Por que a licença-paternidade no Brasil é tão curta? — Gama Revista
O que um pai consegue fazer em cinco dias de licença-paternidade?
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Isabela Durão

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Reportagem

Por que o Brasil tem uma das menores licenças-paternidade do mundo?

Num país onde eles têm direito a apenas cinco dias após o nascimento dos filhos, ampliação da licença começa a avançar no Congresso após 36 anos

Leonardo Neiva 11 de Agosto de 2024

Por que o Brasil tem uma das menores licenças-paternidade do mundo?

Leonardo Neiva 11 de Agosto de 2024
Isabela Durão

Num país onde eles têm direito a apenas cinco dias após o nascimento dos filhos, ampliação da licença começa a avançar no Congresso após 36 anos

“O Dia dos Pais foi nove meses atrás.” Com essas as palavras, citando em seguida o humorista Chico Anysio, o presidente da Assembleia Nacional Constituinte, Ulysses Guimarães (1916-1992), ridicularizou a emenda que incluiria a licença-paternidade na Constituição de 1988. Sob risos dos outros parlamentares, o deputado (e também pediatra) Alceni Guerra, autor da emenda, subiu na tribuna minutos depois para defender a proposta.

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Apelidada pelos constituintes de “coisa de índio” — como se exercer a paternidade após o nascimento do filho fosse desculpa para não trabalhar, incluindo de brinde na chacota um profundo preconceito contra os indígenas —, o discurso emocionado de Guerra garantiu pelo menos a regulação futura da licença. Com uma proposta inicial de oito dias, a assembleia acabou definindo um prazo de cinco dias corridos como suficiente para exercer a paternidade — ao menos até que uma lei sobre o tema fosse promulgada.

O advogado Odilon Burtet, especializado em direito civil e políticas públicas, conta essa história para mostrar que pouca coisa mudou, seja na própria legislação ou no machismo que perdura entre os congressistas. Afinal, 36 anos depois, o tema ainda não tem definição e a licença-paternidade segue sendo de apenas cinco dias a partir do nascimento ou adoção da criança.

Presidente do Conselho Deliberativo da ONG Promundo, Burtet participou em 2023 da fundação da Coalizão Licença-Paternidade (CoPai), que reúne representantes de entidades civis na defesa do tema. Logo de cara, a organização conseguiu uma vitória crucial para fazer o assunto avançar: em dezembro, o STF considerou o Congresso omisso no assunto e determinou um prazo de 18 meses para que a Casa regulamente a licença.

Além da pressão de entidades não governamentais, ampliar a licença paternidade é algo que também conta hoje com uma forte aprovação do público. Uma pesquisa recente feita entre 803 colaboradores de empresas apontou que oito em cada dez homens desejam mais tempo para cuidar dos filhos.

“Minha mãe me criou sozinha, ela é uma das 11 milhões de mães solo do Brasil, e eu uma das seis milhões de crianças sem o nome do pai na certidão de nascimento. Pude perceber na prática e depois nas teorias científicas o quanto isso impacta a vida da criança”, conta o comunicador, influencer e palestrante sobre paternidade Marcos Piangers, uma das vozes mais ativas no país em defesa da ampliação da licença.

Quando a gente fala de licença-paternidade, fala de um grande sinal governamental e social para que o homem seja um melhor cuidador

“Quando a gente fala de licença-paternidade, fala de um grande sinal governamental e social para que o homem seja um melhor cuidador, se perceba parte integrante da família, e para que as tarefas de criação da criança possam caminhar para um ponto de equilíbrio.”

Apesar da determinação do STF, a luta continua, até porque a decisão tem furos importantes. “O STF não quis entrar em conflito com o Congresso, então não estipulou uma pena caso o Congresso não regularmente nesse período”, explica Burtet. “Então a gente teve uma vitória, mas não é uma vitória impositiva. Hoje estamos trabalhando fortemente junto ao Congresso para que o projeto vá para frente.”

Licença, o pai chegou

O empresário e assessor Douglas Strelow, 34, viveu uma paternidade radicalmente diferente da grande maioria dos homens brasileiros: para estar ao lado da criança e da esposa, ele conseguiu um ano de licença remunerada. “Saí de licença na primeira semana de janeiro, então consegui acompanhar não só o nascimento como o período final da gravidez, no qual é tão importante para a mulher ter alguém presente ao lado dela. Depois, passei os meses seguintes junto com a minha esposa e o Miguel”, conta Strelow.

Com a oportunidade de dividir melhor entre o casal as tarefas domésticas e os cuidados com o pequeno, enquanto a esposa se preocupava principalmente com a amamentação nos primeiros meses da criança, ele assumiu os afazeres da casa — além, é claro, de participar de tarefas relacionadas ao filho como atender os inevitáveis choros noturnos. “Ela passou a ter um tempinho para o autocuidado, voltar a fazer exercício físico depois daquele turbilhão inicial”, conta.

A licença de um ano foi algo que o profissional acertou diretamente com Piangers, para quem presta serviços há cerca de dez anos. Por ser algo raríssimo no Brasil, Strelow conta que muitos amigos estranharam. Apesar das dificuldades iniciais, o empresário considera que o período foi essencial tanto para fortalecer o vínculo com o filho quanto para se desenvolver no papel de pai.

“Hoje eu sei o que ele gosta de vestir, sei fazer ele dormir. Tem uma série de situações que percebo que são fáceis porque tive lá no início tempo em quantidade e qualidade. Isso torna mais tranquilo cuidar do meu filho nas situações em que minha esposa não esteja presente, desde preparar a mochila para a creche até lavar as roupas dele”, conta Strelow.

Independente de gênero

Mesmo longe do ideal, a média de tempo da licença-paternidade pelo mundo é de nove dias, segundo levantamento da Organização Internacional do Trabalho (OIT) — muito acima, portanto, da realidade brasileira. Na análise, no entanto, não é apenas o tempo que importa, segundo o diretor do escritório da OIT no Brasil, Vinícius Pinheiro. Ele aponta que no Brasil boa parte da população trabalha de maneira informal e, por isso, não tem acesso a esse direito.

“A regra deveria prever uma duplicação da licença-paternidade já de imediato, para ficar correspondente pelo menos com a média internacional”, considera Pinheiro. O representante da OIT também aborda a possibilidade de começarmos a discutir uma licença parental — em voga em países como Portugal e Suécia, onde o modelo foi instituído já nos anos 1970 —, que permite a pais e mães permanecer fora do trabalho em períodos alternados. “Nesse modelo, há a possibilidade de maior equilíbrio em relação às tarefas e à distribuição dos dias necessários para cuidar das crianças”, aponta.

A cofundadora e presidente da CoPai, Camila Bruzzi, no entanto, esclarece que, no Brasil, o debate no momento ainda está 100% focado na ampliação da licença atual. “Se a gente fosse falar de licença parental, ninguém nem sentaria na mesa para discutir”, aponta a líder da organização que tem comandado a defesa do tema no país. “Como a gente está numa sociedade que ainda submete um homem ao papel secundário no cuidado, tem que voltar um passo atrás.”

Segundo Bruzzi, a falta histórica de participação dos pais na criação dos filhos faz com que qualquer alteração no sentido de um maior cuidado paterno enfrente resistência por aqui. Portanto, para ela o mais importante por ora é viabilizar a mudança, fazendo com que a licença seja remunerada, receba incentivos governamentais, para não penalizar os empregadores, e seja também obrigatória.

O custo de ser pai

Uma licença obrigatória seria crucial num país em que 68% dos pais não fazem uso nem do período previsto em lei, como aponta o relatório “Situação da paternidade no Brasil”, do Instituto Promundo. O programa Empresa Cidadã, do governo federal, oferece a alternativa de estender em mais 15 dias o período da licença — mas também vem sendo pouco utilizado. Apenas cerca de 12% das empresas no Brasil oferecem a ampliação desse tempo por meio do programa, segundo pesquisa das ONGs Family Talks e 4Daddy.

Um estudo realizado por pesquisadores da USP aponta que o impacto econômico de estender a licença para 20 dias seria de 0,01% da arrecadação federal

Uma das principais preocupações, seja no mercado ou na política, é o custo que estender a licença paternidade poderia ter para as empresas e a economia do país. Já entre os profissionais que não fazem uso do direito, o temor costuma estar ligado à perda do emprego ou que isso possa afetar de alguma forma suas carreiras.

Um estudo realizado por pesquisadores da USP, porém, aponta que o impacto econômico de estender a licença para 20 dias seria reduzido — mais precisamente 0,01% da arrecadação federal. Ao mesmo tempo, poderia trazer benefícios importantes. “As empresas que estenderam esse direito têm se mostrado marcas empregadoras melhores, aumentando a taxa de lealdade, comprometimento e produtividade do colaborador homem’, afirma Leandro Ziotto, diretor da plataforma de parentalidade 4Daddy e embaixador da CoPai.

Outro ponto extremamente positivo é a possibilidade de avançar alguns degraus na igualdade de gênero não só em casa, mas também no mercado de trabalho. Afinal, a maternidade ainda é um dos principais fatores que afastam milhões de mulheres do mercado formal no Brasil. “Grande parte do gap de salário é baseado na maternidade, uma diferença que existe inclusive entre mães e não mães. Então a gente sente isso na pele, com exemplos diários”, aponta Bruzzi.

Licença para famílias LGBTQIA+

Como não há uma legislação específica sobre esse ponto, o direito à licença em famílias LGBTQIA+ nas quais a criança tem dois pais, ou mesmo no caso de pais solo, depende de um entendimento dos empregadores e do Judiciário, onde a jurisprudência já permite equiparar o período ao da maternidade. “Numa relação homoafetiva, o que ocorre hoje é fazer a equiparação com o primeiro ou o segundo cuidador”, explica Ziotto.

Já que a prática encontra respaldo na Justiça, a estratégia para regulamentar a licença num Congresso extremamente conservador vem sendo deixar as relações homoafetivas à margem num primeiro momento, como explica Bruzzi.

Atualmente, o projeto que tramita no Congresso é o PL 6216/2023, que propõe uma licença paternidade inicial de 30 dias, depois ampliada para 45 e finalmente chegando a 60 ao final de cinco anos. Outra estratégia para que o tema avance tem sido unir em sua defesa representantes de diferentes espectros políticos — hoje, a Frente Parlamentar é liderada pelas deputadas Benedita da Silva (PT-RJ) e Tabata Amaral (PSB-SP), e a senadora Damares Alves (Republicanos-DF).

“[A ampliação da licença] seria um dos grandes marcos para a paternidade no Brasil, para os homens se enxergarem como parte importante da criação dos filhos e da família. Um marco para o reforço de famílias conectadas, equilibradas e crianças mais bem cuidadas”, considera Marcos Piangers.

O advogado Odilon Burtet cita como exemplo da relevância da legislação o caso da Suécia, onde a licença parental era usada no início em sua maior parte pelas mães. Com o tempo, o país foi criando cotas para o exercício da paternidade, que gradualmente levaram os pais a usufruírem de parcelas maiores desse período.

“Hoje por lá os homens gozam de mais do que os três meses obrigatórios para eles”, conta Burtet. “É isso que se espera de uma legislação. Às vezes, a sociedade progride e a legislação vem atrás. Em outras, é a legislação que progride e a sociedade vem atrás.

Para Ziotto, uma das questões cruciais é que o direito à licença paternidade não deve ser visto como exclusivo do homem, e sim da criança — indivíduo que, segundo ele, merece uma proteção que nada tem a ver com visão de mundo ou inclinação política. “Toda criança deve ter o direito de receber cuidado de forma digna de todos os seus cuidadores, de dois adultos, independentemente da sua configuração familiar.”