos, mas que acabou deixando um gosto amargo na boca. Aquela discussão mais exaltada ou briga que explode de repente, para a qual fica até difícil entender os motivos. E assim, mesmo que depois passem panos quentes, pode ser que um único e breve momento consiga manchar a diversão de todo o restante da festa, permanecendo até o final um clima de morte.
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Quando esse tipo de coisa acontece, é comum achar que se trata de algo exclusivo do seu círculo familiar, mas não é bem verdade. Ocorrências como o exemplo acima são tão comuns que o jornal New York Times chegou a publicar várias dicas de leitores sobre estratégias para evitar dramas familiares nas comemorações de fim de ano.
Muita gente já teme esses grandes momentos de festa justamente pela certeza de presenciar cenas como essas. E, apesar de serem algumas das causas mais comuns hoje em dia, especialistas apontam que temas políticos ou sociais não são os únicos motivadores de conflitos. Por vezes, os reencontros após períodos consideráveis de tempo podem reacender antigas rixas e desavenças. Além disso, o consumo de bebidas — da cervejinha pura e simples aos drinques mais elaborados e mais alcoólicos — certamente não ajuda.
Mas por que a paz que deveríamos estar celebrando no Natal e Ano Novo não pode reinar absoluta nas reuniões de família? Na realidade, a festa de família em si já dispara uma série de conflitos internos, na visão do pesquisador e consultor em Comunicação Não-Violenta Dominic Barter. “Se eu fui criado dentro de um ninho familiar e saio dele, conquisto uma certa autonomia e uma diferenciação daquele contexto”, aponta o especialista. “Ao voltar, eu lido com esse desafio: quem sou eu? Aquele que cresceu e se desenvolveu com essas pessoas, que tinha algo em comum com elas, ou aquele que eu sou agora?”
Para ele, portanto, muita gente tem medo desses reencontros por nos forçarem a voltarmos a ser alguém que de fato não somos mais. Fora isso, Barter reforça que a saída do seio familiar pode gerar muita saudade, mas também várias satisfações: “Algumas das coisas a gente perde com gosto, porque existem mágoas, decepções e incompatibilidades, e a gente se livra delas.” Quer dizer, se livra ao menos até a próxima festa de família.
Nós temos um encontro desses uma vez no ano, vamos aproveitar para se curtir, conversar sobre as coisas que a gente gosta
A psicanalista e escritora Elisama Santos concorda que os rótulos familiares acabam enrijecendo nossos papéis sociais. Sem contar a carga emocional e as expectativas de estar em família, que fazem com que qualquer encontro acabe demandando muito mais de nós do que o habitual.
“Depois que a gente sai de determinadas formas, não consegue entrar mais. É como tirar um sapato muito apertado. Seu pé volta ao normal, e não consegue mais caber naquele sapato”, dá como exemplo. Outra questão é que, em família, não lidamos apenas com o momento presente, aponta a psicanalista. Há uma história bem mais antiga por trás de cada uma daquelas pessoas — “uma história muito longa e íntima, que faz com que esses encontros tragam muitas possibilidades de desentendimentos”, reforça a autora de “Educação Não Violenta” e “Por que Gritamos” (Paz & Terra, 2019 e 2020).
A psicanalista define como espirais de conflito essas brigas que vão escalonando, como se você fosse de fato sugado por seus sentimentos e tivesse as emoções momentaneamente sequestradas. Se começa como uma surpresa pelo outro ter uma opinião diferente da sua, em breve pode passar a ver o interlocutor como um imbecil. “A sua emoção aumenta, a dele também e uma vai crescendo de acordo com a do outro”, ela descreve.
Uma coisa que poderia ser muito centralizada numa dupla de pessoas acaba virando um problema familiar, porque tem outros assistindo e participando
Então encontrar familiares nessa maratona inevitável de fim de ano vai ser sempre uma tensão constante, terreno fértil para brigas? Não necessariamente. “Se eu sei que os meus familiares pensam diferente de mim, e eles também sabem, cabe um acordo”, sugere Santos. Ela se refere às pequenas tréguas, nem sempre verbalizadas, em que deixamos de trazer à tona assuntos difíceis, abaixando nossas armas momentaneamente em prol do bem comum.
“Nós temos um encontro desses uma vez no ano, vamos aproveitar para se curtir, conversar sobre as coisas que a gente gosta. Me conta como está sua vida, sua mãe, seu namorado, seus projetos, os seus sonhos”, diz a psicanalista. Muitas vezes, é assim que as famílias sobrevivem e até se divertem em meio a esse campo minado. “Vamos falar de coisas que nos aproximam, em vez das que nos distanciam.”
Passando a limpo
Só que algumas coisas são mais fáceis de dizer do que fazer. Até porque problemas de família são muito mais comuns do que parecem, apesar daquelas imagens sorridentes de encontros familiares pelas quais você passa toda semana no seu feed. Um estudo realizado por pesquisadores norte-americanos, por exemplo, aponta que quase um terço dos adultos tem pouco contato com seus pais e filhos, e só 28% se consideram engajados e em harmonia com a família.
A terapeuta de casais e família Paula Lutti destaca que conflito não significa briga. Porém, ela também considera que temos encontrado cada vez mais dificuldade em lidar com nossos conflitos — especialmente aqueles cara a cara, já que nas redes fica cômodo se esconder atrás de uma foto de perfil. “Vira um grande problema quando alguém quer ter razão ou não é escutado em um determinado contexto”, reflete. Para a terapeuta, o online tem deixado as pessoas ainda menos preparadas para esse tipo de situação.
Além dos tais acordos prévios, Lutti defende que outra estratégia possível é passar as pendências antigas a limpo antes que elas explodam durante uma festa. “Vamos sentar e resolver a situação difícil entre a gente antes de chegar nesse contexto, que vai acabar envolvendo outras pessoas”, indica.
A última parte do conselho dado pela terapeuta é outro dos grandes problemas das discussões em encontros familiares: elas raramente ficam restritas às duas pessoas que começaram. Quando a briga esquenta, pais, filhos, tios, primos e sobrinhos acabam tentando apaziguar ou até tomar um lado no conflito, diz a terapeuta.
“Então, uma coisa que poderia ser muito centralizada numa dupla de pessoas acaba virando um problema familiar, porque tem outros assistindo e participando.” Dependendo do nível e das implicações dessa discussão, os impactos podem até extrapolar a festa. “A gente ouve falar de muitas famílias que rompem em determinadas situações como essas e ficam muito tempo sem se falar”, conta Lutti.
Rituais de celebração
Brigas sempre deixam um gosto ruim, mas podem ser especialmente negativas em momentos de comemoração coletiva, que deveriam nos trazer sentimentos de pertencimento, fluidez e encontro, como aponta Elisama Santos.
“Se esses encontros culminam em brigas, em desentendimento, eu deixo de experimentar a maravilha que é celebrar em grupo, eu deixo de me sentir parte para me sentir excluída, marcada, dolorida”, a psicanalista reforça. “O que deveria ser um ritual de celebração da minha humanidade, que me torna melhor e mais capaz de lidar com o mundo, pode se tornar um ritual que me drena, que me adoece, me deixa com uma sensação ainda maior de inadequação.”
Se esses encontros culminam em brigas, em desentendimento, eu deixo de experimentar a maravilha que é celebrar em grupo, eu deixo de me sentir parte para me sentir excluída, marcada, dolorida
Até por isso, ela diz, existem famílias incapazes de oferecer esse pertencimento, o que faz com que muita gente saia para buscar esses rituais de celebração em outros ambientes. A psicóloga clínica e psicanalista Katrin Ariadnes, especialista em terapia de casal, afirma que a intensidade e o impacto emocional gerados por uma briga é que determinam se uma festa vai ser lembrada de forma positiva ou negativa.
“Uma discussão pode quebrar o clima positivo, ativar emoções negativas e criar ciclos de distanciamento”, afirma. Mas, segundo ela, uma briga não precisa ter apenas resultados prejudiciais. Também pode abrir novas portas, ressignificando uma relação familiar desgastada. “Podem ser oportunidades para aprendizado e crescimento, desde que sejam tratados de forma respeitosa e com disposição para resolver as diferenças.”
O olhar dos pequenos
Algumas das lembranças que este repórter guarda da infância têm a ver com brigas em viagens e festas de família. Nada muito exagerado, muito menos físico. No máximo alguns gritos para lá, rostos inchados de choro para cá e muita gente sem saber o que fazer no meio da troca de insultos. Os detalhes são um tanto difusos, também porque meus pais tratavam de me afastar da zona de risco logo que a coisa degringolava.
Porém, o curso mais adequado para a cabeça de uma criança que presencia uma briga provavelmente é uma conversa aberta sobre aquilo. “É sempre importante ajudar a criança a elaborar o que aconteceu. Quando a gente finge que nada aconteceu, deixamos que ela crie as fantasias dela sobre a situação”, declara Santos. “Se eu como adulto não auxilio a criança a interpretar aquela realidade, pode ser que essas fantasias a coloquem como culpada, como alguém que está errado na situação.”
Se eu como adulto não auxilio a criança a interpretar aquela realidade, pode ser que essas fantasias a coloquem como culpada, como alguém que está errado na situação
Por isso, a psicanalista orienta os pais a tentarem entender como a discussão reverberou nos filhos, se ficaram surpresos ou assustados. E sem xingar ou apontar dedos para quem participou da confusão. “Posso dizer que, nesse ponto, sua avó e eu discordamos, a gente vê a realidade de um jeito diferente. Aí a gente constrói essa elaboração da realidade de forma que o outro pensa diferente de mim, e eu não tenho que convencê-lo ou ser convencida por ele. Assim, a criança cresce com a capacidade argumentativa e de elaboração e compreensão de mundo“, explica Santos.
É difícil hoje lembrar como este repórter se sentia após as brigas vistas na infância. Ou mesmo o que os pais falavam após as discussões — alguns retalhos de memória indicam que era algo no sentido de apontar dedos. Mas os eventos desse tipo praticamente sumiram. Hoje, raramente encontro esse lado da família. Houve um rompimento definitivo, por conta de desentendimentos que se estenderam muito além do Natal e Ano Novo.
Métodos para exercitar a tolerância
O pesquisador Dominic Barter costuma viver uma situação tensa nos encontros com a família da esposa, pois tem uma visão de mundo bastante oposta à de muita gente ali. Nesses momentos, conta que ele, a mulher e a filha recorrem a uma estratégia para lidar com a situação. “Cada um tem pelo menos uma pessoa para quem pode ligar.”
Sim, em casos extremos, Barter sugere recorrer a alguém de confiança com quem se abrir, caso a barra pese demais. “Uma pessoa para quem eu posso ligar e dizer: estou precisando de uma pausa, preciso respirar, conversar com alguém que não está aqui”, acrescenta. Segundo o consultor, é uma forma de lembrar que não está isolado, que outras pessoas veem o mundo da mesma forma que você. “Às vezes nem precisa ligar. Só de saber que tem alguém ali já faz a diferença.”
Por outro lado, ele sugere que experimentemos conflitos e discordâncias com alguma frequência no nosso dia a dia familiar, e que busquemos expressar opiniões incompatíveis em certos casos, mas de forma saudável. “A família é o berço da nossa capacidade futura de viver democraticamente.”
Quando a gente vai para se mostrar, para competir, a chance de a coisa não ser boa também é grande
Maneirar na bebida, que acaba tirando inibições necessárias nesses momentos, e avisar quando alguém está passando do ponto são outras ações cruciais para evitar confrontos, na visão da terapeuta Paula Lutti. De forma geral, ela recomenda ir a esses eventos com um pensamento flexível e um ouvido bom para a escuta. “Quando a gente vai para se mostrar, para competir, a chance de a coisa não ser boa também é grande”, alerta.
Já Ariadnes, para além de evitar temas sensíveis, orienta a ficar atento a uma série de pequenas ações que podem impedir que o pior aconteça: não criar expectativas pouco realistas sobre os outros, focar no propósito daquele encontro e manter tanto limites saudáveis quanto a empatia — por si mesmo e pelos outros. Mas “não existe uma receita única de bolo ou mágica. Cada família é única e, através da prática e regulação emocional, podemos vivenciar os ganhos de uma boa relação familiar”, afirma.
Por fim, Barter faz questão de destacar que a tolerância nem sempre é bem-vinda, em especial quando relacionada a ações e falas que são inaceitáveis para você. Por exemplo, “se me atinge pessoalmente em algo com que me identifico de forma não negociável, como minha fé, minha sexualidade ou minha opinião política”, enumera o pesquisador. Nesses casos, ser tolerante com o que a outra pessoa faz e diz seria o mesmo que se submeter a um ponto de vista problemático, avalia. “No máximo, eu posso ser tolerante com o contexto, com o momento que estamos vivendo.”
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