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RelaçõesQue pode uma criatura, senão, amar
Gama foi atrás de histórias de amor verdadeiras, viscerais. Prepare-se para rir, chorar, se apaixonar
- amor
- comportamento
- LGBTQI+
- relacionamento
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RelaçõesQue pode uma criatura, senão, amar
Gama foi atrás de histórias de amor verdadeiras, viscerais. Prepare-se para rir, chorar, se apaixonar
“Peguei um ônibus com uma mulher alta, negra, vestindo um uniforme de vôlei. Fiquei totalmente apaixonado. A gente desceu no mesmo ponto, ela foi andando em direção à quadra e eu pensei em quando iria encontrá-la de novo. Resolvi procurar no Orkut, em uma comunidade de vôlei da cidade. Encontrei alguém com as suas características — para mim, era ela — e vi que em seu perfil tinha um e-mail. Uma semana depois, mandei uma mensagem me declarando. Expliquei que a vi no ônibus, que fiquei encantado. Recebi uma resposta de que talvez eu estivesse confundindo as pessoas. Devolvi com um “Legal. Mas quem é você?”. Ela havia jogado vôlei durante um tempo e conseguiu identificar a mulher que eu tinha visto no ônibus, chegou a dizer que poderia apresentá-la a mim. Mas eu fiquei mais interessado nas respostas dela do que na imagem que me encantou. A gente foi conversando, deu match, o santo bateu. Estamos casados desde 2013.”
“Eu e Roberto nos conhecemos na escola, começamos a namorar logo depois de formados e ficamos juntos por um ano. Um dia ele disse: ‘Olha, nós vamos nos casar daqui a 12 anos. Mas, até lá, temos de conhecer outras pessoas, aproveitar a vida de outro jeito, ter experiências’. Eu fiquei na maior fossa. E ele daquele jeito, falando que estava muito envolvido, mas que achava que a gente tinha que esperar. Nos separamos, mas não perdemos o contato. Eu tive outros relacionamentos, ele também. As namoradas tinham muito ciúme de mim. Ele vinha com essa conversa de que namorava outras, mas eu era a pessoa com quem ele ia se casar. Meio que ao acaso, foi exatamente o que aconteceu. Nos reencontramos em uma festa, ele estava terminando um namoro e eu saindo de uma relação. Começamos a namorar de novo. Tivemos dois filhos e ficamos mais de 20 anos casados. Hoje, estamos separados.”
“Eu me casei com o Leo em 1957. Estávamos juntos há 31 anos quando nos separamos por motivos que não importam agora. Mas eu nunca tive raiva, nunca me vinguei, continuamos amigos. Tive com ele três filhas. O Jorge, irmão do Leo, morava perto da minha casa. O Leo foi embora e ele ficou. Jorge era muito bom pra mim, adorava crianças, tínhamos muito em comum. Nos casamos em 1996. Um ano depois do nosso casamento ele descobriu um câncer, e eu fiquei o ano seguinte inteiro cuidando dele. Ele morreu no dia do nosso segundo aniversário de casamento. Gostar do casamento o Leo não gostou, mas, se ficou bravo, problema dele. Na família a minha união com o Jorge não foi um problema porque eu o afastei da bebida, o levei para um bom caminho. Ele mudou completamente quando entrou na igreja, e por isso me casei com ele. Muito tempo se passou, e eu e o Leo passamos a ter contato de vez em quando. Quase 30 anos depois, ele quis voltar. Mas eu gosto de homem que frequenta a igreja, não posso conviver com uma pessoa do sexo oposto assim e não casar. Então, já com 80 anos, acabei casando de novo. Agora estamos juntos até que a morte nos separe.”
“Toco piano desde pequena e sinto que a música é a linguagem em que me expresso melhor. Já o Carlos, meu marido, tem uma relação distante, racional. Com isso, a música acabou ocupando um espaço lateral na minha vida. Até que conheci alguém com quem tive uma afinidade imediata, com uma troca intensa sobre bandas e canções. O contato com o Igor – um cara lindo, muitos anos mais jovem, estagiário na minha empresa – foi transformador. A gente falava de música sem que eu precisasse explicar muito. Não sei se o que senti foi amor, paixão ou apenas uma amizade profunda atravessada por um desejo intermitente — nunca chegamos a mais do que um beijo. Acabei me afastando. Era como se tivesse um amante que não me dava o que eu queria até o fim. Meu casamento ficou abalado e, desde então, se criou uma sombra, marcada pela percepção de que há toda uma vida que eu ansiava mas não havia vivido.”
“Ano passado, fiz uma viagem pela Europa com amigos. Em Lisboa, dei match com um cara em dois aplicativos diferentes. Já era meu penúltimo dia lá e a gente marcou de se encontrar. Era de noite, ele me levou para passear na cidade, me mostrou Lisboa inteira. A gente ficou até seis da manhã rodando pelos lugares, uma coisa meio o filme ‘Antes do Amanhecer’, do Richard Linklater. Me apaixonei já naquele dia. Desde que voltei, raramente ficamos um dia sem conversar: falamos por horas, temos referências parecidas, interesses complementares. Ele veio visitar o Brasil uma semana antes do Carnaval, e foram os dias mais intensos e bonitos que já tive num relacionamento. A gente se pediu em namoro, fez declarações de amor. A despedida foi triste, chora, volta logo, um milhão de planos. Inclusive ele tinha gostado tanto do Brasil que estava querendo vir morar aqui, talvez se dividir entre os dois países, falamos até em casar para facilitar a vinda dele. Planejava ir vê-lo em março, justamente quando explodiu a pandemia. Toda essa situação é meio esquisita, já é um relacionamento atípico, e agora ficou ainda mais difícil com essa barreira intransponível que é não poder viajar. Vislumbrar uma história, construir um relacionamento é uma coisa que a pandemia roubou da gente. Mas a gente tá levando, conversando, tentando manter aceso. E eu já tentei até fazer uma pré-reserva de passagem. Quando as fronteiras abrirem, a primeira coisa que vou fazer é ir pra lá. Se dá medo? Bom, eu sou meio impulsivo, passional, talvez seja porque sou de escorpião. Então, assim, é louco? É. Mas poucas vezes me apaixono, e não tenho problemas em investir minhas fichas em uma coisa que eu queira muito. Acho que a gente tem que arriscar na vida. Às vezes me sinto egoísta por estar preocupado com um interesse individual, colocando ele acima dos coletivos. Mas é inevitável. Eu tenho 39 anos e achei que nunca mais fosse me apaixonar dessa maneira.”
“Eu fui casada durante dez anos. Fiquei viúva aos 40, com dois filhos pequenos. É chocante ficar viúva aos 40 anos: a vida como você conhece desmorona, e dali começa a reconstrução de outra vida. Em um primeiro momento, achei que não teria como me relacionar de novo carregando aquela dor. Com o tempo, isso amadurece — mas o luto é algo que carrego até hoje. Uma tragédia como essa muda toda a perspectiva das coisas, e muito do que antes fazia sentido para mim deixou de fazer. Eu sempre tinha sido hétero, mas já desconfiava de que pudesse ser uma heterossexualidade compulsória, embora não conhecesse esse conceito ainda. Aí entrei no Tinder. E vi que não tinha a menor condição de me relacionar com aqueles perfis: fotos de homens com seus carros, usando crachá de firma. Achava tudo muito bizarro. Dentro dessa minha proposta de conhecer o que havia para além da heteronormatividade, comecei a ver perfis de mulheres, que eram muito mais interessantes. Usei o app por menos de um mês. Achei toda a história do Tinder meio esquisita. Até que uma mulher que eu já conhecia — mas que não sabia que eu estava interessada em mulheres — achou meu perfil. Também novata nos apps, ela me deu um superlike sem querer. Diferentemente do like e do dislike, quando você opta pelo superlike, o usuário é imediatamente notificado. Então demos match. Viramos crush. Saímos em um date. Nenhuma dessas palavras fazia parte do meu vocabulário antes, e agora estamos juntas há três anos. Eu sinto um profundo amor pelo marido que perdi. E sinto um profundo amor por essa mulher com quem me relaciono hoje. Agora eu digo que sou ex-hétero. Parece que também tem ‘cura’ hétero.”
“Foi em um baile. Eu tinha 14 e ele 13. Tocou ‘The Miracle’, dos Stylistics, e o Ulisses cantou ‘The sun belongs to the sky, the leaf belongs to the tree, the grape belongs to the vine and you belong to me’. Eu não entendia nada, mas ele me explicou que eu seria dele. Demos o primeiro beijo e eu também percebi que ele seria meu. Filha de japoneses, meus pais não queriam que eu me relacionasse com um gaijin. Ele também era filho de europeus, que não tinham interesse nessa mistura. Namoramos escondido até 1976, quando o pai dele descobriu e assumimos. Éramos apaixonados, íamos nos casar. Mas a mãe dele tinha um ciúme tão grande que armou dele estudar no Canadá. Tudo foi uma armadilha. Ulisses partiu no dia 20 de fevereiro de 1982. Ele chegou a me mandar três cartas antes da ruptura total. Descobri que ele se casou no mesmo ano e, um tempo depois, entendi que a mãe havia inventado uma história sobre uma traição minha. Eu nunca o traí. Foram 35 anos sem saber mais nada. Me casei, tive uma filha, me separei. Até que há três anos o encontrei no LinkedIn. Ulisses me respondeu com uma carta, me chamou de amada, disse que tinha crescido, ficou rico, conquistou tudo, mas sempre foi infeliz. A gente se entende de um jeito que nem precisa falar. Temos um combinado de nos reencontrar no seu aniversário de 60. Espero ansiosa pelo ano que vem.”
“Quando conheci o Otávio eu ainda me adaptava à vida na cadeira de rodas, dois anos depois de um acidente. Estava no quinto ano da faculdade de medicina e fui a uma festa da minha turma com uma amiga. Ela estava segurando o copo dela, o meu copo, câmera fotográfica. O Otávio, que era amigo de amigos, se ofereceu para ajudar. Primeiro, achei que ele estava interessado nela, mas ele veio conversar comigo e passamos a noite inteira juntos. Eu podia perceber o estranhamento de algumas pessoas, mas foi tudo muito natural. No fim da festa, ele me carregou da cadeira até o meu carro com a segurança de quem fazia isso há anos. E a naturalidade não foi só nessa transferência, mas em todas as atitudes. A gente brinca que nosso encontro já é algo de outras vidas. O trauma psicológico do meu acidente foi maior que o físico. Eu era uma pessoa muito ativa, praticava esportes e perdi todos os movimentos do pescoço para baixo. Sou completamente dependente do ponto de vista motor, e foi uma adaptação muito, muito difícil. Estava ao mesmo tempo feliz e fragilizada: voltei a sentir paixão depois de anos de muita dor. Otávio era jovem, bonito, e eu ficava pensando se ele se acostumaria, se não ia sentir falta de um abraço. Na primeira vez que ele oficializou o pedido de namoro, eu recusei. Não conseguia me aceitar, muito menos aceitar que alguém me quisesse. Mas o Otávio me ensinou a voltar a enxergar a mulher que eu era. Ele não via a cadeira de rodas, a deficiência. Ele via uma mulher, um pessoa de que gostava. E a gente combinava no papo, na química. Nos aproximamos cada vez mais, fomos morar juntos. Este ano completamos uma década juntos e decidimos oficializar com uma celebração. Mas não vamos fazer um casamento tradicional – até porque nos sentimos casados desde o primeiro dia em que nos vimos.”
“Eu sou da Guiné Bissau e vim em 2008 para o Brasil estudar oceanografia, na Universidade Federal do Rio Grande. Eu a via todos os dias pela faculdade, linda, andando com os professores. Ela era influente, já estava no terceiro ano do mestrado de física. Fiquei um ano assim, olhando. Então comecei a dar aula em um projeto de extensão, onde ensinava cultura e dança africana. Uma amiga dela, paraguaia, virou minha aluna e então eu criei coragem para pedir o contato. Comecei a conversar com ela bem no momento em que entramos de férias. Fui para Fortaleza e falávamos por ligação de vídeo. Quando voltei, começamos o namoro no mesmo dia e desde então nunca mais nos separamos. Moramos juntos em 2012 e nos casamos em 2015. Em 2017 veio a nossa filha. Já passou uma década, mas parece que ainda estou a conhecendo. Forte e doce, ela é sempre mais do que eu posso imaginar. Recentemente passamos a postar várias fotos de nossa família nas redes sociais e não imaginávamos como nossa família é importante não só para gente. É para os outros também. Muita gente vem falar de como é importante essa representatividade, porque ainda existe muitos estereótipos sobre o homem e a mulher negra, como o pai ausente e a mãe solteira. Todos dizem que somos um exemplo de família e eu sinto que a minha vida simplesmente não existia antes delas.”
“A minha, no entanto, é patética. Eu, gay, me apaixonei por meu amigo hétero. Não gosto de contar. Antes, para não explodir, até sentia prazer em falar. Mas hoje sobrou apenas a libido mórbida e esse gosto por chorar. Quem me dera eu fosse minimalista, porque a história por um ângulo realista é mínima. Um ‘nada aconteceu’ resumiria bem, mas eu gosto de enxergar cada detalhe desse nada. Estou até hoje perdido num mergulho profundo, que me fez perder a noção de para que lado ficou a superfície. E me encontro dividido: volto para respirar ou fico procurando algo dentro desse mar? Estive na areia por um bom tempo, até que te vi do lado de fora de um restaurante que eu frequentava. Você estava careca, tinha acabado de passar na faculdade. Feio de tudo, magricela, mas já ventava. Estava longe de ser o avassalador tornado que virou, mas era uma brisa que batia em mim. Depois, giramos na quadrilha interminável que foi a faculdade. Eu à beira-mar e você me sorrindo na certeza de que eu iria mergulhar. Dito e feito. E foi uma bonita simbiose. Eu respondia aos seus uivos com minhas ondas, seus tornados com meus maremotos, suas tempestades com minhas águas agitadas. Os meus olhos cravaram nos seus, a sua boca se ajeitou no meu paladar, mas eu tive que lembrar do inevitável. O vento é o vento e o mar é o mar. Eles dançam juntos, brincam juntos, brigam juntos, transam juntos, mas jamais estarão juntos. De todos os verbos, o simples ‘estar’ jamais seria alcançado por nós. E, desde então, continuo preso nas águas, sem saber para que lado fica a superfície.”