Sueide Kintê critica banalização do autocuidado — Gama Revista
O que é autocuidado pra você?
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Conversas

Sueide Kintê: "No Brasil, autocuidado é redução de danos"

Para empreendedora, ativista e jornalista, tom comercial do discurso sobre o tema é incompatível com desigualdade social e racismo do país

Isabelle Moreira Lima 29 de Outubro de 2023

Sueide Kintê: “No Brasil, autocuidado é redução de danos”

Isabelle Moreira Lima 29 de Outubro de 2023
Foto: Lu Helena

Para empreendedora, ativista e jornalista, tom comercial do discurso sobre o tema é incompatível com desigualdade social e racismo do país

Como pensar em autocuidado quando há a preocupação de conseguir as três refeições do dia e pagar o aluguel no fim do mês? Num país desigual e estruturalmente racista como o Brasil, cuidar de si mesmo é tornar as dificuldades da vida cotidiano em algo menos brutal. “Uma pessoa que deve o aluguel e que não sabe sequer se vai permanecer na sua casa não tem como pensar quais são as argilas e o tipo de óleo que ela vai colocar no cabelo”, afirma Sueide Kintê, empreendedora, ativista e jornalista que é também conselheira da Unesco em projeto de sustentabilidade e criatividade no Brasil.

Criadora do app Mais Amor Entre Nós, que liga mulheres em dificuldade a diferentes tipos de assistência gratuita, seja ela terapêutica, jurídica ou mesmo rodas de conversas, ela acredita que autonomia e educação financeira são formas mais eficazes de autocuidado do que skincare para as mulheres negras. “Autonomia é a maior forma de autocuidado que eu conheço: fazer o que se quer na hora que se precisa”, afirma. É dela também o bordão que diz: “Skincare não paga boletos”.

O problema, ela defende, é que o discurso tem muito apelo comercial e está contaminado pelo capitalismo. “Alguma coisa está errada quando autocuidado tem a ver com consumir, consumir, consumir.”

Entre os assuntos que mais aborda em seu trabalho nas redes sociais, além do autocuidado, está a cultura de resgate da ancestralidade e, na entrevista a Gama, Kintê toca nesse ponto, fala da importância de olhar para os que vieram antes, aprender com eles e cuidar deles. “Olhar para as nossas ancestrais e cuidar delas significa cuidar de nós mesmos. Qualquer coisa que descenda delas é a nossa própria herança”, afirma na entrevista que você lê abaixo.

Quando se fala de autocuidado, é preciso comprar, pelo menos, um roupão

  • G |Você acha que os discursos sobre autocuidado que circulam na mídia, na internet e no grande volume de livros publicados nos últimos anos se aplicam à realidade das pessoas negras?

    Sueide Kintê |

    O discurso que circula por aí sobre autocuidado tem muita ligação com o comércio, com a indústria de beleza, e isso não serve para ninguém. Alguma coisa pode até ser aproveitada, mas toda a intenção é que a pessoa consuma. Quando se fala de autocuidado, é preciso comprar, pelo menos, um roupão. Já reparou nisso? As imagens difundidas, a semiótica, é sempre sauna, roupão, toalha na cabeça. Ou seja, em uma sociedade em que tomar um banho com dignidade é uma atividade extraordinária, isso tem que ser questionado. Banho de imersão, passar uma hora dentro de uma banheira? Alguma coisa está errada quando autocuidado tem a ver com consumir, consumir, consumir. Os livros publicados a priori não servem para pessoas, quanto mais para as negras. Eles teriam que observar de onde essa pessoa para quem fala sai, qual o estilo de vida dela, a sua história de vida, qual a comunidade em que está inserida, os dogmas e os desafios que ela encontra ali. O autocuidado parte do pressuposto que a pessoa vai cuidar primeiro dela e depois cuidar do outro e de seu entorno. Mas, no Brasil, o que estamos falando na prática de autocuidado é redução de danos. Nem chegamos à ideia das pessoas pretas cuidarem de si. Estamos ainda reduzindo danos, os danos ligados à falta de estrutura, de saneamento básico, à moradia difícil e distante. Uma coisa que não entra na lista de autocuidado é um transporte que não mortifique as pessoas. Pergunte à maioria das pessoas pretas, mulheres pretas que moram em periferias. Elas desenvolvem um tipo de agonia, antipatia e trauma em relação ao transporte público, porque vai lotado, vem lotado, as pessoas são mal acomodadas, as mulheres sofrem assédio. Esse transporte público, que é abarrotado e totalmente desconfortável, e eu nunca vi uma publicação colocar isso na conta do autocuidado. A qualidade dos alimentos que são disponibilizados nos territórios de maioria de pessoas pretas: tem algum livro que está falando sobre isso? Que a comida ultraprocessada é mais barata que a manga, a laranja, o abacaxi? Alguma coisa pode ser aproveitada desse discurso, mas no geral não serve para a gente.

  • G |O prefixo auto dá a entender que o cuidado depende apenas do indivíduo. Mas como isso pode ser explicado em uma sociedade estruturalmente racista?

    SK |

    Há um subtexto de que é mais nobre o cuidado feito coletivamente. E eu sou contra isso porque não existe quase nenhum momento para a mulher preta pensar no cuidado dela. Ela é sempre vista como a mãe cuidadora, a bá, que dá toda a atenção às crianças (de onde vem a babá), a mãe criadeira, a leiteira que dá o peito, que cria os filhos da patroa e do patrão, que abdica da sua vida para que os filhos possam estudar e o marido possa prosperar. Então, uma dose de “auto”, autocentrada, olhar para o umbigo, para si mesma e se colocar como prioridade, seria um movimento de contenção de coisas muito ruins que têm acontecido. As mulheres negras são as mais vulnerabilizadas na pirâmide de emprego do Brasil. Os piores salários são para elas. Toda a estrutura de invisibilidade, de não poder colocar a autoria de suas produções. Se for tratar da mulher negra, é imperativo que elas pensem em autocuidado. Mas, sim, não é possível autocuidado dentro de uma estrutura racista, de racismo institucional, como não é possível tantas outras coisas. O amor é impossível dentro dessa estrutura capitalista. Mas, como diz Sebastião Salgado, é pelo sonho que vamos. A gente vai para ter esperança, para se inspirar, para dar um novo mergulho e daí surgir um novo fôlego.

  • G |Como falar então de autocuidado em um contexto de desigualdade social?

    SK |

    Muitas famílias de pessoas negras como eu têm como principal cuidado garantir as três refeições. Então nós não podemos romantizar. É Importante cuidar da pele, é importante cuidar do cabelo, mas o autocuidado ele não está a priori ligado à defesa estética. A estética entra como componente, mas dentro dessa história a gente precisa se inventar, se experimentar e isso passa por nutrição, por pagar água, luz, infraestrutura. Uma pessoa que está devendo o aluguel e que não sabe sequer se vai permanecer na sua casa, ela não tem como pensar quais são as argilas e o tipo de óleo que ela vai colocar no cabelo. Quem romantiza a pobreza são as pessoas tolas. Quem passa perrengue na hora de pagar o aluguel não vê graça nenhuma. Quem gasta mais da metade do seu salário no mercado não vai achar nada disso romântico. Se víssemos a educação financeira como uma coisa de cuidado, ela estaria dentro das associações de bairro, dentro dos nossos projetos, e até substituiria parte da matemática que estudamos no ensino secundário por educação financeira; ela estaria mais dentro das nossas vidas e em todas as relações que a gente tem, porque todas as relações são mediadas por esse sistema financeiro.

Olhar para as nossas ancestrais e cuidar delas significa cuidar de nós mesmos

 

  • G |O discurso de autocuidado que temos hoje no Brasil dá conta das desigualdades sociais? Ele é racista?

    SK |

    O discurso de autocuidado não é racista, mas tem problemas estruturais porque segue a mesma mística das outras relações que temos no Brasil, que são estruturadas a partir desse prisma do racismo estrutural como coluna dorsal da sociedade. Todas as outras observações relativas à desigualdade vão acontecer mais e mais e as pessoas vão tentar gerar produtos a partir disso. Os consultórios que lidam com saúde mental estão cheios. As próprias terapias interdisciplinares e holísticas também têm ganhado um novo contexto e abrigado uma série de demandas que não víamos de maneira tão proeminente. E há pessoas do autocuidado que são racistas, mesmo sendo pretas. Mas as pessoas negras devem reafirmar a radicalidade do cuidado ancestral, que vem desde o lava pé com banho de folha, até parir dentro de casa. Isso é uma forma contra-hegemônica de pensar o cuidado, não pensar apenas na quantidade de máscara, de cílio, e até as experiências, se você foi a Mykonos ou não. Autocuidado para algumas pessoas é viajar, mas qual é o parâmetro? Ela pode ter esse deslocamento mais próximo da sua casa? Há uma série de nuances.

  • G |Como desenvolvermos um discurso e prática de autocuidado coerente com as possibilidades e demandas da população negra?

    SK |

    A coerência estaria em enxergar o indivíduo como um ser único e diverso. E aí não dá para pensar que uma coisa é autocuidado e outra coisa é cuidado coletivo. Quando pesquisamos autocuidado no Google, vemos imagens de mulheres brancas cuidando de si. Quando buscamos cuidado coletivo, vemos mulheres pretas. Qual seria o discurso coerente? Observar cada pessoa, saber qual a demanda daquela pessoa. E cada um, sabendo da própria demanda, buscar as ferramentas para o que precisa. Não dá para dizer que autocuidado é skincare; tem mulher que não suporta ficar sentada e fazer máscara.

  • G |E a relação entre autocuidado e ancestralidade?

    SK |

    Essa relação está na responsabilidade que as nossas ancestrais tinham de cuidar da família. Não tinha nem médico, eram mulheres ou homens curandeiros que faziam remédios de folha. O cuidado e cuidar-se estão muito presentes em vários momentos dentro da nossa ancestralidade, desde a avó, que faz determinado tipo de chá, ou um tipo de emplastro com plantas, ou qualquer outra receita que ela aprendeu com a mãe ou com a avó. No mais profundo, tem a conversa com as indagações, que é “como você está?, “o que te doeu?”. Isso daí vem da ancestralidade, procurar saber como está a pessoa, o que ela come, entender as abstrações. Olhar para as nossas ancestrais e cuidar delas significa cuidar de nós mesmos. Qualquer coisa que descenda delas é a nossa própria herança. A qualidade de vida das nossas ancestrais é a nossa qualidade de vida. Se a gente cuidar da nossa mãe, da nossa avó, elas vão deixar esse legado para a gente caminhar.

Autonomia financeira como forma de cuidado não é amplamente difundido porque emancipa mulheres

  • G |Você fala que skincare não paga boleto e diz que independência financeira e autonomia são autocuidado. Por que acha que essas noções, que fazem tanto sentido, ainda não são tão populares quanto a do skincare?

    SK |

    Autonomia financeira como forma de cuidado não é amplamente difundido porque emancipa mulheres e pessoas que são vistas não como aquelas que constroem sociedade, em todos os aspectos intelectual e estratégico também, mas são vistas como consumidoras. A sociedade não quer que a mulher seja empresária, tenha autonomia, possa ter poder aquisitivo e decidir muitas coisas. O que a maioria das empresas e dos grupos querem é que a mulher seja aquela que compra os cílios, o batom, e depois vai para casa. Isso não vai trazer mobilidade social maior. Comprar roupa de marca não vai trazer mobilidade a ela. O que vai trazer mobilidade é mais autonomia, ter dinheiro para fazer as coisas de maneira confortável e para crescer: fazer uma viagem internacional, fazer um curso, entrar na universidade. Tem a ver com manter todo mundo na média.

  • G |Você também fala em ditadura digital. Como ela pode atrapalhar o autocuidado?

    SK |

    A ditadura do digital tem a ver com esse novo período que é o império dos serviços, das formas de diversão, de interação tudo pelas redes sociais. Quando isso acontece, as pessoas são obrigadas a passar mais tempo do que deveriam na frente da tela. Isso vai gerar estresse e uma série de doenças que no longo prazo vão tirá-la do mercado de trabalho. Estamos em uma era em que todas as relações são mediadas pela internet. Se ela parar, entramos em colisão. Não temos como retroceder, banco e escolas são mediadas por essa tecnologia. Embora ela nos aproxime e quebre fronteiras, ela também tem uma sombra, não sabemos onde a artificial vai dar. Há uma questão de segurança também, não é um lugar seguro para as mulheres. Da mesma forma como as ruas à noite oferecem perigo, a internet é uma rua no breu, você nunca sabe quem vai virar a esquina, há muitos golpes aplicados na intenret. Mas, para ter autonomia, as mulheres têm que saber manusear a internet e não se fechar em aldeiras offline. Sabemos que é uma faca de dois gumes: ao mesmo tempo que corta na carne e deixa as pessoas ansiosas com resposta de dopamina acelerada e aí vão para a vida real e não veem sentido. Uma das consequências dessa ditadura digital é a depressão. Precisamos cada vez mais de aterramento. Grupos de autocuidado que não falem só de skincare, de comprar roupa, de viajar. A ditadura digital está acabando a conexão na vida real. As pessoas são muito boas em responder na DM, mas não sabem mais falar ao vivo. Hoje em dia, se as pessoas vêem casais namorando na rua chama mais atenção do que antes. As relações digitais criam frieza e reduzem relação de afeto, e conhecer o outro é também conhecer a si.

  • G |A gente tem falado e ouvido mais sobre a positividade tóxica. Como ela atinge a população negra?

    SK |

    Eu gostaria de pensar que é a positividade tóxica não é uma coisa que atinge diretamente a população negra, mas a humanidade. Há grupos religiosos que querem que as pessoas entendam que a falta de estrutura é da vontade de Deus. “Ah, seu marido te bate, mas isso é porque você tem que arrefecer ele. Ore por ele”. A positividade tóxica está dentro das comunidades e dessas igrejas que querem transformar seguidores que estão sofrendo em consumidores. A positividade tóxica é também uma cultura de subserviência que tem muito a ver com o colonialismo. Tem a ver com achar que para sobreviver tinha que agradar o senhor de Engenho. Hoje, agradar o patrão, topar qualquer relação de trabalho abusiva. E o trabalhador fica na corrida de rato eternamente.

Colaborou Gabriela Bacelar