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ReportagemDoenças de pele e emoções: entenda essa relação
Um dos órgãos mais atingidos pelo turbilhão de sentimentos negativos despertado pela pandemia, a pele é muito vulnerável às emoções. Entender essa conexão é o primeiro passo para melhorar essa relação
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Doenças de pele e emoções: entenda essa relação
Um dos órgãos mais atingidos pelo turbilhão de sentimentos negativos despertado pela pandemia, a pele é muito vulnerável às emoções. Entender essa conexão é o primeiro passo para melhorar essa relação
Corpo e mente não são entidades estanques. A antiga visão dualista do ser humano atribuída ao filósofo francês René Descartes (1596-1650) foi questionada durante o Primeiro Congresso Latino-americano de Psicodermatologia, realizado online nos dias 29 e 30 de outubro. Os estudos da neurociência têm mostrado, cada vez mais, que pensamentos e sentimentos influenciam o funcionamento de nossos órgãos e de cada uma de nossas células. “Sob efeito das emoções, a pele é como o mar: um dia está calmo, no outro agitado”, diz uma das palestrantes, a dermatologista Marcia Senra, do Departamento de Psicodermatoses da Sociedade Brasileira de Dermatologia. “Pelo menos 30% dos pacientes dermatológicos apresentam algum problema de ordem emocional”. Estresse e sentimentos como tristeza e raiva podem exacerbar os sintomas ou servir de gatilho para vitiligo, psoríase, dermatite atópica, dermatite seborreica, alopecia areata, acne e rosácea, dentre outras doenças que atacam a pele.
E como a estrada tem mão dupla, a pele também informa ao cérebro o que acontece ali. As enfermidades que se manifestam nesse órgão tão visível com frequência despertam sentimentos de tristeza e menos valia. Isso é tão relevante que o parlamento britânico formou um grupo para estudar a relação entre saúde mental e doenças cutâneas com membros das duas câmaras, a Casa dos Lordes e a Casa dos Comuns. Suas últimas diretrizes, Mental Health and Skin Diseases 2020, foram publicadas após a realização de um painel de experts. Segundo o documento, embora 98% dos pacientes com essas enfermidades afirmem que sua condição afeta seu bem-estar emocional, apenas 18% dos atingidos recebem apoio psicológico. Os autores reconhecem que a pandemia de Covid-19 intensificou o estresse emocional, porém alertam que os pacientes contam com pouco suporte para lidar com essa carga adicional.
Tempos conturbados
Milhões de vidas perdidas no planeta, mudanças drásticas no estilo de vida, isolamento social, crianças fora da escola, desemprego, insegurança alimentar. Os desafios impostos pela pandemia de Covid-19 ocasionaram um aumento global na incidência de transtornos como ansiedade e depressão, de acordo com um estudo publicado em outubro no periódico científico The Lancet. Foram 53 milhões de novos casos de depressão e 76 milhões de casos de ansiedade em 2020, o equivalente a altas de 28% e 26%, respectivamente. Esse aumento foi observado sobretudo entre mulheres, jovens e habitantes dos países mais castigados pela pandemia. Conduzido na Universidade de Queensland, nos EUA, o trabalho revisou pesquisas publicadas de janeiro a janeiro, de 2020 a 2021, abrangendo 240 países.
Mais de 50% dos brasileiros apontaram piora no seu bem-estar mental por conta da pandemia no estudo One Year of Covid-19, feito em 30 países pelo Instituto Ipsos, a pedido do Fórum Econômico Mundial, e divulgado em abril. Ao longo dos meses, a percepção negativa cresceu: nove em cada dez brasileiros (87%) consideraram que 2021 foi um ano ruim para o país, concluiu a pesquisa do Instituto Ipsos divulgada em dezembro que avaliou 33 países. O Brasil ficou em quinto lugar no ranking mundial do “pessimismo”, atrás da Romênia (89%), Coreia do Sul (89%), Espanha (89%) e Argentina (88%) e acima da média global de 77%.
Medo, tristeza e raiva foram as emoções predominantes durante a crise sanitária, além de ansiedade, frustração, angústia e solidão. A pele não é imune a esse turbilhão
Medo, tristeza e raiva foram as emoções predominantes durante a crise sanitária, além de ansiedade, frustração, angústia e solidão, constatou uma equipe da Universidade Federal do Rio de Janeiro depois de revisar 144 artigos científicos (79 internacionais e 65 nacionais) publicados em maio de 2020 e em fevereiro de 2021. O estudo saiu em agosto no periódico RSD (Research, Society and Development).
A pele não é imune a esse turbilhão. O Sars-CoV-2 pode afetar diretamente esse tecido, causando manchas vermelhas, irritação, coceira e vergões semelhantes à urticária; lesões decorrentes de inflamações nos vasos sanguíneos locais e, mais raramente, os “dedos de Covid”, manchas roxas e vermelhas sobretudo nos dedos dos pés, informa a dermatologista Carolina Milanez, preceptora de Dermatologia do Hospital Heliópolis, em São Paulo. Estes sinais podem surgir tanto nos casos mais graves da doença quanto nos mais leves. Pesquisadores do King’s College, de Londres, no Reino Unido, verificaram que 17% das pessoas que testaram positivo para Covid-19 relataram as erupções na pele como a primeira de várias manifestações da infecção pelo coronavírus; 21% disseram que as alterações dermatológicas foram os únicos sintomas apresentados. O estudo, baseado em dados de quase 350 mil pessoas, saiu em janeiro de 2021 no British Journal of Dermatology.
No Brasil, cientistas da Unimontes (Universidade Estadual de Monte Claros) chamaram a atenção para um aumento expressivo nos diagnósticos de herpes-zóster: antes da pandemia, a incidência era de 30,2 casos a cada milhão de habitantes, a partir daí esse número subiu para 40,9 casos por milhão. Para realizar esta pesquisa, publicada em março no International Journal of Infectious Disease, foram coletados dados do Sistema Único de Saúde (SUS) de março a agosto de 2017 a 2019 e no mesmo período de 2020, em cinco regiões do país. Conhecido popularmente como cobreiro, o herpes-zóster é causado pelo mesmo vírus da catapora. Quem teve a doença na infância pode ficar com este micro-organismo latente durante anos. Uma queda na imunidade o faz sair do esconderijo e provocar lesões dolorosas só de um lado do corpo, sobretudo no tronco, no rosto ou nos membros. “Infecções, por si só, podem derrubar nossas defesas. Mas o responsável também pode ser o estresse, que tem sido presença constante nesse momento delicado que enfrentamos”, diz Carolina Milanez.
“A pandemia foi impactante, produziu mudanças tão radicais que muitas pessoas desenvolveram transtorno do estresse pós-traumático”, atesta Marcia Senra. E a pele tem sofrido as consequências, com piora nos quadros de psoríase e vitiligo, dentre outros, além de maior incidência de alopecia areata. Aliás, um dos sintomas mais relatados na Covid longa, quando as queixas permanecem ou aparecem três meses após o início desta infecção viral, é a queda de cabelo, observou um trabalho publicado na Revista Nature. Conduzido em 2020 por cientistas dos Estados Unidos, Reino Unido, Suécia, México, Egito e Austrália, envolveu 48 mil pacientes. Dentre os 55 sintomas persistentes localizados, os cinco principais foram fadiga (58%), dor de cabeça (44%), diminuição da atenção (27%), queda de cabelo (25%) e dificuldade para respirar (24%).
Segundo Carolina Milanez, a queda de cabelo começa de dois a três meses após a infecção pelo Sars-CoV-2 e se caracteriza por uma parada no crescimento dos fios. Embora existam outras causas para isso, como carência de vitaminas, distúrbios hormonais e uso de certos medicamentos, neste caso é preciso considerar que a própria infecção pode fazer os fios pararem de crescer enquanto o corpo prioriza outras funções e o desgaste emocional também afeta o couro cabeludo. A queda geralmente é passageira e o crescimento tende a voltar ao normal em até seis meses. “O tratamento adequado acelera esse processo”, avisa a dermatologista.
Comunicação eficiente
Uma das explicações para a estreita relação entre a pele e as emoções é a origem embrionária comum. “Tanto a pele quanto o sistema nervoso central derivam do mesmo tecido, o ectoderma”, informa Marcia Senra. Outro motivo é que a pele está totalmente integrada à rede de comunicação existente entre o cérebro e cada célula do corpo. O dermatologista Roberto Doglia Azambuja, professor-aposentado do Hospital Universitário de Brasília, que há anos estuda a relação entre pele, mente e emoções, exemplifica como ocorre essa troca de informações: imagine que você está caminhando num parque e de repente avista no chão uma cobra. Diante do perigo iminente, o cérebro aciona a hipófise, que convoca as glândulas a produzirem adrenalina e cortisol. Todas as nossas células recebem uma descarga desses mensageiros químicos e preparam o corpo para lutar ou fugir. Suponha que olhando melhor, você percebe que é um cipó. Então o cérebro muda a composição química do corpo e você se acalma. Isso acontece diversas vezes ao longo do dia. “O problema não é o estresse agudo, que inicia uma reação natural de defesa, depois o corpo relaxa”, ressalta o médico. “Mas o estresse crônico, que deixa as células e os órgãos em estado de emergência permanente, o que os desgasta e leva às doenças” – é o que tem acontecido nesses tempos de crise sanitária.
Conforme Roberto Azambuja, certos pensamentos também podem produzir estragos. Eles geram vibrações que passam pelo hipotálamo, responsável por grande parte das funções endócrinas e pelo sistema nervoso autônomo. Ao reconhecê-las como positivas, esta região do cérebro estimula a liberação de mensageiros de tranquilidade. Se considerá-las negativas, tende a disparar a reação do estresse. “A adrenalina e o cortisol alteram a fisiologia de todo o corpo, inclusive da pele; alcançam o núcleo das células, onde conseguem ativar ou desativar genes do DNA, e assim agravam ou desencadeiam doenças em quem tem predisposição genética”, esclarece o médico. O cortisol, também chamado de hormônio do estresse, tem efeito imunossupressor.
O estado de tensão permanente pode desligar o sistema imunológico, como demonstraram o psicólogo Robert Ader e o imunologista Nicholas Cohen, do Strong Memorial Hospital, de Rochester, nos EUA, nos anos 1970, quando estudavam ratos de laboratório. Foi aí que a ciência começou a elucidar como o cérebro se conecta com nossos órgãos. Pouco depois, a neurocientista Candice Pert, trabalhando com o professor Solomon Snyder na Universidade John Hopkins, nos EUA, descobriu o primeiro mensageiro químico cerebral, as endorfinas, capazes de modular a dor (por isso foram apelidadas de analgésicos naturais), reduzir o estresse e conferir sensação de bem-estar. Pert encontrou outros neurotransmissores e provou que, por meio desses mediadores químicos, o cérebro e as células do organismo se comunicam o tempo todo.
Estudos mais recentes têm revelado meios de evitar os prejuízos decorrentes do estresse. “É preciso aquietar a mente e selecionar melhor o foco da sua atenção, em vez de ficar ligada em pensamentos que não te favorecem”, ensina Marcia Senra. “Observar a respiração, procurando inspirar e expirar rítmica e suavemente enquanto movimenta o diafragma, tem efeito tranquilizante”. Segundo a dermatologista, ajuda a equilibrar os mediadores químicos em circulação, baixa os níveis de cortisol, relaxa a musculatura. Mas é preciso treino: “Reserve 10 minutos por dia para fazer o que eu chamo de ‘musculação dos neurônios’”, orienta a médica. “Essa habilidade não cai do céu”.
Em caso de aparecimento ou piora de doenças da pele, o recomendado é procurar um dermatologista para investigar as causas e iniciar o tratamento adequado, que pode incluir psicoterapia ou até medicação psiquiátrica para administrar melhor as emoções e evitar duas armadilhas: conformar-se achando que não tem como escapar à carga de sentimentos negativos deflagrada pela pandemia ou culpar-se por haver um componente psicológico por trás daquele distúrbio. “O processo é inconsciente”, assegura Carolina Milanez. “Não é possível 100% de controle sobre a saúde porque existe o imponderável”, destaca Azambuja. “Mas quem cuida do que está ao seu alcance (alimenta-se bem, faz exercícios físicos regulares, dorme o necessário e mantém a mente tranquila) fica numa condição melhor para enfrentar os períodos turbulentos”.
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