Como deixar a cidade grande para se refugiar no campo — Gama Revista
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Ilustração de Isabela Durão

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5 dicas

Como deixar a cidade grande para se refugiar no campo

Trocar o cotidiano caótico de uma metrópole por uma vida mais tranquila na zona rural é possível, mas, segundo especialistas, exige trabalho pesado, conhecimentos específicos e preparação financeira

Ana Elisa Faria 01 de Dezembro de 2024

Como deixar a cidade grande para se refugiar no campo

Ana Elisa Faria 01 de Dezembro de 2024
Ilustração de Isabela Durão

Trocar o cotidiano caótico de uma metrópole por uma vida mais tranquila na zona rural é possível, mas, segundo especialistas, exige trabalho pesado, conhecimentos específicos e preparação financeira

Morar no campo, em meio a natureza mesmo, pode oferecer benefícios que atraem quem vive em metrópoles caóticas. E uma parcela escolhe especificamente mudar para as áreas especificamente rurais. Nesses casos, essa troca pode ser idealizada como uma rotina idílica e sem dificuldades. No entanto, viver em um sítio, uma área rural, exige trabalho duro, preparação financeira e capacidade de adaptação.

Edilson Cazeloto, 53, hoje conhecido como o Dirço do sítio Pau d’Água, saiu da capital paulista, onde se formou como jornalista e trabalhava como professor de pós-graduação, para se tornar permacultor e morar em Piracaia, no interior de São Paulo. Ali, promove cursos e eventos nas áreas de permacultura, bioconstrução, agroecologia, saúde integral e cultura popular. Cazeloto conta que é essencial se planejar financeiramente e aprender novas habilidades antes de se mudar. “Para essa transição, o melhor dinheiro gasto é em conhecimento e ferramentas.”

O paulistano Marcelo Delduque, 51, também formado em jornalismo, trabalha há cerca de uma década como paisagista e administra, ao lado do irmão, a Fazenda Serrinha, um espaço em Bragança Paulista para imersões, ações educativas e retiros com o objetivo de resgatar os processos da natureza por meio de experiências criativas. Assim como o ex-colega de profissão e neorrural — pessoas que deixam as cidades e passam a viver nas áreas rurais — como ele, Delduque aponta que o campo pode ser desafiador.

“As pessoas romantizam, mas o trabalho físico é puxado. A terra te consome e você precisa lidar com o imponderável o tempo todo”, lista.

Internacionalista de formação, Renata Cabrera de Morais, 36, atualmente é secretária municipal de Cultura, Turismo, Esporte e Lazer de Jarinú, em São Paulo, cidade onde nasceu e para onde voltou depois de anos vivendo mundo afora. Autora do livro “Do Campo à Mesa – Como Criar Seu Próprio Roteiro de Turismo Gastronômico” (2024; edição independente), ela decidiu entrar de cabeça na causa da produção de alimentos e da agricultura familiar, estudando sobre permacultura e agrofloresta.

“Quando você é uma criança de sítio, tem vergonha por não ter uma vida dinâmica e cosmopolita. Agora é o contrário, todo mundo acha isso um luxo. Hoje, valorizo demais o que tenho e a oportunidade de ter me reconectado com a ancestralidade da minha família”, reflete Morais.

Para quem está pensando em deixar o meio urbano e rumar para o interior rural, Gama ouviu esses três especialistas que deram dicas essenciais para garantir uma transição mais tranquila e bem-sucedida.

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    Invista em ferramentas e conhecimento em áreas como botânica, elétrica, agroecologia e reparos em geral –
    Para que a mudança da cidade grande para a zona rural seja bem-sucedida, é essencial investir em conhecimento sobre diversas áreas, como meio ambiente, botânica, elétrica, agroecologia e reparos em geral. “Senão, a pessoa fica dependente da contratação de mão de obra para fazer coisas básicas, por exemplo, instalar uma cerca, reparar um poço, podar uma árvore ou roçar o terreno. Isso é caro e, muitas vezes, não há profissionais em abundância disponíveis no campo”, explica Edilson Cazeloto. Além disso, frisa, a falta de fundamentos teóricos, práticos e empíricos pode levar à destruição da natureza e até ao cometimento de crimes ambientais. Para que nenhum problema do tipo ocorra, ele recomenda a realização do Curso de Design em Permacultura (PDC) — oferecido por instituições de ensino e em fazendas e sítios —, que dá uma base para o planejamento de propriedades sustentáveis. Além disso, Cazeloto destaca que materiais de qualidade são indispensáveis. O permacultor comenta que, para ter maior independência, fez também cursos de construção civil e pintura. “Eu sempre digo que, para essa transição, o melhor dinheiro gasto é em conhecimento e ferramentas.” Renata Cabrera de Morais reforça a importância do aprendizado contínuo que vem com o dia após dia e as mãos na terra. “A agricultura é algo que se aprende fazendo mesmo”, diz. Ou seja, é na prática que se compreende certas sutilezas do solo, das plantas e do clima. Marcelo Delduque enfatiza que ler a respeito do trabalho campestre é, sim, importante, mas que os conteúdos muito técnicos podem acabar assustando. “Para mim, fez mais sentido aprender praticando, fazendo e errando”, afirma. “Na verdade, é um mix de tudo: conhecimento, planejamento, se jogar na terra e se dispor a experimentar e a errar. Acho que é muito rico.”

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    Prepare-se financeiramente para a mudança. Reduzir a dependência do dinheiro é crucial –
    Embora a vida em um sítio, em uma fazenda ou numa chácara possa ser mais barata, sem seduções a cada esquina que levam ao consumismo, ela exige preparação e reestruturação financeira. “Na cidade, tudo envolve dinheiro, desde a água que bebemos até o lazer. No campo, você precisa aprender a produzir parte do que consome. Eu vivo hoje com aproximadamente 20% do que ganhava em São Paulo”, analisa Edilson Cazeloto. Cazeloto fala que dá para viver com dignidade e qualidade, porém, é necessário se conscientizar de que os ganhos serão menores. Renata Cabrera de Morais complementa: “Se você não tem um plano certo para a sua fonte de renda, pode enfrentar dificuldades.” Trabalhar remotamente ou investir em uma atividade local, como o turismo rural ou a produção de alimentos, são boas opções. Marcelo Delduque cita ainda que os custos inesperados em um lar na roça podem ser frequentes. “Não tem companhia de água para resolver os seus problemas se uma bomba quebra ou um poço seca”, cita o paisagista. É você quem precisará lidar com isso e com os possíveis gastos relacionados ao problema da vez. Outra dica é não subestimar os custos iniciais da mudança. Em um primeiro momento, além do investimento em uma propriedade, há gastos com ferramentas, insumos, reformas e construções.

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    Busque comunidades neorrurais e participe dos eventos locais. Fazer novas amizades é fundamental –
    Encontrar uma rede de apoio e fazer novas amizades é fundamental para quem está se mudando para o campo. Afinal, “nenhum homem é uma ilha”, como já dizia o poeta inglês John Donne. Edilson Cazeloto conta que muitos recém-chegados à vida campestre acabam se unindo a outros neorrurais [grupos que viveram em contextos urbanos e decidem migrar para áreas rurais], seja em comunidades ou na vizinhança. “Há locais que se tornaram polos para quem quer começar a viver no interior, como o núcleo Catuçaba, em São Luiz do Paraitinga [São Paulo], Caxambu, na Serra da Mantiqueira [Minas Gerais], e Secretário, na serra fluminense. Isso ajuda na adaptação porque as pessoas ficam próximas a quem compartilha experiências e valores similares.” A jarinuense Renata Cabrera de Morais acredita que a integração com os moradores locais é igualmente importante e, para isso, indica participar das festas tradicionais da cidade, das feiras agrícolas e dos eventos organizados pela igreja. “No interior, geralmente, as relações são mais simples e fáceis. Aquele bom dia cotidiano na rua já pode abrir portas para novas amizades”, garante. Ela também sugere buscar cursos e formações promovidos pelas prefeituras, ocasiões propícias para criar laços e entender a dinâmica da região. Participar de vivências e retiros nas redondezas pode ajudar nessa interação, sobretudo com outros forasteiros.

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    Faça um “test drive” antes de fugir da cidade de vez. A vida rural é boa, mas pode ser dura –
    Não se comprometa com a compra de um terreno ou faça uma mudança definitiva por impulso. Antes de fugir da cidade grande de vez, que tal experimentar o ritmo do campo vivenciando a rotina local? Dá para passar um fim de semana estendido em uma pousada e depois alugar um espaço para ficar por uma temporada maior. Cuidar de uma horta ou administrar um espaço, por menor que seja, com plantações e animais, requer um trabalho constante. Por isso, essa experiência inicial permite entender se o dia a dia rural realmente combina com você e com a sua família. Edilson Cazeloto, do sítio Pau d’Água, faz um alerta, dizendo que é comum os neorrurais chegarem por ali imaginando um cotidiano idílico. “As pessoas acham que vão morar ao lado da dona Benta e da tia Nastácia e que, diariamente, alguém vai bater à porta para oferecer um bolo recém-saído do forno.” Segundo o permacultor, a vida no campo não é bolinho — ao contrário. “Muitas vezes, há conflitos com a vizinhança, problemas que têm de ser geridos coletivamente. É ótimo viver aqui, claro, mas nem tudo são flores e natureza exuberante. É uma vida que exige trabalho, dedicação e paciência”, assegura. O paisagista Marcelo Delduque, da Fazenda Serrinha, em Bragança Paulista, tem a mesma visão. Para ele, quem vive nas metrópoles, em meio à poluição, à correria e ao trânsito, acaba romantizando o viver no campo. “Mas, fisicamente, é puxado. Trabalha-se muito, é desgastante. Você fica debaixo de sol e chuva. O trabalho é totalmente exposto à natureza e ao imponderável. Como a terra é viva, o tempo todo é preciso ficar atento ao que pode acontecer.”

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    Escute o que o povo do campo diz e lembre-se de que eles chegaram ali antes de você –
    Um dos maiores desafios para quem sai da cidade grande e vai para a zona rural é a convivência com os moradores locais, o que demanda disposição para novos aprendizados, uma escuta humilde e respeito pela cultura campesina. Lembre-se: você está entrando em um espaço que já era ocupado por aquele grupo. “Tenha muita humildade, não chegue com arrogância dizendo como as pessoas devem pensar ou agir. Ouvir bem mais do que falar, entender e ir pisando de mansinho é mais aconselhável do que querer modificar o mundo ao seu redor”, diz Edilson Cazeloto. Por exemplo, algumas práticas tradicionais podem parecer erradas, mas têm uma lógica local. Ao mesmo tempo, é importante dialogar e propor mudanças razoáveis, especialmente aquelas relacionadas ao uso de agrotóxicos e a técnicas sustentáveis. Entretanto, sempre com o respeito. Renata Cabrera de Morais enfatiza a relevância dessa troca. “Tem que ter muita resiliência, mas acredito nesse movimento que vai contribuir para que a agricultura vá por um caminho de maior sustentabilidade, preservação e que o olhar para a natureza seja mais sensível. É interessante quando você vê alguém de fora chegando e conseguindo fazer essas relações com o entorno, tornando-se complementar. É um aprendizado mútuo.”