Pirataria digital, TV Box e o acesso à cultura — Gama Revista
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Pirataria digital e cultura

Marilene Felinto escreve sobre  a relação entre acesso à cultura e o bloqueio de aparelhos de TV Box não homologados pela Anatel. “Não ganhariam em audiência as corporações midiáticas somando tanta gente a suas plataformas?”

Marilene Felinto 04 de Junho de 2023

Pirataria digital e cultura

Marilene Felinto escreve sobre  a relação entre acesso à cultura e o bloqueio de aparelhos de TV Box não homologados pela Anatel. “Não ganhariam em audiência as corporações midiáticas somando tanta gente a suas plataformas?”

Marilene Felinto 04 de Junho de 2023

A pirataria cultural digital via TV Box é resistência à concentração abusiva dos meios de comunicação nas mãos dos grandes conglomerados de mídia e tecnologia, empresas que têm no lucro único fator de decisão para liberação de acesso a seus “conteúdos”.

TV Box pirata é rebelião pelo direito de usufruir das Netflix, Disney, YouTube, Globoplay, Prime Video, canais por assinatura, etc. – não de graça, mas sim a um preço que as classes pobres pudessem pagar.

A TV Box pirata é a exata consequência da guerra de classes: protesto contra a exorbitância do valor cobrado pelo acesso a sinal de TV paga e a plataformas de streaming. É revolta contra a carroça da TV aberta, principal meio de informação e entretenimento disponível gratuitamente aos trabalhadores pobres.

Desde fevereiro último, a Anatel (Agência Nacional das Telecomunicações) deflagrou o que chama de “guerra” para acabar com a pirataria digital, isto é, a desativação remota dos servidores clandestinos que fornecem sinal aos TV Box piratas, aparelhos que, desse modo, recebem conteúdos sem pagar nada.

Estima-se em 7 milhões o número desses aparelhos espalhados país afora, e em 20 milhões o número de pessoas que se beneficiam deles. É muita gente, dois países do porte de Portugal quando considerado esse montante de consumidores.

Mas a Anatel, uma entidade pública, agência reguladora, controladora e fiscalizadora, à qual cabe inclusive controlar tarifas de serviços de interesse público transferidos para o setor privado por intermédio de concessões, opera na lógica do privilégio, a serviço da exploração praticada pela classe dominante (e a mídia, não se pode esquecer, é a expressão da classe dominante).

A liberdade de escolha do cidadão é um direito a ser garantido também na cultura

Ora, democracia cultural, como bem observa Marilena Chaui, significa direito de acesso e de fruição das obras culturais, direito à informação, à formação e produção cultural.

Implica também, aponta Chaui, o direito à participação dos cidadãos nas decisões de política cultural, na definição de diretrizes culturais, a fim de garantir tanto o acesso como a produção de cultura pelos cidadãos.

Mas a Anatel não discutiu preços com a massa amorfa da exclusão digital. Nem muito menos ponderou junto aos grandes conglomerados de mídia sobre um ajuste de preços que contemplasse esses milhões de pessoas-piratas.

Não ganhariam em audiência as corporações midiáticas somando tanta gente a suas plataformas? Seria o lucro tão menor a ponto de não interessar? A Anatel fez as contas junto às empresas? Pelo contrário, a Anatel gaba-se do processo de perseguição que instituiu contra o que chama de uso ilegal de conteúdo audiovisual: “Vamos criar uma experiência tão ruim que ninguém mais vai querer comprar” (o aparelho de TV Box), disse recentemente um dos grandões da agência a um site de notícias.

“A experiência ruim” é o bloqueio do sinal nos servidores clandestinos, que levarão ao travamento dos aparelhos de TV Box dos pobres (comprados pela internet a preço médio de 130 reais). Ou seja, a Anatel tira o doce da boca da criança sem dar nenhuma explicação. Priva milhões de uma ferramenta que pode contribuir para a formação cultural de pedreiros, açougueiros, diaristas, garçons, cuidadores, motoristas, camelôs, entre outros tantos trabalhadores que têm a oportunidade de assistir pela primeira vez a um filme falado em tcheco, em inglês, em grego, a entrar em contato com dezenas de línguas que desconheciam.

São milhares de filmes, séries, documentários e informativos de todo tipo com acesso livre para alavancar o repertório e a consciência crítica (por rudimentar que seja esse processo) dos condenados à latrina da TV aberta. Não que o chamado “conteúdo” seja todo ele grande coisa. Não é. Mas a liberdade de escolha do cidadão é um direito a ser garantido também na cultura.

Não é necessária uma caixinha de TV Box para que qualquer cidadão tenha seus dados roubados

Quase um crime condenar à lixeira gratuita da TV aberta um jovem da periferia nascido na geração Y ou Z – como se classifica a juventude que veio ao mundo já no advento da internet e dos avanços da tecnologia da informação. Um crime de política de estado em tempos de inteligência artificial. Um incentivo, este sim, à pirataria.

A Anatel, na demagogia típica de certa postura estatal – e em sub-repitício tom de ameaça –, afirma acreditar na “conscientização da população” quanto à perda na arrecadação de impostos, de empregos, e para o risco de ter dentro de casa um aparelho pirata que pode “comprometer a segurança” das pessoas, roubando dados de aparelhos (celulares, computadores) que estejam conectados na mesma rede de internet da TV Box.

Ora, “perda na arrecadação de impostos” do país de quem? Impostos para quê? Empregos para quem? E, ora, ora, não é necessária uma caixinha de TV Box para que qualquer cidadão tenha seus dados roubados – basta ligar seu aparelho celular, acionar um aplicativo qualquer, de um banco, de um site de compras etc.

Pirataria cultural é resposta direta à usura, é resistência à afasia digital a que querem relegar a gente pobre do país, num cenário de progresso tecnológico mas de miséria social – gente a quem a autoridade pública chama odiosamente de “pirata”, bandidos, ladrões, como se os verdadeiros corsários não fossem eles, os grandões da brutalidade do capital, que passam ao largo com seus navios abarrotados do conteúdo-ouro que é nosso, que seria nosso houvesse igualdade, houvesse pudor e vergonha na cara.

Marilene Felinto nasceu em Recife, em 1957, e vive em São Paulo desde menina. É escritora de ficção e tradutora, além de atuar no jornalismo. É bacharel em Letras (inglês e português) pela Universidade de São Paulo (USP) e mestre em Psicologia Clínica (PUC-SP). É autora, entre outras dez publicações, do romance As Mulheres de Tijucopapo (1982 – já na 5ª edição, ed. Ubu, 2021), que lhe rendeu o Jabuti de Autora Revelação e é traduzido para diversas línguas. Seu livro mais recente é a coletânea de contos Mulher Feita (ed. Fósforo, 2022).