Como é ser pai e mãe de um filho, filha ou filhe LGBT — Gama Revista
Orgulho de quê?
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Depoimento

Mães e pais cheios de orgulho

Preocupação e até medo estiveram na primeira reação, mas depois um amor supremo trilhou a nova fase da relação de famílias LGBTQI+. Leia relatos de pais e mães sobre um dia marcante na relação com os filhos da comunidade

Isabelle Moreira Lima 28 de Junho de 2020

Mães e pais cheios de orgulho

Preocupação e até medo estiveram na primeira reação, mas depois um amor supremo trilhou a nova fase da relação de famílias LGBTQI+. Leia relatos de pais e mães sobre um dia marcante na relação com os filhos da comunidade

Isabelle Moreira Lima 28 de Junho de 2020

Todos eles sentiram preocupação em um primeiro momento. O mundo, afinal, não é bolinho — há muito, mas muito preconceito, que pode vir em forma de violência física extrema. Pois se tem uma coisa que todas as mães e pais ouvidos pela Gama concordam é que há um medo de que o filho sofra. Esse medo não é descabido, afinal uma pessoa LGBTQI+ morre a cada 26 horas no Brasil, de acordo com dados recolhidos pelo Grupo Gay da Bahia em 2019.

Alguns demoraram para entender, mas no final o amor venceu e pais e mães de filhos da comuniade LGBTQI+ se orgulham de ter a família diversa que têm. Essa diferença trouxe ensinamentos para dentro de casa e crescimento pessoal.

A seguir, você lê histórias de mães e pais que são a expressão viva do orgulho comemorado em 28 de junho. Eles contam momentos marcantes vividos com x filhx LGBTQI+.

  • 1

    ‘Uma oportunidade de recalcular nossas rotas e crescer’

    Cleuza Vilas Boas, educadora, mãe de filhas gêmeas, hoje com 31 anos
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    “A orientação sexual nunca foi uma questão, até porque trabalho com educação. Sempre tive muitos amigos homossexuais, dos quais sempre me orgulhei muito. Quero que meus filhos sejam felizes, que tenham autoestima fortalecida, que sejam seguros de si, empáticos, éticos. Nunca me preocupei com estereótipos.

    Quando minhas filhas tinham 19 anos, achei uma delas muito triste, percebi que estava sofrendo. Entrei no quarto, perguntei e ela contou. Minha primeira reação foi perguntar se ela tava sofrendo com isso, se havia algum tipo de preconceito. Foi uma reação muito ligada a medo porque sempre soube que estamos numa sociedade que ri de piadas homofóbicas, que não se mobiliza para repudiar, que deprecia a comunidade. Muitos setores da sociedade ligam LGBTQ+ à promiscuidade.

    Minha segunda reação foi com a segurança física. As pessoas incentivam a violência, ‘dar surra pra virar homem’.

    Minha outra filha já tinha 21 anos quando me chamou um dia e me contou, eu nem precisei perguntar. Mas isso já era algo muito comum, muito falado na minha casa.

    Imediatamente, eu, meu marido, minha mãe, meu pai, falamos ‘a gente ama vocês, o importante é que sejam éticas, seguras, generosas, que sejam capazes de amar e de ser amadas’. Tivemos a preocupação de acolhê-las, pensando no sofrimento que aquele que não corresponde ao que a sociedade espera sente.

    Foi um exercício importante. Os filhos dão uma grande oportunidade de recalcular nossas rotas e crescer como pessoas. Meus filhos têm amigos cujos pais não aceitam, e eu vejo o quanto sofrem com o desprezo. Pra mim, são pais egoístas, autocentrados, incapazes de amar genuinamente. Amor não tem uma lógica narcísica. Você só ama aquilo que é seu espelho, que é extensão de si mesmo, aquilo que idealizou? Os pais precisam se relacionar com os filhos com alteridade — o filho é o outro, diferente da gente. Esses filhos nos convocam a pensar sobre crenças e valores que foram incutidos, a repensar nossos propósitos. Cuidar dos filhos é cuidar do nosso futuro.”

  • 2

    ‘Larguei tudo e vim abraçá-lo’

    Isabel Dias, escritora, mãe do jornalista e também escritor Chico Felitti
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    “Não soube por ele, mas pelo pai dele. Caiu o mundo na minha cabeça, não pelo fato de ele ser gay, mas por eu não ter percebido e abraçado o tempo todo. Ele deve ter sofrido pra caramba. O que foi a adolescência, numa cidade de interior supertradicionalista? O quanto esse menino deve ter sofrido e eu como mãe não senti? Eu não tava lá pra abraçar. Eu falo com você e meu olho enche de água. Ser gay, pra mim, nunca foi o problema. Problema era o ambiente em que a gente vivia. Eu sou do interior, na minha geração, praticamente, nós não tínhamos amigos gays porque ninguém se assumia. Eu sentia um pouco que o Chico, dentro da nossa sociedade, ali do clube, seria rechaçado como todo gay era. O mundo mudou muito, de 15 anos pra cá, graças a Deus. No dia em que soube, peguei o carro e vim embora pra São Paulo, onde ele já morava. Larguei tudo e vim abraçá-lo, como se aquele abraço pudesse compensar todos os que fiquei sem dar por ignorância. Abraçava, chorava e pedia desculpas. Não era ele gay, era eu ausente. E aí eu falava assim ‘bom, o que eu posso fazer pra compensar?’ Mas não tem compensação. A vida vai dando essa compensação, de me aproximar dele e saber mais, estar presente.

    A nossa relação é maravilhosa. Ele foi abrindo um monte de portas e janelas pra mim. Filho ensina muito, ainda mais um filho que luta. Ele vai lá e bate na mesa: eu sou eu e dane-se o resto. Isso é muito importante.”

  • 3

    ‘Cheguei a sugerir que fosse freira’

    Marcos, engenheiro e professor, pai de Theo, estudante de psicologia, 21 anos
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    “Vivemos essa história desde que ele era criança, foi um processo longo. A expectativa [que se tem com um filho] é muito grande. Você fica com saudosismo do que esperava. Mas há uma pessoa ali e o mais importante é o que ela é, o amor, a parte mais espiritual. A gente conversa bem sobre isso, sobre tudo.

    Quando era criança, ele gostava de brincar com os meninos e a professora não deixava. A gente reclamava. Eu percebia que não tinha interesse em namorar meninos, a gente achava que era uma fase. Eu comentava muito com a minha mãe, que é de outra geração ainda, e a aceitação dela foi imediata. Isso me ajudou. Achei até que tivesse influência do irmão mais velho, porque jogavam bola juntos. Cheguei a falar que deveria ser freira — hoje dou risada. Na hora, você começa a inventar um monte de ideias.

    Mas, no final das contas, meu pensamento sempre foi positivo, de apoio incondicional. Teve um momento em que não se sabia exatamente o que seria. Nessa época, aos 14, na formatura do ensino fundamental, teve uma coisa muito esquisita, que foi fazer a formatura de uma maneira extremamente feminina. Mas depois viu que não era isso que queria mesmo. Temos a mudança registrada de A para Z. Foi um processo longo, desde os 12 anos até os 20 anos. No dia em que ele quis fazer a cirurgia nos seios [mastectomia], eu dei meu apoio financeiro e emocional. Eu e minha esposa sempre estivemos juntos nessa.

    Hoje gosta de fazer musculação, está forte, barbudo. Tem uma namorada, que é trans também. Foi a primeira a sério, e já estão casados, foi bem rápido, um entendimento grande.

    [Ser trans] não é problema; problema é a visão da sociedade. Eu fico pouco a vontade em ambiente em que as pessoas têm pouca aceitação. Mas, para você ter uma ideia, o Theo já jogou bola com bolsonaristas, pessoas altamente conservadoras. Ele é uma pessoa muito informada, faz psicologia, explica tudo para todo mundo — e fica bravo quando a gente fala alguma coisa errada. O Theo é muito inteligente, tem resposta pra tudo e é calmo. Levava bem as situações de bullying, sabia guardar um pouco, não estourava. Sempre foi controlado.

    A coisa que mais me marca muito é que ele, quando era Stella e agora que é Theo, sempre foi muito feliz, sempre sorrindo. Teve momentos difíceis, sofridos, mas foram pequenos diante da felicidade que tem dentro de si. E hoje sei que é realizado.”

  • 4

    ‘O importante é apoiar’

    Eduardo Barbosa de Oliveira, arquiteto e pai de Paulx Castello, performer, 30 anos
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    O Paulx, desde criança, sempre mostrou algo diferente. Sofreu muito bullying na escola. Eu fazia terapia com ele e, na terapia, descobrimos coisas, vimos mudanças. Primeiro, ele achava que era bissexual. Depois mudou de ideia, achou que era homossexual. E, aos poucos, foi entendendo o que sentia e passou a agir do jeito que queria. Ele sempre foi muito corajoso.

    No ginásio, ele ia com umas roupas afeminadas e todo mundo gozava dele. Mas ele não deixou de ir à escola, era persistente. E aguentou isso durante muito tempo. A gente apoiava, a mãe dele apoiava muito, e eu mais de longe também. Nunca teve nenhuma restrição na casa da mãe nem na minha. Fui descobrindo o que ele queria e aceitei numa boa, a vida era dele e que ele pode fazer dela o que ele quiser. Não sei bem se isso é entender; fui respeitando e apoiando.

    O importante é apoiar. A vida dos filhos é dos filhos, não é dos pais. Eles têm que fazer o que eles quiserem. A obrigação dos pais é ajudar que alcancem seus objetivos, seja de que área for. Tem muito pai que fica chocado, triste. O que eu posso sugerir é sair do próprio corpo e ver o que os filhos estão fazendo, querendo e decidindo para a própria vida. Não tem porque ficar chocado, triste ou magoado.

    Hoje não nos vemos muito, ele tem o trabalho dele, mas estou sempre pronto pra ajudar. Agora na pandemia, a gente veio pra Ilhabela, trouxemos os dois cachorros dele pra ficarem aqui, pra ele poder trabalhar mais tranquilo. Já estamos há 90 dias e nesse fim de semana vamos levar cachorro pra matar saudades dele. A gente ajuda no que a gente pode, apesar de não se ver toda semana. Ele é artista, tem produtora de vídeo, é ator, faz eventos, performance, e as vezes ele convida a gente e nós vamos. E é gozado porque a gente vai e é um meio diferente. E todo mundo vem falar com a gente, dizer que queria que meu pai fosse que nem você. Eu fico superemocionado. Muitos LGBTQ+ saíram de casa porque os pais não aceitavam. Tem muita gente triste sem o convívio dos pais.”

  • 5

    ‘Só falta trazer o boy pra eu conhecer’

    ‘Andrea Ramos dos Santos Costa, faxineira, mãe de Gabriel, maquiador, de 21 anos’
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    “O Gabriel sempre foi um menino mais afeminado. Nunca quis admitir, nem pra mim mesma, mas eu sabia que ele era gay desde criança. Quando ele tinha quatro anos, fui chamada na escola, as outras crianças estavam tirando barato. Quando foi crescendo, trazendo amigos pra casa, todos eram LGBT.

    Deus prepara a gente direitinho e em algum momento da minha vida ele me falou que ia me colocar no meio [da comunidade LGBTQ+] porque eu ia precisar ter uma orientação. Eu sou diarista e comecei a trabalhar na casa de um gay. Daqui a pouco, nos cinco dias da semana, se não era um gay, era uma lésbica. Meu marido é super machista e a minha cabeça também era fechada. Mas consegui perceber que o meio em que o Gabriel vivia era totalmente diferente do nosso.

    Eu perguntava ‘você é gay’, e ele dizia ‘não sou’. Eu, como mãe, tentava me enganar. Quando aparecia amiga do Gabriel aqui em casa, eu achava que podia ser namorada. Ele sempre deixou bem claro que era diferente, mas não se assumia. Até que um dia, com 18 para 19 anos, ele pediu para usar o meu celular e deixou o Instagram aberto. Começou a chegar mensagem e quando olhei tava tudo exposto — claramente ele era gay. Passei a noite toda chorando, não consegui dormir, e fui trabalhar pela manhã.

    No fim do dia, conversamos. O Gabriel disse que não me contou por medo da reação. Disse que não tinha pedido pra ser assim, mas que era assim. Falei que estava com ele pro que desse e viesse e que ele jamais abaixasse a cabeça.

    Meu marido ainda não sabia. Chegou um dia em casa contando que viu dois homens se beijando no metrô, ‘que absurdo’. Fui cara de pau e disse que ele tinha que respeitar, falei na lata ‘teu filho é gay’. Eu já estava cansada: o Gabriel começou a trabalhar em uma loja de maquiagem e chegava maquiado em casa. Meu marido chorou, mas disse que jamais ia abandonar um filho.

    Hoje o Gabriel mora com a prima, que é lésbica. Vivem a vidinha deles, numa casa toda direitinha. Eu falei pra ele que só falta trazer o boy pra eu conhecer. Eu não tenho vergonha nenhuma dele, sempre foi um bom menino, sempre esteve perto de mim, me ajudou. Ele é tudo de bom, se todo filho fosse como o Gabriel, o mundo tava perfeito.”

  • 6

    ‘Ninguém pode se meter’

    Nilza das Dores de Assis, empregada doméstica, mãe de Daniel de Assis, 24 anos, arquiteto
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    “Ele chegou um dia e contou. No começo, é difícil assimilar. Mas com o tempo aceitei. Ele tinha 20 anos e eu nunca tinha percebido nada. Até então ele tinha amigas da escola, viviam saindo. Assusta no começo, né? Ele é filho único, moramos juntos. E não mudou nada na nossa relação, na convivência. Somos bem próximos. Acho que a base de uma boa convivência é o respeito. A única coisa que espero dele é o respeito. [A orientação] é uma coisa que não dá nem pra interferir. Brigar, expulsar de casa, não resolve.
    Tem muitos que não se resolvem direito e querem sair de casa pra fugir da questão. Mas não é por aí, não é fugindo da situação que você resolve. Se você assim, você tem que encarar.

    No começo foi estranho. É uma situação que eu não sei te definir direito. Você pensa nas coisas que vão acontecer, a discriminação que ele pode sofrer, porque tem até firmas que não admitem funcionários que são gays, existem agressões. E você fica pensando em tudo isso. Me preocupei, fiquei temerosa. E se ele revidasse? Nesses casos, muitos são mortos, levam tiro, ficam em cadeiras de roda. Nem todo mundo aceita. Estamos num país cheio de preconceito. Mas o Daniel é calmo, não é nem muito de balada.

    Desde que se assumiu, ele foi aceito por todo mundo da família. Isso foi uma coisa importante. Todo mundo acredita que desde que se respeite não tem problema nenhum, a vida sexual, cada um tem a sua, ninguém pode se meter.”