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ReportagemSem creche e num mercado desigual, como uma mãe consegue trabalhar?
Apesar de avanços na lei, especialistas consideram que o baixo acesso a berçários e a falta de oportunidades comprometem o futuro profissional das mães
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Sem creche e num mercado desigual, como uma mãe consegue trabalhar?
Apesar de avanços na lei, especialistas consideram que o baixo acesso a berçários e a falta de oportunidades comprometem o futuro profissional das mães
Embora a legislação que protege os direitos da maternidade no mercado de trabalho brasileiro tenha avançado nos últimos anos, dados apontam uma realidade arriscada e incerta para quem vira mãe. Com baixo acesso a creches no território nacional, a divisão desigual das tarefas domésticas e maior probabilidade de demissão para as mães — especialmente mães negras —, ter filhos pode causar efeitos devastadores para a carreira e o sustento das mulheres brasileiras.
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Recentemente, o STF aprovou uma extensão da licença-maternidade em casos de longas internações e nascimentos prematuros, com o período passando a ser contado só depois da alta hospitalar da mãe ou do recém-nascido. Antes, os 120 dias da licença-maternidade não levavam em conta possíveis complicações.
Mas, mesmo com avanços como esse, uma pesquisa da Faculdade Getúlio Vargas (FGV) mostra que metade das mães brasileiras perde o emprego cerca de dois anos após ter filhos — um padrão que ganha força quase imediatamente após o tempo de proteção ao emprego que consta na legislação brasileira.
A Constituição garante à gestante estabilidade do momento da confirmação da gravidez até cinco meses após o parto. A maior parte das demissões depois desse período acontece por iniciativa do empregador, sem justa causa. A pesquisa mostra também que a probabilidade de demissão é ainda maior para trabalhadoras com níveis mais baixos de escolaridade.
Apesar de ser obrigação do Estado garantir o acesso a creches, o que muitas mães encontram é a falta de vagas e longas filas
Um fator que contribui para essas complicações é a necessidade de ter quem tome conta da criança quando a mãe está no trabalho — tarefa ainda mais complexa quando se tratam de mães solo e de baixa renda. Apesar de ser obrigação do Estado garantir o acesso a creches para todas as famílias que precisam delas, na prática, o que muitas mães encontram é a falta de vagas e longas filas para garantir lugar em estabelecimentos públicos.
“Não temos creches em número suficiente e, quanto menores forem as possibilidades econômicas dessa mulher, mais difícil fica para ela ter acesso”, diz a professora e coordenadora de equidade racial da FGV, Alessandra Benedito. Hoje, entre as famílias mais pobres no Brasil, só 24,4% das crianças de até três anos anos frequentam creches, segundo um estudo da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal. No país, estima-se que 42,6% das crianças precisem frequentar esses estabelecimentos, como aponta o Índice de Necessidade de Creches, número que cresce desde 2019.
Nesse cenário, a pesquisadora do Núcleo Democracia e Ação Coletiva do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), Beatriz Sanchez, destaca a relevância de iniciativas ainda raras como a lei Espaço Coruja, criada pela então vereadora pelo Rio de Janeiro Marielle Franco (1979-2018). “O projeto propõe instalar creches que funcionem no período noturno para atender mulheres periféricas que trabalham ou estudam à noite e passariam a ter onde deixar seus filhos.” Apesar de aprovada em 2018 pela Câmara do Rio, a proposta ainda não chegou a ser implementada no município.
Se famílias com maior poder aquisitivo até conseguem suprir essa necessidade pagando colégios ou profissionais para cuidar das crianças, nas periferias quem acaba assumindo o papel de cuidador são familiares, vizinhos ou filhos mais velhos. “Só que, quando crianças mais velhas passam a cuidar dos irmãos, isso tira sua oportunidade de frequentar a escola de maneira regular. Dependendo das condições, também impede muitas meninas de ter uma infância mais adequada para uma vida adulta saudável”, considera Benedito.
Mães no poder
Na quinta-feira (11), a deputada federal Talíria Petrone (PSOL-RJ) precisou atrasar a entrevista com Gama pois estava penando para colocar uma das filhas na cama. Em fevereiro, ela fez de forma remota o juramento de posse para o cargo na Câmara, enquanto segurava a filha de 22 dias no colo — uma novidade para parlamentares de licença-maternidade no Congresso brasileiro, aprovada em dezembro numa resolução proposta pela própria deputada.
Petrone, que retornou em maio do período de licença-maternidade, teve dificuldade em seu primeiro mandato para equilibrar o trabalho e os cuidados com a filha mais velha, hoje com três anos, já que o Congresso estava longe de ter a infraestrutura necessária. “O plenário não tem banheiro com trocador, então já tive que limpar o cocô dela na mesa do cafezinho”, lembra Petrone. “É o entendimento de que a política, assim como alguns espaços no mercado de trabalho, não é feita para a mãe.”
Ainda temos um olhar sobre a mulher que não inclui sua maternidade no mercado de trabalho
Segundo a parlamentar, além de uma significativa ampliação no orçamento para a construção e extensão dos horários de funcionamento de creches no Brasil e da criação de leis específicas para apoiar mães negras, a legislação ainda precisa cercear práticas como perguntas familiares durantes entrevistas de emprego. “Na França isso é proibido, e vamos apresentar um projeto de lei para que também não aconteça mais por aqui. Ainda temos um olhar sobre a mulher que não inclui sua maternidade no mercado de trabalho”, afirma.
Reeleita com 200 mil votos para um segundo mandato, Petrone foi uma das deputadas de esquerda mais votadas do estado do Rio nas últimas eleições. Para Sanchez, do Cebrap, a parlamentar integra uma tendência de fortalecimento do debate e da representação das mães na política brasileira.
“Tivemos a eleição de mulheres jovens pautando esse tema, como a Talíria e a Sâmia Bonfim (PSOL-SP) deputadas que trazem a pauta à tona”, afirma. Segundo a pesquisadora, isso tem feito avançar debates como o da busca pela igualdade nos afazeres familiares e a reivindicação de espaços institucionais mais acolhedores para mães e filhos, em especial as creches.
Tempo e distância
“A maioria das mulheres trabalha a uma distância considerável de casa. Então precisam de creches que funcionem num período expandido”, afirma a pesquisadora Lorraine Carvalho, vinculada ao Núcleo de Justiça Racial e Direito da FGV. Isso, porém, só acontece em raríssimos casos.
Carvalho integra um grupo de pesquisadores que estuda a realidade das trabalhadoras domésticas no país, levando em conta as maneiras como as mães que exercem a atividade são afetadas. Segundo ela, boa parte dos estabelecimentos abre por volta das 7h da manhã e vai fechar às 16h, horários incompatíveis com a jornada de trabalho de boa parte das mães brasileiras.
“E muitas não têm acesso não apenas devido ao horário ou à precariedade do transporte público, mas porque o trabalho doméstico dificilmente cumpre a carga estabelecida pela legislação, numa flexibilização que costuma ser extrapolada pelo empregador.”
Outro aspecto a se levar em conta, diz a pesquisadora, são as condições em que esses estabelecimentos se encontram, muitas vezes descritos como “depósitos de crianças”. “As mães encontram uma infraestrutura ruim, faltando energia ou água, e até creches que avisam um dia antes que a criança não vai poder ficar ali, o que as força a encontrar uma alternativa para não faltar no trabalho”, conta Carvalho. “Então política pública existe, mas ela é bastante insatisfatória.”
Divisão desigual
Mesmo em lares que contam com a figura paterna, a divisão do trabalho doméstico e de cuidados com o filho ainda é uma tarefa vista como obrigação da mãe, afirma Benedito, da FGV. “Isso nos impacta no processo de inserção e inclusão no mercado de trabalho, assim como na permanência dessas mulheres dentro das vagas disponíveis”, diz a especialista, que coordena pesquisas sobre equidade de gênero e racial no mercado de trabalho.
Para Sanchez, o abismo que existe entre a licença-maternidade e paternidade — que hoje se estende por no máximo 20 dias — é uma política que continua reforçando a desigualdade no cuidado com os filhos. Mais do que igualar o tempo de licença, segundo ela, o importante é investir em políticas que permitam aos pais decidir o quanto precisam se afastar da empresa e a distribuição mais adequada desse período entre o casal.
O custo disso, de acordo com Benedito, é que muitas mulheres se sentem forçadas a abrir mão da maternidade por pressão do mercado, já que ter filhos pode significar a perda de uma carreira bem-sucedida. “E a maternidade não é sobre isso. A licença-maternidade é um tempo muito pequeno frente à possibilidade de as empresas terem profissionais talentosas que contribuam com seu crescimento.”
O custo da maternidade
Ao pensar sobre a questão, é preciso sempre avaliar que a maternidade não é universal, mas sim composta por realidades diversas e em muitos casos opostas, como lembra Sanchez. “Você tem, por exemplo, mulheres periféricas e mães negras, cada uma com necessidades diferentes.”
Os números dão uma ideia dessa desigualdade. De acordo com dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), apenas 49,7% de mulheres pretas ou pardas com crianças de até três anos de idade estavam no mercado de trabalho em 2019. Para fazer uma comparação, entre mulheres brancas, esse percentual saltava para 62,6%. E, ainda segundo os dados do instituto, o índice nacional de crianças em creches é de 35,6%.
Esses fatores acabam criando uma realidade em que mães que pertencem a classes mais altas contratam outras mulheres para cuidar das crianças, enquanto estas deixam de tomar conta dos próprios filhos, diz Sanchez. “Muitas vezes são as mulheres negras que assumem esse trabalho, de forma precária.”
Além do impacto financeiro, também é preciso pensar nos efeitos psicológicos de situações como essa, considerando tanto a falta de acesso quanto o afastamento das mães em relação aos próprios filhos, defende Carvaho. “É um ponto fortemente inserido no custo da maternidade.”
O que fazer?
Sanchez destaca o impacto de um movimento como o Parent in Science, surgido no Brasil em 2016, que levantou a discussão sobre a maternidade e paternidade na ciência. “O debate sobre a progressão profissional também invade a carreira acadêmica, porque muitas mulheres se tornam mães numa idade fundamental nessa evolução”, declara a representante do Cebrap.
Uma das maiores conquistas do movimento foi a inserção, em 2021, de uma seção específica para o período de licença-maternidade na plataforma de currículos Lattes, permitindo justificar pausas na produção acadêmica — o que poderia prejudicar mães na disputa por bolsas.
Para a democracia brasileira avançar, devemos colocar as mães e as crianças no centro da política pública e do orçamento
Inspirada numa iniciativa implantada recentemente na Argentina, a deputada Talíria Petrone propôs em 2021 um projeto que permite a mulheres com 60 anos ou mais se aposentar com base na maternidade. A ideia é passar a considerar os cuidados com os filhos como tempo de serviço no cálculo da aposentadoria.
“Precisamos garantir que o cuidado materno não só seja reconhecido como trabalho, mas remunerado, para que as mulheres que precisam se ausentar do mercado para cuidar dos filhos possam se aposentar”, declara a parlamentar e mãe. “Para a democracia brasileira avançar, devemos colocar as mães e as crianças na primeira infância no centro da política pública e do orçamento. É um desafio distante, mas que precisa ser perseguido.”
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