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ArtigoFugir das notícias é o melhor que você pode fazer
Essa falta de interesse não é relacionada apenas ao medo de se deparar com uma nova tragédia, mas à crise do modelo de negócios do jornalismo como um todo
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Essa falta de interesse não é relacionada apenas ao medo de se deparar com uma nova tragédia, mas à crise do modelo de negócios do jornalismo como um todo
É melhor fugir das notícias. Pelo menos é o que 47% dos brasileiros acham, de acordo com o último relatório do Reuters Institute for the Study of Journalism. Essa é uma tendência global que só vem se acentuando nos últimos anos.
De fato, a vida não está fácil para quem tem o hábito de ler jornal. Homem-bomba, planos detalhados de golpe de Estado que incluem assassinato do presidente eleito e seu vice, políticos querendo, mais uma vez, acabar com direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, a inação do mundo diante da crise climática. Tudo indica que o que nos espera no futuro próximo e aparentemente inevitável não é nada bom. Por que, então, sofrer a conta-gotas, lendo sobre o fim do mundo todos os dias? Fugir de uma dose diária autoinfligida de desalento não parece uma escolha tão absurda.
Mas não podemos culpar apenas a perspectiva de um apocalipse na esquina pela falta de interesse pelas notícias. Essa é uma crise que não começou hoje e é alimentada, entre outras coisas, pela falência do modelo de negócios do jornalismo, mudanças no comportamento do consumidor de notícias, falta de confiança nos meios de comunicação e novos lugares de autoridade e alcance quando falamos de produção e circulação de informação.
O jornalismo faz parte de memórias importantes da minha infância. Me ajudou a identificar interesses e aprender sobre o que me emocionava. Desde muito cedo entendi que é uma parte fundamental da história política do Brasil. Em 1984, meus pais me levaram com meus irmãos ao comício das Diretas já!. Éramos pequenos, saímos do metrô vestidos de amarelo e imediatamente estávamos no meio de uma multidão na Praça da Sé.
A manifestação reuniu 300 mil pessoas em um país que ainda vivia à sombra da ditadura. Eu não entendia completamente o contexto político, mas além de sentir a euforia dos meus pais e de seus amigos, sabia que se tratava de uma conquista que passava por justiça, política e liberdade. Lembro de sentir um pouco de medo por conta do mar de gente que nos cercava, mas estava sobretudo feliz de estar ali e fazer parte. No dia seguinte, a foto icônica estava na capa da Folha de S.Paulo. Me vi no jornal, e tive certeza de que estávamos mudando alguma coisa.
Em 1987, minha mãe me explicou como o jornalista Jânio de Freitas havia antecipado o resultado de uma licitação do Governo Federal. Ela me contou essa história mostrando o jornal como se fosse um thriller. As construtoras concorrentes haviam combinado entre si como se daria a partilha dos contratos. Para revelar o esquema de corrupção, Jânio de Freitas publicou o resultado antecipado no caderno de classificados da Folha dias antes de ser anunciado oficialmente. Me lembro de acompanhar completamente encantada a ideia de que havia algo tão engenhoso e poderoso, capaz de fazer denúncias dessa magnitude.
Infelizmente, o jornalismo não ocupa mais esse lugar. Perdeu relevância e autoridade e, junto com isso, vem perdendo muito dinheiro. Uma “tempestade perfeita” que faz com que estejamos diante do risco de um evento de extinção em massa: “Os anúncios são escassos, o tráfego vindo da busca e das plataformas sociais está morrendo e os leitores estão esgotados. O futuro exigirá repensar fundamentalmente a relação da imprensa com o seu público”.
Os meios de comunicação viraram apenas uma parte e talvez a mais frágil de uma engrenagem que mudou completamente como nos informamos. As plataformas de tecnologia – Google, Meta, Tik Tok, Youtube – são as grandes mediadoras entre nós e as nossas audiências. O algoritmo decide quem vai ler o que, como vai ler e por quanto tempo. Elas também se tornaram um lugar mais eficiente para a veiculação de anúncios e hoje dominam a publicidade digital. Em 2021, a receita de publicidade da Amazon foi maior do que toda a receita de publicidade dos jornais globalmente. Alphabet (empresa que inclui Google e Youtube) e Meta dominam esse mercado. Entender o modelo de negócios do jornalismo, as relações de poder que organizam esse ecossistema e saber como ele é financiado são problemas da indústria que precisamos debater.
Os meios de comunicação viraram apenas uma parte e talvez a mais frágil de uma engrenagem que mudou completamente como nos informamos
Dependemos estruturalmente das plataformas de tecnologia e nossa agência sobre a informação está cada vez menor. A assimetria de poder que pauta a relação entre empresas de tecnologia e as organizações de mídia é cada vez maior. Ao redor do mundo, empresas de mídia estão tentando se reinventar transformando seu modelo de negócios. Foco em assinaturas e diversificação de fontes de receita, como é o caso do New York Times, campanhas para ampliar o apoio financeiro, como fez o Daily Maverick, modelos mistos que incluem endowments, como é o caso do Guardian ou da Piauí. Inevitavelmente, qualquer esforço nesse sentido terá que passar por uma nova visão sobre o papel do jornalismo nos dias atuais, sobre novas formas de chegar e se relacionar com a audiência e como reverter essa dependência em relação à tecnologia. Não por acaso, hoje temos ao mesmo tempo grupos de mídia assinando acordos de licenciamento com empresas de Inteligência Artificial e outros processando essas mesmas companhias. Se há um futuro possível para o jornalismo, ele passa por uma nova visão para essa indústria e uma maior independência em relação à tecnologia.
Isso não significa que jornais não tenham responsabilidade alguma por essa crise. Segundo o Reuters Institute, a confiança na mídia no Brasil vem caindo ano a ano. Para os entrevistados, os elementos que informam essa percepção estão associados a transparência dos princípios editoriais, comunicação de padrões éticos e redução dos conflitos editoriais e vieses.
Essas são questões que rondam a mídia brasileira de diversas maneiras — um “dois ladismos” nocivo, conteúdos publicitários disfarçados de editoriais e outras decisões de negócio podem colocar em xeque a ética de qualquer projeto editorial, mesmo aqueles centenários. Não podemos esquecer que no meio de uma pandemia que matou mais de 700 mil pessoas no Brasil, onde a desinformação teve papel chave, alguns dos principais jornais brasileiros publicaram anúncios de tratamento precoce, para o qual não há comprovação científica. O anúncio foi patrocinado por uma associação de médicos com reconhecido viés político. Todo mundo tem que pagar as contas, mas também temos escolhas a fazer. O Guardian, por exemplo, não aceita publicidade de Bets. Aqui na Gama também não aceitamos. Se os jornais não forem os guardiões da sua própria ética, por que as pessoas deveriam lê-los?
Não podemos culpar apenas a perspectiva de um apocalipse na esquina pela falta de interesse pelas notícias
O título deste texto é intencionalmente quase caça-clique. Um recurso utilizado à exaustão para fisgar a audiência no meio da batalha por atenção. Um clique é uma visita ao site, uma visualização de publicidade digital, uma migalha de receita para os produtores de notícias. Quando estava fazendo a pesquisa que ajudou a criar o modelo editorial do Nexo, passei pela notícia “Luciana Gimenez nega que tenha engravidado em um canil”, publicada em um dos maiores portais de notícias do país (deem uma busca no Google. As notícias estão lá até hoje). Qual o valor jornalístico dessa informação? Nenhum. Qual a sua capacidade de atrair cliques? Inquestionável. Eu mesma cliquei para saber do que se tratava. Ao se submeterem à ditadura da audiência, os jornais adotaram o vale tudo por engajamento e imediatamente fragilizam seu valor e relevância.
Regulação das plataformas, novos modelos de negócio, encarar de frente e com estratégia as mudanças que a inteligência artificial trará para o ambiente de informação. Todas essas são ações urgentes e incontornáveis. São também complexas. Entre elas, uma sempre esteve ao nosso alcance: apostar na qualidade. A Agência Pública revelou a história do fundador da Casas Bahia, Samuel Klein. que manteve durante décadas um esquema de exploração sexual de crianças e adolescentes dentro da sede da empresa. O Joio e o Trigo mapeou a ofensiva da indústria do tabaco, por meio da British American Association, no mercado brasileiro. O premiado Projeto Querino nos fez rever a história do Brasil. A edição da Gama sobre saúde mental nas escolas mostrou como o tema é urgente para o país. O jornalismo está inegavelmente em crise, mas diante de tantas urgências no mundo nunca foi tão fundamental.
Vivemos, no entanto, em uma época em que as pessoas não apenas escolhem qual meio de comunicação vão ler ou não. Elas escolhem em quais fatos vão acreditar. Num país onde o mercado de comunicação é extremamente concentrado, os meios de comunicação estão sendo capturados por interesses políticos, religiosos e comerciais, e temos cada vez menos leitores, o futuro do jornalismo e das notícias não é um problema dos jornalistas, mas de todos nós.
Paula Miraglia é co-fundadora, diretora geral e publisher da Gama Revista. Também é fundadora da Momentum Journalism & Tech Task force. Além disso, co-fundou e dirigiu por oito anos o Nexo jornal. Paula é doutora em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo, onde também concluiu seu mestrado e a graduação em Ciências Sociais.
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