Ninguém mais vai ficar velho?
A explosão de procedimentos estéticos e o medo de envelhecer criam a impressão de que o mundo está lotado de pessoas sem rugas, mas também sem identidade
Tá todo mundo ficando igual? Se você é usuário frequente de redes como TikTok e Instagram, já deve ter ouvido esse questionamento ou até foi tomado em algum momento pela impressão de que todas as celebridades e influenciadores que você segue estão se tornando estranhamente parecidos. Para não falar de quando algum deles surge quase irreconhecível após uma série meio indefinida de plásticas e procedimentos estéticos.
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Saiba que a sensação de que esse fenômeno está cada vez mais amplo não está errada e nem se resume à chatice de um punhado de usuários das redes. Na verdade, ela acompanha uma tendência global de aumento de procedimentos do tipo. Só nos últimos anos, a procura por procedimentos estéticos saltou 40% no mundo, segundo dados da Sociedade Internacional de Cirurgia Plástica Estética (Isaps).
Essa impressão pode ser ainda mais acentuada no Brasil justamente porque ocupamos o segundo lugar no ranking com mais procedimentos e cirurgias plásticas, atrás apenas dos EUA — foram cerca de 3,4 milhões apenas em 2023, de acordo com a Isaps. Entre os que não precisam de cirurgia, como preenchimentos ou peeling, a aplicação de toxina botulínica — sim, o botox, usado para reduzir rugas e linhas de expressão — ocupa o primeiro lugar disparado, segundo pesquisa da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica (SBCP).
“Algo que a gente acredita que esteja relacionado com esse aumento são as redes sociais”, aponta a cirurgiã plástica Roberta Maria Martins, da SBCP. “As pessoas hoje em dia veem influencers postando que fizeram procedimentos de face, corpo, glúteos, e isso dá vontade de fazer também. Sempre há aquele efeito comparativo.”
Conteúdo voltado para a estética é de fato uma das grandes molas propulsoras de redes como o TikTok, com novas tendências surgindo a cada semana, impulsionando vídeos, influenciadores e milhões de visualizações da noite para o dia. Algumas delas, a exemplo de métodos “caseiros” para ter lábios mais grossos ou uma recente injeção de pigmento para mudar a cor dos olhos, geram inclusive preocupações pelos riscos à saúde.
“Uma pessoa vê a outra e começa a replicar. A gente percebe no consultório, porque as pacientes já chegam falando sobre isso”, conta Martins, que é especialista em procedimentos faciais. Embora as mulheres sofram sempre mais com as pressões estéticas, ela revela que essa busca tem aumentado também entre os homens.
Se antes a procura era vista como preocupação principalmente de pessoas mais velhas em busca de controlar os avanços da idade, a médica afirma que muito mais jovens também têm passado por uma variedade de tipos diferentes de procedimentos. Além do medo de envelhecer, outra motivação bastante comum é a insatisfação com a própria aparência e a busca por traços mais adequados ao padrão de beleza que vemos diariamente em filmes, séries ou nas redes mesmo.
“Nunca foi algo agradável olhar no espelho e se sentir envelhecido”, considera Martins. “Só que, com o uso das redes sociais, a gente vai vendo outras pessoas — e a rede muitas vezes mostra o que não é real. Como tal pessoa envelheceu assim e eu estou me olhando no espelho dessa forma? Então, algo que já era doloroso ficou ainda mais difícil de lidar.”
Desigualdade para todos
Na visão da psicóloga Joana de Vilhena, um dos motivos para essa explosão no número de procedimentos estéticos e na busca por um ideal de beleza e juventude inatingível é o fato de vivermos numa cultura regida por telas e imagens, em que o valor de cada um está cada vez mais ancorado na aparência.
“Esse é um ponto de partida para a gente pensar sobretudo no corpo como um capital. Então as pessoas gastam tempo, dinheiro e se endividam, inclusive, para investir em procedimentos que visam aprimorar essa imagem corporal”, diz Vilhena, que é coordenadora do Núcleo de Doenças da Beleza da PUC-Rio e professora da pós-graduação em Psicanálise, Saúde e Sociedade na Universidade Veiga de Almeida.
Para você ter o corpo da moda, um marcador de inclusão social, é preciso outro marcador fundamental: a classe social
Isso não significa, no entanto, que as rugas, linhas acentuadas de expressão e outros elementos que caracterizam o envelhecimento tradicional estejam ameaçadas de extinção, pois, como reforça Vilhena, as plásticas e a maioria dos procedimentos estéticos continuarão inacessíveis para boa parte da população. “Adquirir uma boa aparência tem preço. Para você ter o corpo da moda, um marcador de inclusão social, é preciso outro marcador fundamental: a classe social.”
Numa sociedade profundamente desigual como a brasileira, embora ter o rosto ou o corpo considerado perfeitos seja uma conquista reservada apenas a uma elite social e financeira, a publicidade desse ideal impacta todos. “Não tem como desvincular isso de preconceito e todas as suas variáveis: exclusão social, machismo, de gênero, classe, raça, tudo”, aponta a especialista.
E essa desigualdade pode ficar ainda mais clara por meio do contraste gerado pelo envelhecimento. “Alguns perfis fazem isso. Colocam lado a lado duas pessoas da mesma idade: uma que envelheceu precocemente, por falta de recursos ou de acesso à saúde, e outra que fez botox ou algum outro procedimentos, dizendo que você tem opção de escolher como quer envelhecer”, conta a médica especialista em geriatra e gerontologia Andrea Prates, consultora em longevidade e bem-estar no envelhecimento. “Só que, na sociedade, não é bem assim.”
Fácil, extremamente fácil
Robert Pattinson, Aaron Taylor-Johnson, Henry Cavill. Esses são apenas alguns dos atores eleitos nos últimos anos como os mais bonitos “pela ciência” — na verdade, segundo cálculos relacionados à simetria do rosto. Pesquisas e notícias como essas constituem um exemplo de como a sociedade reitera constantemente a busca por um suposto padrão de beleza ideal, com todos os estereótipos e preconceitos que acompanham.
As gerações anteriores também cresceram com padrões estéticos martelados seja pela indústria de entretenimento ou pela publicidade. Mas só as mais recentes convivem desde cedo com o acesso irrestrito às redes e com a exposição a conteúdos do tipo todos os dias.
Se, por um lado, os jovens estão mais sujeitos ao sofrimento psíquico por questões como transtornos dismórficos corporais ou sintomas alimentares, muito alimentados pelas redes, por outro, eles ainda têm menos acesso a procedimentos estéticos por conta da pouca idade ou pela falta de recursos mesmo, explica Vilhena. No entanto, num momento em que as vidas real e online são cada vez mais uma só, a psicóloga diz que o uso de filtros e de inteligência artificial já é visto como forma de evitar conviver com o que consideramos defeitos na nossa imagem.
Você pode até não ter ouvido falar do termo, mas pesquisas também já mostram que a gerascofobia — o medo excessivo de envelhecer — tem atingido muitos jovens atualmente, o que pode impactar nessa necessidade de modificar a própria aparência desde cedo. “São fenômenos que estão aparecendo e nos mostram que a sociedade está doente”, reforça a especialista em longevidade e envelhecimento Andrea Prates. “A gente quer viver muito, mas tem um desejo de juventude eterna e um medo de envelhecer. Isso está na raiz do idadismo, que é o preconceito contra a idade. A gente rejeita a pessoa idosa.”
É uma coisa que a cultura do consumo te diz o tempo todo: você não precisa lidar com o defeito. Vai lá e troca por algo mais eficiente, mais moderno
Assim, vai se construindo já na juventude a ideia de que é simples e necessário alterar tudo aquilo de que você não gosta na própria aparência. Mais ou menos como acontece na lógica de consumo capitalista, diz Vilhena. “É uma coisa que a cultura do consumo te diz o tempo todo: você não precisa lidar com o defeito. Vai lá e troca por algo mais eficiente, mais moderno. A gente tem um valor de uso, e quando aquilo atinge uma certa obsolescência, você descarta”, reflete a psicóloga.
Em busca do equilíbrio
Crianças e adolescentes são naturalmente influenciados pelo ambiente social e buscam desde cedo se parecer, se vestir e se comportar como aqueles que admiram — algo que, com as redes, ganhou proporções inéditas, segundo a professora e pesquisadora de psicologia do desenvolvimento com crianças e adolescentes, Tauane Gehm.
“Essa exposição cria um contraste entre a ‘vida real’ e o ‘eu digital’, impactando profundamente a autoestima dos jovens”, afirma a especialista. “Muitos gastam horas tentando alcançar esses padrões irreais – pesquisando roupas, seguindo rotinas de exercícios exageradas ou tirando incontáveis fotos para postar a ‘melhor’ versão de si mesmos. Com isso, surgem sentimentos de inadequação.”
Por se tratar de um momento crucial para a construção da identidade e da autoestima, o bombardeio de rostos e corpos perfeitos — alguns de fato inatingíveis, já que nem pertencem a pessoas reais — pode distorcer a relação com a própria imagem, diz a psicóloga, desencadeando distúrbios como ansiedade e a busca precoce por intervenções estéticas.
Postergar o acesso de crianças e jovens às redes, além de educá-los para um contato mais saudável com esse tipo de conteúdo, fortalecendo sua autoestima desde cedo, são algumas das ações centrais para que os pais evitem distúrbios de autoimagem, segundo Gehm. “Esse estágio torna os jovens especialmente sensíveis a comparações sociais e à necessidade de aceitação externa.”
No caso de pacientes muito jovens, a cirurgiã plástica Roberta Maria Martins, representante da SBCP, reforça que é papel do profissional orientar e fazer uma avaliação médica cuidadosa, sem acatar simplesmente a vontade de pacientes que, ainda não têm maturidade suficiente para decidir. E também é crucial identificar se não há uma distorção relevante da autoimagem envolvida.
Quando põe foco demais nisso, tem também muito a ver com a forma como você constrói a sua vida. Será que você é só aparência física?
“Cabe a nós frear e ajudar aquele paciente na busca pela sua autoestima e melhora da aparência. Mas sem exageros que, às vezes, eles veem na internet e querem replicar no consultório”, complementa.
O mesmo vale para quem quer envelhecer com uma aparência que considera mais agradável. A chave é buscar demover o paciente de excessos que podem ser inclusive anatomicamente incompatíveis, diz Martins. E, para Prates, também é importante aprender a equilibrar essa centralidade exagerada da imagem durante todo o processo de envelhecer.
“Quando põe foco demais nisso, tem também muito a ver com a forma como você constrói a sua vida, a sua personalidade. Será que você é só aparência física?”, questiona a especialista em longevidade e envelhecimento. “Se a gente se despir dos preconceitos, começa a enxergar benefícios de se envelhecer e a ver o potencial que existe a partir dessas pessoas acima de 40, 50, 60 anos…”