4
ReportagemNão fale (bem ou mal) sobre o corpo alheio
Comentários a respeito da aparência do outro, sejam eles negativos ou elogiosos, podem causar um grande impacto psicológico, reforçar padrões estéticos inalcançáveis, gerar inseguranças e aumentar a insatisfação corporal
- @gamarevista
- beleza
- comportamento
- saúde mental
- sociedade
Não fale (bem ou mal) sobre o corpo alheio
Comentários a respeito da aparência do outro, sejam eles negativos ou elogiosos, podem causar um grande impacto psicológico, reforçar padrões estéticos inalcançáveis, gerar inseguranças e aumentar a insatisfação corporal
Não é raro que, em qualquer post banal nas redes sociais, famosas recebam chuvas de comentários sobre seus corpos, como se fossem peças físicas de domínio público disponíveis ao julgamento de todos. Maiara, Bruna Marquezine, Cleo Pires, Carolina Dieckmann e Paolla Oliveira, para citar apenas brasileiras, passam por isso com frequência. Dos pés à cabeça, nada escapa de elogios ou críticas — de fãs e de haters.
- MAIS SOBRE O ASSUNTO
- Ninguém vence na comparação
- O mito da beleza
- Não caia no projeto verão
Mas, não são apenas as celebridades que sofrem. Diariamente, milhares de mulheres anônimas vivem o mesmo tipo de exposição e avaliação não solicitadas de conhecidos, amigos, parentes e desconhecidos. “Nossa, quantos quilos você engordou?”; “Como ela está envelhecida, né?”; “Que magra! Por que não engorda uns quilinhos?”; “Gorda!”; “O que são essas cicatrizes?”; “Feia”; “Você está maravilhosa assim, magérrima”; “Quanta estria”; “Que pele flácida, que boca enorme”; “E essa barriguinha, hein? Está grávida?”. Essas são algumas das frases que ouvimos por aí.
Para além de exaltações, desaprovações ou, em um nível mais baixo, xingamentos — o tal do body shaming —, há um aspecto doloroso e invisível: o impacto psicológico que essas falas são capazes de causar.
Receba nossos melhores conteúdos por email
Inscreva-se nas nossas newsletters
Obrigada pelo interesse!
Encaminhamos um e-mail de confirmação
Análises de qualquer tipo sobre emagrecimento, curvas, ganho de peso ou até mesmo mudanças naturais, inerentes às fases da vida, como uma gravidez, a entrada na adolescência, o envelhecimento e a chegada da menopausa, podem reforçar padrões estéticos irreais e gerar uma lista de inseguranças.
Essa prática corriqueira não só dá força à ideia de que o valor de uma pessoa — sobretudo as mulheres, que são as que mais experimentam o escrutínio corporal público — está na aparência, mas também tem a capacidade de contribuir para uma distorção de imagem, o desenvolvimento de transtornos alimentares e comportamentos autodestrutivos, além de ampliar sentimentos de inadequação. Ou seja, mais do que uma questão individual, trata-se de um problema coletivo enraizado na cultura contemporânea e que ecoa e é amplificado por meios como Instagram e TikTok.
A ode à magreza
Segundo a psicóloga e psicanalista Patrícia Gipsztejn Jacobsohn, coordenadora da Ceppan (Clínica de Estudos e Pesquisas em Psicanálise da Anorexia e Bulimia), não sabemos como um comentário sobre o corpo alheio vai ser recebido pela outra pessoa. “A magreza é, muitas vezes, associada à felicidade e à beleza, mas pode mascarar um sofrimento psíquico intenso”, diz, em referência a lutos e doenças.
A magreza é, muitas vezes, associada à felicidade e à beleza, mas pode mascarar um sofrimento psíquico intenso
Mirian Bottan, jornalista e criadora de conteúdo, enfatiza essa perspectiva ao relembrar a própria experiência. “O transtorno alimentar se alimenta de ‘elogios’. Quando as pessoas elogiam a perda de peso, elas podem estar contribuindo com um comportamento adoecido. Às vezes, esse emagrecimento é fruto de práticas perigosas, como a indução de vômitos, a prática de jejuns extensos, o uso de diuréticos e a purgação, como era o meu caso.”
O transtorno alimentar se alimenta de ‘elogios’
Crianças e a percepção do corpo como problema
A nutricionista Sophie Deram, que coordena o projeto de genética do Ambulatório de Transtornos Alimentares do Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e é autora dos livros “O Peso das Dietas” e “Pare de Engolir Mitos” (Sextante, 2018 e 2024), aponta que enxergar o corpo como um assunto público e ligado apenas à estética começa cedo.
Isso porque, comumente, a criança aprende a observar e a avaliar corpos, o seu e o dos outros, com base nos comentários dos adultos, em especial os de casa. Enquanto deveriam explorar a funcionalidade desse conjunto de elementos físicos para correr, pular e brincar, passam a focar na aparência e, aos poucos, querem saber mais sobre quantas calorias têm determinados alimentos.
Deram destaca os efeitos dos comentários de familiares na autoestima infantojuvenil. “Há estudos que mostram que a insatisfação corporal infantil aumenta quando as crianças ouvem os parentes criticarem o próprio corpo”, alerta.
De acordo com ela, somente por escutar a mãe ou o pai falando estou gordo, estou gorda, preciso emagrecer; já que exagerei na batata, agora só vou comer salada”, os mais novos vão aprendendo a valorizar o corpo magro como um objetivo de sucesso e de saúde. “Essa pressão pelo corpo ‘perfeito’ e magro vai afetar a própria imagem corporal da criança”, sinaliza Deram.
A insatisfação corporal infantil aumenta quando as crianças ouvem os parentes criticarem o próprio corpo
A especialista explica que a sociedade se afastou totalmente da aceitação da natureza humana. “O que é o corpo natural de uma mulher? É um corpo que na adolescência ganha curvas e massa gorda. E ganhar massa gorda não é pecado, pelo contrário, é sinal de que o corpo vai adquirir massa para produzir os hormônios que farão a menina menstruar.”
Conforme ensina a profissional, se, na puberdade, as garotas não ganharem pelo menos 18% de massa corporal, elas não menstruam. “Hoje você vê nas academias alguns coaches orientando todo mundo a baixar a massa gorda a 10%, o que é um absurdo para a mulher. É incompatível com a fertilidade feminina, por exemplo, caso ela queira ter filhos”, comenta.
Para Deram, “essa visão errada que confunde magreza com saúde e com beleza prejudica muito tanto a saúde física quanto a mental”.
Envelhecimento e o mito da juventude eterna
Outro aspecto frequentemente negligenciado é o impacto que os comentários sobre a aparência têm em pessoas mais velhas. Patrícia Gipsztejn Jacobsohn menciona que o envelhecimento é visto como algo a ser negado e rejeitado. “Rugas são marcas do tempo e deveriam ser vistas como sinais de uma vida vivida, mas são tratadas como defeitos a serem corrigidos.”
Jacobsohn observa que, hoje, vivemos em uma fantasia do controle: do corpo, da fome, da forma corporal, do envelhecer. “Mas tudo isso escapa do nosso controle. E, da mesma forma que temos essa relação com o nosso corpo, temos com o corpo alheio. Como se o corpo alheio fosse, de fato, algo que nós pudéssemos nos apropriar. No entanto, o corpo do outro é puramente o corpo do outro. Ele não nos diz respeito”, frisa.
O corpo do outro é puramente o corpo do outro. Ele não nos diz respeito
Sophie Deram acrescenta que a pressão estética impacta não apenas a autoestima, mas também uma vida mais longeva e saudável. “Na menopausa, que é uma fase chata, quando os gostos e o corpo mudam e deveríamos receber acolhimento, é comum as mulheres tentarem recuperar uma forma que não é mais compatível com essa nova realidade. Isso, muitas vezes, leva a procedimentos radicais e ao uso de medicamentos que prejudicam o bem-estar e a saúde futura”, sinaliza a nutricionista.
A construção de uma relação saudável com o corpo
A influenciadora digital e estudante de educação física Ellen Valias, do perfil Atleta de Peso, defende que, para a construção de uma relação saudável com toda a diversidade de corpos existentes, é necessária uma reeducação social. “Precisamos desaprender a relacionar elogios à aparência e principalmente à magreza”, fala.
Assim, em vez de falar da barriga chapada ou dos músculos definidos de alguém como marcadores de beleza, podemos dizer: “Você é incrível” ou “Admiro a sua inteligência”. Esse tipo de reforço não nutre inseguranças e promove a autoestima alheia.
Precisamos desaprender a relacionar elogios à aparência e principalmente à magreza
Valias argumenta que na própria faculdade do curso que prepara futuros educadores físicos não há uma disciplina específica voltada para corpos diversos, o que é fundamental para combater a gordofobia e demais preconceitos no meio. Ela também acha essencial que, na escola, crianças sejam apresentadas ao diferente, uma forma de evitar o bullying e o body shaming.
A nutricionista Sophie Deram cita ainda que essa educação para o diverso deve passar por profissionais da saúde, já que uma parcela deles costuma relacionar doenças, antes mesmo de examinar clinicamente o paciente ou pedir exames laboratoriais, ao peso.
A influencer Ellen Valias salienta a importância da responsabilidade individual e coletiva. “As redes sociais podem ser ferramentas de mudança. Criar conteúdos que promovam reflexão e combate ao bullying é crucial”, conta.
A opinião das especialistas ouvidas pela Gama é unanimidade: a solução para a problemática que envolve comentários sobre o corpo dos outros passa por uma mudança cultural que realmente, e não apenas no discurso, valorize a diversidade e promova um olhar mais empático à pluralidade corpórea. Como sociedade, de acordo com elas, necessitamos aprender a enxergar além da aparência e reconhecer que cada corpo é apenas isso: um corpo. E que por trás de cada corpo existe uma história.
-
CAPA Qual é a sua vaidade?
-
1Reportagem Ninguém mais vai ficar velho?
-
2Depoimento Você é uma pessoa vaidosa?
-
3Podcast da semana Bruno Gualano: "O mundo fitness é individualizante e egoísta"
-
4Reportagem Não fale (bem ou mal) sobre o corpo alheio
-
5Bloco de notas Livros que debatem os padrões de beleza