Onde está a representatividade de pessoas com vitiligo?
Apesar de avanços na publicidade e no mundo da moda, ainda falta muito quando se fala em representatividade, seja na TV, no cinema ou na literatura
O vitiligo não tem idade certa para aparecer na pele. Ainda assim, segundo especialistas, a maior parte dos casos acontece até os 20 anos. Foi aos 18 – “do nada”, como ela mesma descreve – que a designer paulistana Bruna Sanches, 34, acordou e, no ato corriqueiro de passar maquiagem no rosto, se deparou com uma manchinha no canto da boca.
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Por coincidência, desde pequena ela tinha pavor de ser atingida pela doença. “Um vizinho nosso tinha, e eu morria de medo de olhar para a mão dele, que era toda branca.” Na dermatologista, onde Bruna finalmente recebeu o diagnóstico, a consulta veio acompanhada de uma série de recomendações: não podia tomar sol, fazer tatuagem e a ansiedade só iria agravar ainda mais seu estado. “Sentia que eu era culpada, que tinha feito aquilo comigo mesma por ser tão ansiosa” — apesar de ser uma condição genética, o vitiligo pode ser disparado por fatores emocionais e psicológicos.
Uma década e meia atrás, diz a designer, o preconceito era ainda maior porque havia menos informações disponíveis ao público – isso levando em conta que cerca de 1% da população mundial tem a doença. Diferentemente do que acontece hoje, graças à presença de influencers com vitiligo nas redes sociais, que falam constantemente sobre o tema num contexto mais body positive do que no passado, existia um verdadeiro vazio na mídia em relação a pessoas com doenças de pele. Por isso, ela acabou passando por um processo externo e também internalizado de rejeição e recorreu a uma série de tratamentos e terapias dolorosas que não tiveram muito resultado para segurar o avanço das manchas.
Sentia que eu era culpada, que tinha feito aquilo comigo mesma por ser tão ansiosa
No dia a dia, ela tentava esconder ao máximo sua condição. Sempre que podia, por exemplo, andava por aí com as mãos metidas nos bolsos para que ninguém visse as manchas. Foi só aos 22 anos que um “crush” ressignificou a forma como Bruna se enxergava. “Apesar de eu ter escondido a mão debaixo da mesa, ele falou que percebeu as manchinhas e que achava lindo. Disse que era uma coisa tão minha, que ele adoraria fotografar.”
Na mesma semana, a mãe, que tinha integrado o doloroso processo de tentar conter o vitiligo, disse para a jovem que aprendeu a ver sua pele como um céu cheio de nuvenzinhas, em que era possível brincar de enxergar formas e objetos. Hoje as manchinhas também são tema de algo que hoje é sua maior paixão, a fotografia. Com sua câmera, ao longo dos anos ela vai registrando as transformações da sua pele
Anos depois, essa ausência crônica de informações sobre a doença foi também o que motivou Bruna a criar o Minha Segunda Pele, projeto online multiplataforma, com páginas no Instagram e YouTube. A ideia era não apenas trazer informação, mas criar um ambiente seguro para que aqueles com vitiligo pudessem compartilhar suas histórias e dificuldades. Hoje, a designer também está desenvolvendo uma série documental que deve reunir entrevistas com diversas pessoas com vitiligo, além de familiares e profissionais, para discutir todo o processo de convivência e aceitação da doença.
Presença e ausência
A criação de canais como esse, especialmente nas redes sociais, é o que tem ajudado a sanar parcialmente um dos maiores obstáculos de quem convive com a doença: a falta de representatividade nos mais variados meios de comunicação.
Para entender até que ponto existe uma escassez desse tipo de representação, basta tentar lembrar o último filme que você viu ou livro que leu em que havia um personagem com vitiligo. É verdade que estão surgindo cada vez mais modelos no Brasil e no mundo que ostentam a doença na pele. Entre os mais conhecidos, estão a top model canadense Winnie Harlow e as brasileiras Stephanie Yashimura e Larissa Sampaio. Hoje tem até boneca Barbie com vitiligo. Além disso, há um claro esforço do setor publicitário para incluir essas pessoas em propagandas e comerciais.
Por outro lado, a ficção ainda deixa a desejar nesse aspecto. Talvez seja um esforço além das capacidades de memória dos noveleiros de plantão evocar algum personagem de novela que tivesse abertamente a doença. Mas o fato é que existe sim ao menos um ator com vitiligo que tem aparecido recentemente na telinha da TV. Igor Angelkorte atuou em novelas da Globo como “Babilônia” (2015) e “O Outro Lado do Paraíso” (2017). Na minissérie “Justiça” (2016), ele optou pela primeira vez na TV por deixar de ocultar as manchas no rosto com o uso de maquiagem. “No começo eu tinha receio de não ser escolhido nos testes. A gente sabe que os processos de seleção de atores são viciados em padrões homogeneizadores. Então, ter uma pele um pouco diferente desse ideal era algo que me trazia insegurança. Depois que fui expandindo minha trajetória e firmando ela fui me sentindo mais seguro e pedindo nas produções que eu pudesse atuar sem maquiar minhas manchas”, diz o ator a Gama. “Embora entenda que eu tenha vitiligo e não necessariamente a personagem também precise ter – e por isso tudo bem maquiar quando orientado – eu amo quando é possível fazer o trabalho de cara limpa.” (leia entrevista completa no box no final da matéria)
Um outro raro exemplo aconteceu no filme “O Esquadrão Suicida” (2021). Um dos principais membros da equipe citada no título, o Bolinha, remete à doença de pele de forma curiosa. Exposto a um vírus quando criança, ele passou a desenvolver bolinhas luminosas e letais por baixo da pele, que precisa expelir duas vezes ao dia para não morrer. O ator David Dasmaltchian, em quem o vitiligo surgiu na infância, sentiu logo de cara uma conexão com o personagem, que, assim como ele, passou boa parte da vida profundamente afetado por sua condição de pele.
“Estou simplesmente honrado de poder interpretar esse personagem. Ele sou eu. Você nem imagina o quanto minha estúpida condição de pele me assombrou quando criança e o quanto eu sentia que tinha algo errado comigo”, disse ao diretor James Gunn em uma emocionada mensagem de voz.
De acordo com o psicanalista Leonardo Alves, do Centro de Tratamento do Vitiligo, essa representatividade tem impacto positivo não só para quem tem vitiligo, mas também outras doenças de pele estigmatizantes, como a psoríase, já que uma parcela considerável dessa população sofre com problemas de autoimagem. “Quando a pessoa se reconhece num grupo, há uma sensação de pertencimento que dá mais confiança, mais potência.”
Para o profissional, um ponto essencial que ainda precisa ser enfatizado em qualquer peça informativa sobre o vitiligo é o fato de que ela não é contagiosa, já que a ignorância disso ainda é um fator importante para a disseminação do preconceito. “Se a população entender que é só uma falha na produção de melanina em determinada parte da pele, que não tem como pegar, que é genética, o estigma morre”, afirma Alves.
A palavra é normalizar
O músico carioca e influenciador Vitor Macedo, 34, iniciou sua carreira de modelo já aos 30 anos de idade, depois de postar algumas fotos na praia em suas redes sociais. Ele, que tem vitiligo desde os cinco, lembra que, durante a década de 1990, a única representação da doença a que tinha acesso era a das reportagens, que traziam uma perspectiva estigmatizante, tratando a condição como um mal que se tentava reduzir de forma clínica — ou seja, invariavelmente com remédios.
Vitor Macedo, músico carioca e influenciador
Macedo considera importante a tendência mais recente de incluir pessoas com vitiligo na publicidade, num contexto de valorização da diversidade. “Hoje a gente vê pessoas com vitiligo na TV, coisa que eu não via na infância.” Mas, segundo ele, ainda há “uma longa estrada para trilhar”. Um dos problemas, diz, é que os cachês ainda são muito baixos para quem tem vitiligo. Outro seria uma desigualdade de condições. “Acabamos entrando num contexto de cotas de representatividade”, afirma. “Então disputar um casting com uma pessoa padrão é muito difícil. Acabamos concorrendo a vagas que são específicas para pessoas com vitiligo. Ainda falta essa inserção de forma não estigmatizante. Diversidade não deveria ser tendência, mas um padrão para a criação de personagens.”
Diversidade não deveria ser tendência, mas um padrão para a criação de personagens
E, mesmo na publicidade, essa representatividade muitas vezes acontece de forma superficial, aponta Bruna. “Algumas marcas gostam de pagar de desconstruídas e às vezes incluem modelos com vitiligo em propagandas de produtos que não podem ser usados por quem tem a doença”, exemplifica. Outro ponto importante, segundo ela, é que nem todo mundo que fala sobre o assunto nas redes sociais — mesmo aqueles que têm vitiligo — está qualificado para fazê-lo e, no processo, pode acabar espalhando desinformação.
Para a designer, o mais importante é normalizar, “levar a informação e a representatividade para que o vitiligo se torne natural até mesmo em ambientes em que ele não é o tema principal”. Como exemplo, ela relembra o caso do ator Igor Angelkorte, cujas manchas no rosto apareceram por baixo da maquiagem durante uma cena da novela “O Outro Lado do Paraíso”. “Sou designer e diretora de arte. Se for pautar um ilustrador para fazer um calendário de final de ano, sempre vou orientá-lo a incluir ao menos uma pessoa com vitiligo, além de pessoas com outras questões. É super importante naturalizar.”
Foto Luara Calvi Anic
Menina feita de nuvens
A falta de conteúdo sobre vitiligo para crianças incentivou a editora e designer de livros e revistas Tatiane de Oliveira, 40, a botar a mão na massa. Assim nasceu “A Menina Feita de Nuvens” (Estrela Cultural, 2018), obra ilustrada pela própria Tatiane e dedicada à filha Maria Luiza, hoje com dez anos de idade. Desde os dois, quando começaram a surgir as manchinhas, Tatiane e o marido decidiram investir em uma abordagem diferente do usual com a menina. “Começamos a trabalhar a autoestima dela desde cedo. Apresentamos o vitiligo como uma coisa divertida. Fazíamos desenhos em volta das manchas, como nuvens ou algodão doce, para que ela se sentisse bem do jeito que é”, conta a editora.
Incentivada pelo trabalho da mãe, Maria também lê bastante desde pequena. Tatiane, no entanto, encontrou dificuldades para achar um livro que falasse sobre vitiligo ou tivesse uma personagem que dialogasse mais especificamente com o cotidiano da criança. Então, apesar de nunca ter escrito uma históra antes, ela desenvolveu a obra baseada na brincadeira de buscar objetos nas manchas da pele, com a personagem principal, baseada em Maria, como uma espécie de super-heroína. A intenção era que a filha pudesse enxergar um pouquinho de si mesma naquilo que lia.
Apresentamos o vitiligo como uma coisa divertida. Fazíamos desenhos em volta das manchas, como nuvens ou algodão doce
O livro acabou chamando a atenção da Estrela Cultural e logo chegou às prateleiras por meio da editora, com direito a lançamento na Bienal de São Paulo em 2018. Graças ao livro, hoje ela recebe uma série de relatos de pais e pessoas com vitiligo que se sentiram tocadas pela iniciativa.
A mãe reconhece que os resultados positivos que o método vem tendo para o psicológico de Maria são frutos também de uma rede de proteção cuidadosamente tecida pelos pais, que engloba conversas informativas com professores e colegas da menina na escola. Segundo Tatiane, a filha hoje se sente à vontade com sua condição e não quer mais passar pelo tratamento para conter o avanço da doença.
“Não posso forçá-la a usar a pomada se ela não quer, se está feliz do jeito que é, mas ainda tem gente que critica. Muitos pais pintam o cabelo do filho, não deixam entrar na piscina, não contam sobre o vitiligo para outros membros da família. Querem proteger a criança, mas isso pode dar um nó na cabeça dela, que pode acabar tendo que fazer terapia”, afirma Tatiane. Por enquanto, ainda não é o caso de Maria. “Ela não sofreu nenhum trauma por conta de todo esse trabalho que fazemos. Mas não temos como saber do futuro, como vai ser numa faculdade ou no ambiente de trabalho.”
Tatiane também reconhece que ainda falta muito para que personagens com vitiligo estejam mais naturalizados nos livros, no cinema ou na TV. Mas ela se sente feliz ao ver um comercial que inclua atores e modelos com a doença. O que também acontece com Maria, que se mostra ainda mais entusiasmada. “Ela grita sempre que vê alguém com nuvens na televisão.”
O ator carioca Igor Angelkorte, 34 anos, atuou em novelas da Globo como “Babilônia” (2015) e “O Outro Lado do Paraíso” (2017). Na minissérie “Justiça” (2016), ele optou pela primeira vez na TV por deixar de ocultar as manchas no rosto com o uso de maquiagem. Na conversa a seguir, ele fala a Gama sobre o vitiligo que o acompanha desde a infância.
Gama: Como e quando aconteceu a descoberta do seu vitiligo?
Igor Angelkorte: Penso que o vitiligo possa aparecer por inúmeras razões diferentes. Cada história é uma história. Quando eu tinha uns dez anos apareceram as primeiras manchinhas nas minhas pálpebras. Meio na ocasião da separação dos meus pais. Acho que eu guardava muito o que sentia, não sabia muito me expressar nessa época. Acredito que o vitiligo tenha sido uma manifestação na pele daquele processo que eu tava vivendo e que não tinha ferramentas pra desaguar.
Gama: No começo, você chegava a esconder o vitiligo com maquiagem em seus trabalhos como ator? Isso mudou? Como aconteceu esse processo?
IA: No começo eu tinha receio de não ser escolhido nos testes. Porque a gente sabe que os processos de seleção de atores são historicamente viciados em padrões impossíveis e homogeneizadores em tudo. Então, ter uma pele um pouco diferente desse ideal era algo que me trazia insegurança. Depois que fui expandindo minha trajetória e firmando ela fui me sentindo mais seguro e pedindo nas produções que eu pudesse atuar sem maquiar minhas manchas. Porque com o passar do tempo eu comecei a não só aceitar elas como a gostar delas. Achar até um charme, de certo modo. E quando eu maquiava ficava me sentindo mal, como se fosse disparador do mesmo mal estar que sentia quando era adolescente e não aceitava o vitiligo. Embora entenda que eu tenha vitiligo e não necessariamente a personagem também precise ter – e por isso tudo bem maquiar quando orientado – eu amo quando é possível fazer o trabalho de cara limpa.
Gama: O vitiligo já chegou a afetar de alguma forma seu trabalho como ator? Já sofreu algum preconceito por causa dele?
IA: Diretamente nunca. Só uma pressão das equipes de maquiagem de seguir o protocolo de maquiar todo mundo que tenha qualquer espinha, sinal, mancha ou mesmo pequena alteração na pele. Geralmente precisava primeiro acordar com a direção pra poder ter essa liberação da cadeira de maquiagem.
Gama: Hoje como você enxerga a questão?
IA: Eu acho muito legal que essa questão esteja mais em pauta. Me sinto feliz em poder ser uma das várias novas pessoas que ocupam algum espaço de representatividade nesse sentido. Muita gente me escreve pedindo ajuda e conselho pra lidar com o aparecimento do vitiligo. E me sinto em paz com minhas manchas pra poder ajudar quem precisa.
Gama: Na sua visão, existe ainda uma escassez de atores e personagens que tenham vitiligo no audiovisual? O que falta para que isso mude?
IA: Com certeza. Sinceramente não me vem nenhum personagem na cabeça que tenha vitiligo e isso seja parte natural da vida dele. E acho que isso muda, e vai melhorando ao passo que não só o vitiligo, como todas as diferenças e especificidades das pessoas são absorvidas nas tramas. Quantos artistas com algum tipo de deficiência, por exemplo, a gente vê protagonizando histórias? A vida é muito mais plural e rica e diversa do que a ficção tem se interessado em nos contar.
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