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ReportagemNovas formas de abandonar o mundo real
Práticas como o shifting e o delulu ganham adeptos e likes nas redes sociais prometendo válvulas de escape da rotina, mas que podem trazer riscos
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Novas formas de abandonar o mundo real
Práticas como o shifting e o delulu ganham adeptos e likes nas redes sociais prometendo válvulas de escape da rotina, mas que podem trazer riscos
Você pode começar preenchendo um script, que inclui informações básicas como nome, idade e gênero, mas também aspectos mais específicos: aparência física ou quanto dinheiro tem na conta. Se tiver preguiça de responder às dezenas de questões, existe quem prefira partir direto para a DR — que, neste caso, não é uma discussão de relação, e sim uma desired reality, a realidade que você deseja adentrar. Aí vai do seu gosto. Pode ser seu filme ou livro preferido, ou basicamente qualquer coisa que seu cérebro imaginar — o universo de Harry Potter costuma ser sucesso de público. Talvez ajude ligar um áudio dentre as centenas de vídeos no YouTube e playlists do Spotify que prometem te levar ao transe. Feito isso, parabéns. Se tudo der certo, você acaba de entrar no maravilhoso mundo do shifting.
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O conceito, centrado em viver seu universo ideal como se fosse uma realidade paralela, não tem comprovação científica e começou a se popularizar em 2020, no início da pandemia, embora já existisse desde antes. Nas redes sociais, com destaque para o TikTok, hoje são milhões de vídeos de usuários contando suas experiências ou sugerindo técnicas para “shiftar” de forma certeira caso você seja um “baby shifter”, um iniciante nesse universo.
“Se você tenta de tudo e não consegue ‘shiftar’, este vídeo é para você”, diz um deles, que em seguida começa a falar sobre sonhos lúcidos. Outra comemora por ter “shiftado” para uma realidade em que ficou com o ator Hugh Jackman: “Eu comecei a ver uma barriga tanquinho na cama”, lembra. Tem até vídeo de padre questionando se shifting é ou não pecado. Spoiler: segundo ele, é sim.
A produtora de conteúdo shifter Fernanda Corrêa, 36, é uma entusiasta da prática. Ela afirma que a maioria dos jovens — em média, os adeptos têm entre 14 e 17 anos — definem o shifting como uma ida de fato a outra realidade. Diz também que acabou entrando nesse universo por seu interesse em temas como projeção astral e sonhos lúcidos, que guardam uma certa proximidade com o shifting.
A ideia de fazer um script é justamente visualizar em detalhes o universo paralelo para onde você quer ir, as pessoas que o habitam e até a versão de você mesmo que vai viajar para lá. Como é possível criar um mundo do zero ou fazer modificações em universos famosos da cultura pop, para a criadora de conteúdo, pode ser uma forma de os jovens exercerem a criatividade. “Eu comecei a observar isso como fenômeno e a falar nas redes sociais para partilhar mais, entender o que estava acontecendo”, afirma.
O psicanalista André Alves, cofundador da consultoria de análise cultural e de comportamentos floatvibes, admite que “a realidade pela realidade é insuportável”. Então, nada mais natural do que buscar mecanismos para fugir dela ou enfrentá-la de forma mais leve de vez em quando. Nessa conta, podem entrar desde o próprio shifting até aquelas pequenas pausas do dia a dia para a leitura de um livro, a ida ao cinema que você encaixa na rotina ou práticas como ioga e meditação.
Sem fantasia, é impossível suportar a experiência humana e essa condição fundamental de descontentamento que é a vida em sociedade
“Todo mundo precisa disso. Sem fantasia, é impossível suportar a experiência humana e essa condição fundamental de descontentamento que é a vida em sociedade”, declara o psicanalista. E olha que o momento vivido pela humanidade não é dos mais fáceis, em meio a uma crise climática iminente, uma política turbulenta e problemas sociais e econômicos evidentes.
Na verdade, diz Alves, nos acostumamos a viver numa permacrise, ou crise permanente — essa sensação é tão forte que o termo chegou a ser eleito a palavra do ano pelo Dicionário Collins lá em 2022. “A gente vai se acostumando ao que é mais extremo, mais violento e traumático, sem necessariamente elaborar o que está acontecendo”, aponta o especialista. “Vai acumulando o horror no lugar de pensar sobre o horror e dar destinos a ele.”
Houston, temos um problema
Nas suas tentativas de “shiftar”, Corrêa conta que sentiu algo mais próximo de um sonho lúcido. Por isso, não arrisca dizer o que exatamente é o shifting. Embora haja métodos para praticar mesmo de olhos abertos, o mais comum é buscar esse estado de consciência dormindo. “Muita gente fala sobre a experiência, mas a maioria não teve a experiência”, ela aponta. Sim, porque são poucos os que relatam ter sido bem-sucedidos na jornada. Em geral, quem conta em detalhes esses passeios entre realidades são os próprios influencers do tema.
Vários dos que aderem ao shifting são jovens que enfrentam problemas na vida pessoal e não sabem muito bem como lidar com eles, diz a criadora de conteúdo. “Como acontece muito na adolescência, é normal buscar fugas, distrações, se identificar com diferentes temas”, afirma. Outros entram por pura curiosidade.
A dissociação é um fenômeno psicopatológico em que a gente vai topando uma desconexão temporária do que vive
Se a pessoa procura o shifting para lidar com alguma dificuldade pessoal ou fazer coisas que tem medo de realizar na vida aqui fora, Corrêa considera que esse pode ser o sintoma de um problema maior. “Quando é uma fuga, por mais que tenham outras atividades que eles possam utilizar, sempre que fica excessivo, é preocupante”, afirma a influenciadora. Para entender melhor aspectos como esses e como acolher aqueles que buscam o shifting como maneira de fuga, ela espera que o fenômeno, que por enquanto não tem nenhuma base científica, seja mais estudado e pesquisado no futuro.
Segundo Alves, essa fuga também pode significar uma desconexão da realidade — algo que encontra paralelos no nosso hábito de viver cronicamente online, que ele define como “o maior experimento coletivo da história da humanidade” — e que nos leva a aceitar formas cada vez mais dissociativas de lidar com tudo isso.
“A dissociação é um fenômeno psicopatológico em que a gente vai topando uma desconexão temporária do que vive. Só que, quando faz isso sem nenhum tipo de reconexão ou repactuação com a realidade, vai ficando muito frequente e muito desejada a sensação de irrealidade”, explica o psicanalista. Para ele, é nessa categoria que costumam se encaixar práticas como o shifting e também o delulu.
Como ser delulu
A redatora Laryssa Alarcon, 26, passava por um momento bastante delicado da vida em 2022. Além de ter acabado de sofrer um processo de burnout no trabalho, descobriu que estava sendo traída pelo namorado em um relacionamento de quase dez anos. “Eu passei dias sem comer, emagreci quase dez quilos em dois meses”, conta Alarcon. “E é aquilo, mente vazia é oficina do diabo.” Foi mais ou menos nesse momento que ela aderiu ao delulu.
Fazendo uma pequena pausa nessa história, vale lembrar que o termo surgiu na comunidade de fãs de k-pop para definir — não sem um certo tom de chacota — o amor por um ídolo que ultrapassa os limites do real. Porém, alguns anos atrás, ele começou a ser usado de forma mais ampla nas redes para áreas da vida como carreira e relacionamentos. Hoje, ser delulu significa adotar visões e atitudes extremamente otimistas, mesmo quando a realidade não corresponde a toda essa positividade. E o termo já movimenta bilhões de visualizações no TikTok.
Alarcon, que trabalha com redes sociais no dia a dia, acompanhou todo o boom dessa tendência. Despretensiosamente, ela decidiu gravar um vídeo sobre o assunto, então ainda pouco falado no Brasil. E deu certo, tanto quemuitas pessoas reagiram ao post. Com o tempo, ela começou a adotar o delulu também para alguns aspectos de sua vida.
“É quase como criar uma realidade paralela. Pode estar tudo horrível agora, mas fica tranquilo. Isso faz parte do plano. Se está tudo dando errado é porque lá no futuro vai melhorar”, explica a redatora e influenciadora sobre o tema. É um ponto de vista, ela completa, em que acaba sendo melhor se prender a essas ideias do que aceitar uma realidade em que você é a vítima.
Mas não foi só isso. Para mergulhar nesse mundo, ela criou um planner digital, que compartilhou com os seguidores, passando a encampar também coisas como astrologia, lei da atração, esoterismo, cristais, reencarnação… O conteúdo que produzia viralizou e chamou a atenção até da mídia jornalística. Com mais de um milhão de views, seu vídeo mais popular até hoje é um checklist com tudo que você precisa para se tornar delulu: regras como fingir até que consiga atingir seu objetivo (“você vai criar uma personagem e começar a viver como ela”), ser obcecada por você mesma e enxergar tudo como um sinal.
E a prática de fato teve impacto na vida dela. “Lembro até hoje da expectativa que eu criei para uma vaga na Farfetch, um super marketplace de luxo. Eu estava confiante e não rolou. Na época, fiquei tranquila com isso, porque sabia que o que vinha a seguir era muito melhor”, narra Alarcon. E de fato foi. “Um mês depois eu consegui uma vaga super legal para trabalhar na redação do projeto digital do Shopping Iguatemi, com pessoas que eu admirava desde os meus 12 anos de idade.”
O caminho de volta
“Em um certo nível, ter esperança de chegar em algum lugar, ter objetivos e um horizonte é algo que move a gente”, considera a mestre em filosofia pela USP e pesquisadora de comportamento e neurociência Giulia Tessitore. “Mas de que forma esse olhar sempre deslocado para o futuro faz com que a gente esvazie completamente o momento presente?”
Ficar divagando com frequência sobre futuros possíveis também é uma prática que pode gerar bastante ansiedade, diz a especialista, criadora da comunidade Rotina Perfeita. Segundo ela, outra alternativa acessível e talvez menos arriscada para lidar melhor com a realidade sem necessariamente fugir dela é inserir pequenos momentos e itens prazerosos na rotina, como tomar um café mais longo e elaborado ou acender uma vela aromática.
“A gente tem que fazer coisas que não gosta e que estão muito além do nosso controle. Não me parece saudável falar em romantizar as duas horas que você passa no ônibus para chegar no trabalho nesse calor”, exemplifica Tessitore. “Pela minha experiência, [uma prática como o delulu] é algo que não dura muito tempo.”
No caso de Alarcon, não durou mesmo. Hoje, ela admite que sempre sentiu um certo desconforto em criar conteúdo sobre o tema. Na verdade, planeja vir a público em seu perfil no TikTok — onde não posta há cerca de um mês — para revelar que não pretende mais fazer esse tipo de conteúdo. “Estou preparada para sofrer o hate que vem das redes sociais e levar os unfollows”
A virada de chave começou no início do ano. “Acordei e percebi que essa vida que estou vivendo não tem nada a ver com a vida que eu sonho”, conta. Vinda de uma família evangélica batista, ela atualmente prefere exercer com mais comprometimento sua religião, em vez do que chama de um “espiritualismo new age” — saco de práticas espirituais experimentais que começaram a surgir nas décadas de 1970 e 1980, em que Alarcon deposita suas experiências ligadas ao delulu e outras tendências que entraram ali no meio.
Acordei e percebi que essa vida que estou vivendo não tem nada a ver com a vida que eu sonho
“Lembro que, em abril ou maio deste ano percebi que algumas coisas que eu falava eram… não irresponsáveis, mas feitas para ganhar views. Hoje eu já tenho muito mais cuidado com o que posto e falo, porque estamos lidando com as emoções e sentimentos das pessoas”, afirma a redatora e influencer. Ela também não chega retirar tudo que disse e praticou. Segue acreditando na importância dos pensamentos positivos e do otimismo, mas de um ponto de vista diferente.
“Sinto que essa visibilidade que eu acabei criando, essa rede de meninas que me seguem e mandam mensagem talvez tenha um propósito maior, que vai muito além do meu entendimento. Eu fui buscar essas respostas, pretendo me rebatizar no ano que vem. Não é só um negócio da minha cabeça, é a minha intuição, eu acho que estou sendo chamada.”
Super-herói de meio período
Falar em sair da realidade concreta pode parecer coisa de outro mundo — ou de alguma realidade alternativa —, mas não é. Uma pesquisa feita em Harvard este ano apontou que 45% dos entrevistados já passaram por algum estado de alteração de consciência sem o uso de drogas. A questão é que na maioria dos casos, as pessoas recorreram a práticas bem comuns e estabelecidas, como ioga, meditação ou mesmo exercícios de mindfulness. Outro achado do estudo é que a maioria delas teve efeitos positivos a partir dessas experiências.
“Quando está no olho do furacão e não consegue encontrar soluções, se você faz um processo terapêutico ou de meditação, em que parece que olha tudo de fora, talvez te dê um pouco de respiro e esperança”, avalia Tessitore. “Isso pode te mover para sair de uma situação em que você não encontrava mais saída. O grande problema é quando não quer voltar mais”, ela alerta.
Como lidar com o nada mágico mundo? Você vai conseguir extrair satisfação das relações? Vai participar da reunião de trabalho ou no almoço de domingo da família?
Se ioga e meditação podem alterar nossa relação com a realidade por alguns momentos, dá para dizer algo parecido sobre o uso das redes sociais ou até as bets. “A gente tem grande parte da população defendendo o jogo do tigrinho e totalmente implicada em fake news e golpe”, Alves dá como exemplo.
No caso de práticas como o shifting, ele considera que “o problema não é passar seis horas em Hogwarts, mas o que você vai fazer com o restante do seu tempo.” Em outras palavras, se você vive parte dos seus dias como super-herói, por que vai querer voltar a ser uma pessoa comum?
“Como lidar com o nada mágico mundo? Você vai conseguir extrair satisfação das relações? Vai participar da reunião de trabalho ou no almoço de domingo da família?”, questiona. Para o psicanalista, o sujeito pode acabar sacrificando outras partes de sua vida em prol daquilo, deixando de se relacionar, de comer ou dormir — algo que vem acontecendo com cada vez mais frequência em muitas tendências que fazem sucesso entre as novas gerações.
“Ele passa a ser invadido pela informação, pelo entretenimento e por todas essas teses. Isso vai fazendo com que o sujeito se sinta perseguido por tudo, a não ser que esteja shiftando, a não ser que esteja fugindo.”
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