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ConversasSandra Benites: 'É preciso escutar mais as culturas historicamente silenciadas'
Primeira curadora indígena do Masp defende a união de diferentes povos para resistir a momentos como o atual: ‘Nossa resistência está na sabedoria ancestral’
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Sandra Benites: ‘É preciso escutar mais as culturas historicamente silenciadas’
Primeira curadora indígena do Masp defende a união de diferentes povos para resistir a momentos como o atual: ‘Nossa resistência está na sabedoria ancestral’
Antes de encerrar a conversa com a Gama, a antropóloga e educadora Sandra Benites se desculpa e diz que ainda é difícil traduzir determinadas ideias para o português. Natural da etnia Guarani Nhandewa da aldeia de Porto Lindo, no Mato Grosso do Sul, professora de artes desde 2004, ela é mestre e doutoranda em antropologia social pelo Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, mas diz que só hoje, aos 46 anos, consegue compreender e traduzir certos costumes.
“Fui alfabetizada em uma língua que não conhecia. E a língua não é só traduzir ou entender, tem outras questões fundamentais. Nós, indígenas, nos sentimos parte da natureza, e não fora. Por isso a importância de hoje a gente se escutar mais e entender quais são as culturas mais silenciadas”, diz.
Sandra conta que hesitou em aceitar o convite para se tornar a primeira indígena curadora-adjunta do Masp, no final do ano passado. Mas encarou o desafio exatamente para dar voz a muitos artistas e intelectuais indígenas que vivem hoje nas cidades e lutam contra um “não lugar”: não são identificados nem como indígenas, nem como negros ou brancos.
“É interessante para mim trazer não só a obra, mas colocar esses artistas para debaterem, não existia isso. Não dá para a gente colocar [em exposição] um objeto que muitas vezes é sagrado para um determinado grupo, como o maracá, e não discutir”, afirma.
Na conversa a seguir, Sandra Benites, que foi perfilada pelo New York Times ao assumir o cargo, conta como a visão cosmológica de nossos povos originários ensinam a superar momentos como o atual, de ataques a muitos direitos historicamente conquistados. E diz como a arte também pode ser uma forma de resistência.
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G |Você se tornou curadora adjunta do Masp no ano passado, a primeira indígena. Na ocasião, você disse que ia utilizar a arte como ponte entre os povos indígenas brasileiros e as populações de outras origens. Como isso está sendo feito?
Sandra Benites |Em primeiro lugar, pensei muito quando recebi o convite. Para mim, foi um desafio. Pedi ajuda ao conselho, aos próprios artistas indígenas e também aos não-indígenas que trabalham nessas áreas para saber como eu poderia abraçar essa causa. São 305 etnias aldeadas, além dos indígenas que moram no contexto urbano. Pensei em dois aspectos: como seria a história contada pelos próprios indígenas e as narrativas do processo da colonização desde a invasão.
Nós indígenas, não só brasileiros, narramos nossa história a partir de nossa perspectiva de mundo. Cada etnia tem a sua forma de contar a origem do mundo, passando de geração para geração, na tradição oral. Para nós guaranis, por exemplo, os urubus eram pessoas sábias. Elas se transformaram em urubus, que entendemos como protetores contra doenças, protetores de crianças.
Então é importante preservar essa cultura e se relacionar com o mundo a partir dela. Embora soframos violência desde a colonização, conseguimos avançar e caminhar até hoje resistindo por meio dessa sabedoria. Por isso é importante contar essas narrativas, como a da colonização, a partir da visão de mundo dos próprios indígenas. Esses dois aspectos têm que caminhar juntos para que a sociedade entenda que temos outra metodologia de preservar a natureza, os seres da terra. Como pensar isso em uma exposição? É outro desafio.
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G |A sua contratação pelo Masp também foi saudada como um caminho para construção de narrativas mais inclusivas, o que é estranho se pensarmos que a arte indígena sempre esteve presente nos museus, só que apresentada por artistas brancos. O que muda quando está sob a curadoria de uma mulher indígena?
Sandra Benites |Comecei a pesquisar muito os artistas de obras de arte que dialogam com essas narrativas. Existem vários, não só artistas como acadêmicos indígenas e intelectuais que trazem nas obras a visão de luta na qual estão inseridos, seja na cidade ou na aldeia. São artistas como a Sallisa Rosa, uma mulher indígena que mostra muito os conflitos por não ter nascido e não estar numa aldeia. Muitos indígenas que vivem hoje nas cidades lutam contra esse não lugar: não são identificados nem como negros, nem como indígenas nem como brancos. Isso é resultado de como a colonização ocorreu. É interessante para mim trazer não só a obra, mas colocar esses artistas para debaterem; não existia isso. Não dá pra gente colocar [em exposição] um objeto que muitas vezes é sagrado para um determinado grupo, como o maracá, e deixar lá parado. Não se discute para que serve, se é importante mostrar ou não. Muitas das vezes, por não ter esse debate, acaba se reforçando esses estereótipos sobre o próprio indígena, como se aquele objeto estivesse no passado. Hoje, entendendo esse contexto, trago mais essas provocações. Houve muitas perguntas para mim sobre o que eu iria mudar. Eu não pretendo mudar nada no Masp, pretendo somar, levar algo que acredito que seja fundamental.
Não dá pra gente expor um objeto que muitas vezes é sagrado para um determinado grupo, como o maracá, e não se discutir
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G |Você já disse que, como estudante, não viu nos livros, mesmo em escolas indígenas, nada em que pudesse se reconhecer. O que te fez persistir nos estudos?
SB |Tive muita dificuldade também como professora. Fui uma aluna alfabetizada em português. Eu não sabia falar o português, mas fui alfabetizada em uma língua que não conhecia. E a língua não é só traduzir ou entender, tem outras questões fundamentais. Quando virei professora, em 2004, eu ficava muito confusa num primeiro momento, mas depois fui entendendo que a educação escolar é uma instituição que vem de fora com uma proposta. E a educação guarani tem a ver com nossa relação com o mundo, com a terra, é um processo para a vida, não simplesmente aprender a falar e escrever em português. Escrevi minha monografia sobre isso, o olhar da escola sobre a educação guarani. O que seria a educação de qualidade para os guaranis? Não é ser fera em física e química, resolver problemas. É claro que é importante aprender física ou química, mas não é prioridade para o processo de crescimento guarani. Nós temos ritos de passagem para meninas e meninos. Durante esse processo para a vida adulta, que dura dois anos, eles vão ter que aprender a lidar com o entorno, saber plantar, saber pedir para o espírito das árvores, dialogar com os rios. Para a grande maioria dos indígenas, essa relação com os seres da terra é fundamental. Por isso digo que a educação escolar é outra coisa. Tenho 46 anos e agora que começo a compreender e traduzir do meu costume para o português. Tem coisa que não consigo traduzir, porque não é palavra, é o costume, a filosofia de vida. A gente se sente parte desses elementos, e não fora. É importante que se abra uma brecha para que esses dois conhecimentos em algum momento entrem em harmonia, o que também é um desafio. Por isso a importância de hoje a gente se escutar mais e entender quais são as culturas mais silenciadas.
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G |Numa reportagem do New York Times, você disse que a própria história indígena ensina os povos a resistir a momentos como o atual. De que maneira essa resistência é aprendida?
SB |Nossa resistência está na sabedoria ancestral. Não está só nas pessoas, mas também nas árvores, rios, animais, no que é humano e não humano. Está na memória, e essa memória pode nos levar a um futuro melhor. Vamos trilhando outros caminhos a partir dessas nossas memórias ancestrais. As narrativas que os indígenas contam ligadas com essa visão cosmológica da origem do mundo de cada etnia mostram para gente como seguir adiante. É a base fundamental para a gente seguir resistindo. Quando falamos sobre essa ideia de que você tem que pedir ao espírito das árvores ou do rio, precisa fazer um ritual para derrubar uma árvore, por exemplo, e fazer uma casa, é exatamente pensando no futuro, na nossa continuidade. Essa é nossa grande sabedoria e nossa resistência. Se tivesse mais escuta dos indígenas, estaríamos construindo outros caminhos. Nós fomos silenciados desde a invasão colonial. Nunca houve essa escuta da sabedoria que carregamos. Não estou falando que só nós sabemos dessas coisas, também existem não indígenas estudiosos, pesquisadores que falam a mesma coisa mas com outra linguagem, aqueles que lutam pela natureza. Quando se fala para o menino que está crescendo: “Se você vai cortar essa árvore, tem que pedir para os espíritos”, isso quer dizer preservar para outras gerações. Falamos da mesma coisa, mas falta esse entendimento de escuta.
Indígenas protestam sob chuva na Praça dos Três Poderes, em Brasília
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G |No mês passado, sob forte protesto, tivemos a aprovação em uma comissão da Câmara do projeto que dificulta a demarcação de terras indígenas e abre brechas pra exploração dos territórios, inclusive de comunidades isoladas. O que significa essa possibilidade?
SB |Acredito que podemos evitar que essas leis sejam aprovadas nos unindo. Quando se permite que se invadam territórios indígenas e explorem a qualquer preço, não prejudica somente os indígenas, mas todos nós. Então, temos que nos unir pela única luta. Não só nós temos que falar sobre a importância desses elementos. Não somos os únicos a ocupar esse espaço. Estou te dando essa entrevista e isso ajuda a dialogar e a levar essa voz silenciada. Mas é importante a gente se unir, não só pela demarcação de terra, mas por todos nós. Nosso futuro pode ser prejudicado por essa lei. Eu como pesquisadora, mulher, mãe e avó não estou preocupada só comigo, mas pelo futuro dos meus netos. Eles também serão vítimas dessa violência se a gente não lutar por eles.
A nossa filosofia de vida não gera dinheiro. Respeitar a diversidade não dá muito lucro. Por isso até hoje existe essa ideia do indígena atrasado, que não produz
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G |Existe, de parte da população e de políticos que defendem projetos como esse, uma ideia de que indígenas que vivem em suas comunidades seriam brasileiros atrasados, que vivem em terras com muitas riquezas sem se beneficiar disso. Como combater esse tipo de visão estereotipada?
SB |Quando a colonização invadiu o que é hoje o território brasileiro, só existiam limites entre a diversidade. Não tínhamos essa ideia de que esse lugar é Paraguai e esse é Brasil. Tínhamos autonomia, cada povo respeitava a autonomia do outro. Temos esse entendimento de que nós, seres da terra, precisamos viver nela da forma que cada um quiser. Por isso os colonizadores projetaram essa ideia que o indígena não tinha rei, nem regras, nem alma. Hoje, esse PL 490 [projeto de lei que muda demarcação de terras indígenas em tramitação no Congresso] quer reconhecer as terras indígenas só a partir de 1988, como se nossa história começasse a partir da Constituição. Mas a verdade é que desde a invasão colonial fomos perdendo o direto à terra, sendo silenciados. A nossa filosofia de vida não gera dinheiro. Respeitar a diversidade não dá muito lucro. Existiam muitos indígenas falantes de línguas diferentes, com organizações diferentes, mas todos vivíamos da terra, compartilhando o mesmo espaço. Por isso até hoje existe essa ideia do indígena atrasado, que não produz, não se desenvolve. É o projeto que a colonização implantou desde que invadiu esse território.
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G |A arte pode ser uma forma de resistência?
SB |É uma forma de resistência porque é uma forma de atravessamento do outro, de diálogo com o outro, suas diferenças e diversidade. Muitos indígenas trabalham com essa ideia com a música, o canto, a obra de arte, a pintura, o audiovisual. É uma forma de atravessar o outro. Até a própria alimentação: muito do que nós comemos e apreciamos não questionamos qual é a origem. E hoje é fundamental saber essas origens. Nós fomos cruzados de várias formas a partir da arte e da cultura. Por isso é importante saber respeitar seus autores, os elementos que a produzem.
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CAPA De quem é a causa indígena?
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