Como sofrem as mães durante a pandemia do novo coronavirus — Gama Revista
Mãe sofre?
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Sariana Fernández

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Semana

Pandemia e maternidade: a conta não fecha

Tempo, trabalho e dinheiro: por que as mães brasileiras foram tão afetadas durante a pandemia?

Juliana Sayuri 09 de Maio de 2021

Pandemia e maternidade: a conta não fecha

Juliana Sayuri 09 de Maio de 2021

Tempo, trabalho e dinheiro: por que as mães brasileiras foram tão afetadas durante a pandemia?

O despertador toca por volta das 7 horas da manhã. Não é um relógio comum, cujo tique-taque se prolonga com precisão e regularidade. É Olívia*, a filha de 2 anos da socióloga Marília Moschkovich, 34, que avisa que o dia já começou.

Moschkovich, uma acadêmica feminista especialista de estudos de gênero, acorda e prepara o café da manhã para a filha, que se distrai desenhando ou brincando de Lego. “A dinâmica dos dias muda muito rápido, pois a criança, na primeira infância, muda muito rápido: as necessidades, a personalidade, tudo. É imprevisível. A criança é um elemento anárquico na rotina, o que é maravilhoso, mas é muito difícil para adequar aos padrões ‘normais’ de expectativa de trabalho”, conta ela, atualmente pesquisadora de pós-doutorado do Numas (Núcleo de Estudos sobre Marcadores Sociais da Diferença), do departamento de antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP (Universidade de São Paulo).

Antes de se instalar na capital paulista, Moschkovich estudou em Campinas e passou temporadas de trabalho e pesquisa em Córdoba, Paris, Bonn e Berlim. “No meio disso tudo ainda tive um bebê, amamentei, mudei de casa umas oito vezes, terminei um casamento monogâmico, vivi junto a um companheiro em relação livre, desfiz essa relação de convivência, uma namorada minha morreu, tomei ayahuasca e fiz um tantão de temazcal, me aproximei da psicanálise e tantas outras coisas da vida pessoas – que ‘não cabem no Lattes’”, diz sua nota biográfica.

O ideal de maternidade é incompatível com qualquer carreira, pois temos arraigada na nossa cultura uma ideia do que é ser mãe, o que uma mãe deve ser, o que uma mãe deve fazer

Na pandemia, Moschkovich tem trabalhado online de manhã até as 5 horas da tarde, 6h no máximo, entre cursos a ministrar, livros para ler, artigos acadêmicos para escrever e dados para analisar na atual pesquisa de pós-doutorado. Depois do expediente, é o momento de dar janta, banho, brincadeira e contar histórias para a filha dormir.

Durante o dia e a madrugada, quem cuida da bebê é seu companheiro, “muito companheiro”, ela frisa – juntos, os pais buscam uma divisão mais igualitária do tempo dedicado ao trabalho doméstico. Ainda assim, a carga mental pesa nos seus ombros. “Não é a carreira acadêmica que é incompatível com a maternidade. É o ideal de maternidade que é incompatível com qualquer carreira, pois temos arraigada na nossa cultura uma ideia do que é ser mãe, o que uma mãe deve ser, o que uma mãe deve fazer”, diz a pesquisadora, que há tempos investiga o assunto academicamente.

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“A ideia de família é uma ficção, sempre foi. É impossível [de se alcançar]. E a pandemia mostrou isso: o que se cobra de quem está trabalhando se cobra a partir da expectativa de que o trabalhador é um homem que tem uma esposa ao lado, cuja casa tem uma faxineira, cujos filhos têm creche ou escola. Não se pensa no contexto real das casas, das cidades, dos bairros. Sem isso, a estrutura rui, a instituição não funciona. Não dá, não fecha a conta”, diz
Moschkovich.

Elas, sempre elas

De fato, uma das figuras mais afetadas na pandemia de covid-19 no Brasil foram as mães: em termos de tempo, trabalho e dinheiro, a conta, que já era difícil, deixou de fechar.

Foram elas as mais prejudicadas profissionalmente nas quarentenas – nas universidades, por exemplo, 47,4% das docentes com filhos conseguiram finalizar seus artigos científicos no prazo, ante 65,3% dos docentes com filhos, de acordo com dados do movimento “Parent in Science”, que reúne pesquisadoras de diversas instituições brasileiras.
Foram elas as mais demandadas para cuidar de alguém dentro de casa, incluindo crianças e idosos, 50% indica o levantamento “Sem Parar”, feito pelas organizações Gênero e Número e SOF (SempreViva Organização Feminista) – 55% das mulheres negras entrevistadas no estudo disseram que pagar contas básicas e aluguel se tornou uma dificuldade extra na pandemia.

Também foram elas as mais impactadas economicamente na crise atual, com os maiores índices de desemprego, segundo dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Entre elas, as mães solo (que somam mais de 11,5 milhões no país) foram especialmente atingidas: além das dificuldades financeiras, inclusive para conseguir acessar o auxílio emergencial do governo federal (R$ 375 por quatro meses previstos no calendário de 2021), elas acumularam tarefas domésticas diversas e de cuidado dos outros.

Não é matematicamente viável a vida de uma mãe como preconizamos, nem para uma alta executiva com todo suporte econômico, muito menos para uma desempregada sem suporte nenhum

Foi por um triz (aliás, um tuíte) que a artesã Jaciana Melquíades, 37, mãe solo, salvou seu ateliê de bonecas negras, a pioneira marca “Era uma vez o mundo”, no centro do Rio de Janeiro. “Aqui somos eu e meu filho e as atividades domésticas são concentradas em mim. O home office agora tem uma carga maior, além da necessidade de cuidar das tarefas do Miguel*, curso de inglês, aula de música, sob minha supervisão. Isso faz com que o trabalho doméstico demore muito mais – e o trabalho da empresa fique num horário mais reduzido ou avançando noite adentro”, conta.
Nos primeiros tempos da pandemia, em maio de 2020, com a loja quase quebrando na quarentena, a empreendedora escreveu sobre sua situação no Twitter e o post viralizou no WhatsApp, o que lhe garantiu uma série de pedidos e, a partir daí, um fluxo de caixa para regularizar rendimentos do ateliê. Passado um ano, em maio de 2021, ela está com as contas de casa estabilizadas.

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Melquíades foi ajudada e ajudou diversas redes solidárias que se formaram para amparar mães na pandemia: de um lado, recebeu mentoria, auxílio mensal por três meses e um gás do “black money”, movimento que incentiva o consumo de produtos e serviços de empreendedores; de outro, ela passou a ajudar uma ong na comunidade da Maré e deu mentorias gratuitas para negócios similares ao seu, que precisaram migrar para o universo digital para, nas palavras dela, “driblar as dificuldades”. “É um momento bastante difícil para pequenos empreendedores e empreendedoras. E é um momento de maior conscientização. A ajuda mútua precisa ser cada vez mais efetiva”, diz.

Era uma vez, uma mãe

Nas comunidades da Maré, no Rio, e de Paraisópolis, em São Paulo, as mulheres foram as primeiras a perderem o emprego fora de casa e as últimas a receberem ajuda dentro de casa, indica um estudo qualitativo feito pelo Núcleo Mulheres e Territórios do Laboratório Arq. Futuro de Cidades do Insper.

No paralelo, surgiram diversas iniciativas de apoio de mulher para mulher, como redes de acadêmicas, artesãs e profissionais de saúde, coletivos de apoio jurídico e psicológico para vítimas de violência doméstica, ações comunitárias e campanhas solidárias para garantir cestas básicas, kits de higiene e máscaras para atravessar as ondas de covid-19.

Uma delas foi organizada pelas ativistas Thaiz Leão, 31, e Thaís Ferreira, 32, mães solos e idealizadoras do movimento “Segura a curva das mães”, que busca integrar coletivos, ongs, instituições da sociedade civil e indivíduos para realizar distribuição direta e indireta de recursos e apoio psicossocial para mães na pandemia. Até agora, elas levantaram R$ 732 mil, beneficiando 1.734 mães em 24 estados brasileiros – e, por tabela, 6.936 crianças, adolescentes, idosos e pessoas com deficiência cuidadas por elas.

Medo de faltar dinheiro no fim do mês, faltar comida na mesa e perder a própria casa foram os impactos mais recorrentes entre as mulheres ajudadas, diz Thaiz Leão, diretora executiva do Instituto Casa Mãe e designer de políticas públicas na Mãedata, como é chamado o mandato coletivo da vereadora Thaís Ferreira, 32, no Rio. “A pandemia demonstra nitidamente a fragilidade econômica, social e política das mulheres mães por todo o Brasil. A pandemia agrava, mas o que torna a maternidade cativa na vulnerabilidade é anterior. É a persistência e a imobilidade da interpretação cultural e simbólica do que significa ser mãe”, acrescenta.

A pandemia demonstra nitidamente a fragilidade econômica, social e política das mulheres mães por todo o Brasil

“O que nós acreditamos que é a maternidade e o materno desenha a realidade objetiva do que as mães vivem. Mais que versar sobre aspectos subjetivos, como amor, carinho e cuidado, essa crença se materializa como configuramos e damos formas às nossas relações econômicas, sociais e políticas. Não é matematicamente viável a vida de uma mãe como preconizamos, nem para uma alta executiva com todo suporte econômico, muito menos para uma desempregada sem suporte nenhum”, diz Thaiz Leão

É a antiga história que se martelou por séculos: era uma vez, uma mulher bela e dedicada ao lar, cujo “instinto materno” inevitavelmente lhes resguardaria um destino único a cumprir, o combo marido, filhos e filhas, uma casa impecável e um jantar feito do zero para a família feliz estilo-margarina no fim do dia – ao fim, a louça também é dela. Isso porque mulheres foram historicamente socializadas para o cuidado, isto é, foram ensinadas que esse é seu papel na sociedade, diz a demógrafa Jordana Cristina de Jesus, docente da UFRN (Universidade Federal do Rio Grande do Norte) e integrante do Onas-Covid19 (Observatório do Nordeste para Análise Sociodemográfica da Covid-19).

“Pré-pandemia, as mulheres já enfrentavam dificuldades: salários menores, postos mais baixos, ocupações precárias, informalidade, condições que têm a ver com a divisão social, sexual e racial do trabalho. É como se elas fossem constantemente penalizadas por ocuparem lugares não legítimos no mercado de trabalho. E, entre elas, as mais penalizadas são as mães, negras e solos”, diz a pesquisadora. “Nas crises, o elo mais frágil é o primeiro a se romper. Na pandemia, foram elas.”

Para Jesus, as diversas redes que se formaram para amparar mulheres e mães são iniciativas louváveis, mas, no fim das contas, indicam uma realidade cruel, a de quanto ainda é preciso avançar para garantir direitos iguais a elas. “É importante ter movimentos micro, mas é preciso pressionar por políticas públicas para mudar o macro. Muitas vezes, é desses movimentos micro que surgem lideranças potentes como Marielle Franco”, pondera a acadêmica, citando a vereadora do Rio, assassinada em março de 2018, que se tornou um dos símbolos de luta por direitos de mães solteiras, mulheres pretas e periféricas.

“É difícil ser otimista num país onde estão morrendo 3 mil pessoas por dia para uma doença para qual já há vacina. É difícil ter esperança, mas não abro mão dela. Mulheres já atravessaram diversas crises e não desistiram, não só para resolver questões mais imediatas como pôr comida na mesa, mas coletivamente para buscar soluções políticas, econômicas e culturais para a estrutura que sustenta essa realidade. É o que tem pra hoje: não deixar de lutar”, finaliza Jordana Cristina de Jesus

Nomes fictícios para preservar a identidade das crianças.