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SemanaAperto e falta de acesso: a rotina de pessoas gordas em viagens
Os relatos são de preconceito e constrangimento, desde o assento do avião até o box do banheiro de hotel. No Brasil e no mundo, um movimento especialmente de mulheres pede mais acesso
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SemanaAperto e falta de acesso: a rotina de pessoas gordas em viagens
Os relatos são de preconceito e constrangimento, desde o assento do avião até o box do banheiro de hotel. No Brasil e no mundo, um movimento especialmente de mulheres pede mais acesso
Viajar nunca foi fácil para Pollyane Marques. Em 2007, quando a jornalista de 34 anos começou a fazer turismo sozinha, a internet e as redes sociais eram só mato — ou melhor, ainda não tinham virado a vasta gama de informações que são hoje. De forma inevitável, ela passou por alguns perrengues comuns para viajantes, como se hospedar em lugares pouco seguros, mas também por outros pelos quais não esperava: não saber se o banheiro do hotel teria um box de tamanho adequado para ela ou quantos lances de escada precisaria subir para chegar até seu quarto.
Mesmo quando informações e dicas de viagem começaram a pipocar por sites e blogs, faltavam aquelas voltadas especificamente para seu corpo. A jornalista, que diz ser gorda desde criança, nunca foi avisada sobre o constrangimento pelo qual passaria em situações simples, como ao tentar subir no segundo andar de uma beliche em frente a outros ocupantes de um hostel.
A filósofa Malu Jimenez, de 48 anos, passou por problemas parecidos. Ela conta que já teve que arrumar correndo as malas e se transferir de um hotel no Rio de Janeiro porque o box do banheiro era pequeno demais para seu corpo. “Por sorte, era uma rede de hotéis. Como, num lugar com mais de 200 quartos, nenhum deles tem um box maior?”
O ato de viajar é geralmente encarado como um momento de alegria e descontração. Infelizmente, essa realidade não é para todos. Segundo relatos de pessoas gordas que decidiram partir para o desconhecido, situações de constrangimento são comuns e podem levar alguns a desistir de se arriscar novamente pelo mundo. Desde o assento apertado do avião até problemas na hospedagem, da dificuldade de usar um biquíni ou sunga ao medo de aparecer em fotos, uma viagem pode ser fonte de tristeza e ansiedade para muitos. No caso das mulheres — que são as principais protagonistas desse movimento na internet — a situação é ainda mais desconfortável porque, além de haver um julgamento maior de seus corpos, sua fetichização leva ao medo da violência sexual.
O que não significa que homens também não sofram constrangimento. O comerciante Thiago Silvério, de 43 anos, é um exemplo. Durante uma viagem de avião para uma celebração nos EUA, teve que lidar com os xingamentos de um homem sentado ao seu lado, que reclamava por ele ter invadido seu espaço. “Foram muitas horas constrangedoras, porque não tinha um assento livre para onde pudesse ir. Poucas vezes me senti tão mal”, diz Silvério. Após a experiência, ele tomou a decisão de só viajar com um assento extra, mesmo pagando o dobro.
Medo e vergonha de perguntar
Em 2018, quando enfrentava uma depressão, Pollyane Marques recebeu uma sugestão da terapeuta: fazer algo que lhe desse prazer. Foi de onde surgiu a ideia de unir duas de suas paixões, as viagens e a escrita. Pensando em compartilhar suas histórias e incentivar outras mulheres gordas a se libertar, ela criou no início de 2019 o perfil de Instagram @viajagorda, onde compartilha suas experiências e dá conselhos e sugestões de viagem. Apesar de atualmente se resumir a fotos de viagens passadas, devido à pandemia, ela pretende voltar à carga assim que possível.
Para Marques, o problema se resume ao acesso. Num mundo ideal, ele deveria ser para todos. Como não é, o que resta é se preparar, ou seja, pesquisar com antecedência os mínimos detalhes da viagem para garantir que não haja surpresas desagradáveis. Hoje, ela tem por hábito questionar empresas de transporte e hotéis sobre os tamanhos dos assentos, camas e banheiros, assim como fazer uma extensa pesquisa sobre os lugares que vai visitar, evitando fazer um esforço além de suas possibilidades — como na vez em que, por falta de informação, passou mal ao escalar os claustrofóbicos 551 degraus que levam à cúpula da Basílica de São Pedro, no Vaticano.
Mas chegar a esse nível de esclarecimento não é tarefa simples. A jornalista recebe relatos frequentes de pessoas com vergonha de fazer perguntas. A própria Pollyane foi entender seus direitos como mulher gorda há cerca de quatro anos, e só no ano passado colocou em prática essa preparação, numa viagem que fez à Itália e ao Egito. “As pessoas te cobram como se você fosse uma máquina de respostas positivas. Mas é difícil, ninguém quer ir a um lugar com o estigma de que ‘a gorda está chegando.’”
A funcionária pública Beatriz Caixeta, 35, demorou seis meses planejando e se preparando psicologicamente para tomar coragem e fazer sua primeira grande viagem sozinha, para Salvador, em 2017. A morte de seu pai, no entanto, acabou adiando a ida para 2018 e fez com que ela resolvesse viajar anualmente na mesma data, como homenagem a ele.
“Dizem que é maravilhoso viajar, mas para pessoas gordas não é sempre assim”, conta ela, que é negra e também já sofreu racismo durante uma viagem, tendo sido confundida com uma funcionária dentro de um resort de luxo. Para Caixeta, a gordofobia e a pressão estética ainda são fortes em ambientes turísticos, o que acaba afastando pessoas gordas. “Se for para gastar dinheiro e passar por constrangimentos, muitos acham melhor ficar em casa.”
Ela critica a falta de informações específicas para pessoas gordas, que muitas vezes não sabem, por exemplo, que têm o direito de pedir um cinto extensor em viagens de avião. Hoje, porém, Caixeta afirma ter superado o receio inicial, perdendo a vergonha de perguntar, resultado de um trabalho de melhora da autoestima e aceitação do corpo. Antes da pandemia, ela vinha se aventurando pelo Brasil, para lugares como Socorro, no estado de São Paulo, e a cidade do Rio de Janeiro, viagens que tem documentado em seu perfil no Instagram, o @aondevaibeatriz.
Aperto no ar
No Brasil, assim como nos EUA, não existe uma legislação sobre assentos para pessoas gordas em ônibus ou aviões. O que há é uma resolução da Anac (Agência Nacional de Aviação Civil) que garante que, na compra de um assento extra para passageiros com necessidade de assistência especial, seu valor é de até 20% do preço original. Mas a medida não se estende a pessoas gordas em geral. No caso delas, o preço pode ser cobrado na íntegra.
Malu Jimenez, que é especialista em estudos do corpo gordo feminino e criadora do projeto Lute Como uma Gorda, diz que, enquanto as pessoas têm engordado, os assentos em aviões vêm diminuindo, para fazer caber cada vez mais gente. Isso leva pessoas gordas a ocuparem espaços para além de seus bancos, incomodando e levando a olhares tortos de outros passageiros. Com vergonha de pedir um extensor de cinto, alguns passam a viagem inteira sem ele. Outro receio são as minúsculas dimensões dos banheiros de bordo, que em alguns casos nem permitem sua entrada. “Apesar de tudo isso, a sociedade acha que a culpa é nossa. As pessoas te olham com raiva em vez de entender que quem está errado é a companhia, que deveria fazer espaços adequados para todos”, diz Jimenez
Um projeto de lei atualmente em tramitação no Senado, porém, pode mudar esse cenário. De autoria do senador Romário (PODEMOS-RJ), a proposta proibiria a cobrança extra para pessoas gordas em meios de transporte e eventos culturais, mesmo com o uso de um segundo assento.
Não só existir
Ao longo dos últimos quatro anos, a escritora americana Annette Richmond, 35, viajou bastante pela Ásia, onde, segundo ela, falar do peso alheio é muito menos tabu do que no Ocidente. Nas ruas, enfrentou olhares espantados, passantes apontando e risadas de escárnio, mas tenta manter uma visão positiva.
Um acontecimento emblemático se deu na Tailândia, ao entrar num restaurante. Assim que a viu, uma atendente fez um gesto com as mãos, indicando que Richmond era grande e precisaria aguardar. Após uma longa espera, durante a qual vários clientes passaram a sua frente, ela já ia se preparando para deixar o local quando percebeu uma movimentação diferente. A funcionária começava a limpar uma mesa, ladeada por bancos de madeira.
“A maioria das cadeiras era de plástico. Só então percebi que ela estava esperando vagar um banco estável o suficiente para suportar meu peso. Apesar de todas as merdas que já falaram e fizeram para mim, sempre penso nessa moça que tentou me ajudar. Isso me lembra que ainda existem pessoas procurando cuidar umas das outras.”
Richmond é autora do perfil de Instagram @fatgirlstraveling, que reúne imagens e histórias de pessoas gordas viajando pelo mundo, e foi criado para romper a bolha de canais de viagem mantidos por pessoas com aparência dentro dos padrões, geralmente magras e brancas.
A criadora de conteúdo americana Marcy Cruz, membro da diretoria da Naafa (associação americana pelo avanço da aceitação de pessoas gordas), defende que estabelecimentos e companhias de transporte se adaptem a todos os tipos de corpos se não por uma questão social, como oportunidade de lucrar. Hoje, mais de um terço da população mundial adulta está acima do peso, segundo a OMS, fatia de consumidores essencial para qualquer empresa.
Cruz também passou pessoalmente por situações de constrangimento em viagens. Chorou quando um casal pediu para sair de seu lado no avião e chegou a levar uma cusparada de um passageiro numa viagem de ônibus.
“Mesmo com os problemas, devemos continuar lutando para mostrar que somos dignos não apenas de existir, mas de viver. Afinal, somos todos pessoas, só viemos em tamanhos diferentes.”
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CAPA Pode viajar?
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