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ReportagemAs barreiras do trabalho para pessoas trans e travestis
Em meio ao preconceito, violência e falta de oportunidades, poucas conseguem emprego formal e hoje batalham para mudar essa realidade
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As barreiras do trabalho para pessoas trans e travestis
Em meio ao preconceito, violência e falta de oportunidades, poucas conseguem emprego formal e hoje batalham para mudar essa realidade
Formada em recursos humanos, Niodara, 33, costumava sentir o preconceito antes mesmo de entrar numa empresa. “Quando eu tinha as qualificações e experiência para a função, percebia os olhares desconfiados e discriminatórios dos recrutadores”, conta. Mesmo nos casos em que conseguiu passar pelo processo seletivo, as barreiras continuavam existindo. Aí a maior dificuldade passava a ser encontrar um caminho para crescer dentro do ambiente corporativo.
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“Era colocada sempre em cargos básicos, em funções que não aproveitavam ao máximo o meu potencial, sem a oportunidade de participar de projetos e trabalhos que contribuíssem para a minha ascensão profissional”, lembra. Hoje, ela considera que o fato de ser travesti chega sempre à frente de suas qualificações, o que acabou retardando consideravelmente seu desenvolvimento profissional.
O relato de Niodara é emblemático. Os poucos dados que existem sobre a inclusão de pessoas trans e travestis no mercado de trabalho no Brasil atualmente são alarmantes. Apenas 4% delas ocupam vagas no mercado formal, de acordo com a Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais). Se 6% trabalham na informalidade, cerca de 90% precisam recorrer à prostituição como forma de sustento. E o problema começa antes do próprio mercado de trabalho.
Jovens trans e travestis representam uma porcentagem ínfima de 0,2% dos estudantes das universidades federais brasileiras, segundo pesquisa da Andifes (Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior). Outro estudo da Antra aponta que 70% dessa população não concluiu o ensino médio e somente 0,02% teve acesso ao ensino superior.
Segundo a presidente da Antra, Bruna Benevides, o alcance de muitas dessas informações está longe do ideal porque os dados governamentais sobre pessoas trans praticamente não existem. “Nunca foi feito um censo sobre a situação da comunidade trans. Então, todas as estimativas são feitas por movimentos sociais como a Antra, observando sobretudo o contexto, o cenário, as vivências e experiências da comunidade”, afirma.
A falta de um olhar mais cuidadoso para essa lacuna na educação de pessoas trans e travestis acaba tornando as vagas no mercado ainda menos inclusivas. O que abarca até aquelas voltadas especificamente para esses profissionais, diz Noah Scheffel, primeiro homem trans influenciador do LinkedIn, também CEO do EducaTRANSforma, projeto de capacitação e inclusão de pessoas trans no mercado formal.
Quando decidi empreender, eu sabia que teria essa dificuldade, enfrentaria uma estrutura à qual o meu corpo nunca pode pertencer
“É comum pedir que uma pessoa trans já seja formada numa graduação e que fale dois idiomas”, exemplifica Scheffel. “Sabendo dessa realidade, isso não é uma vaga afirmativa. Além disso, muitas vagas pedem experiências prévias, o que também não é inclusivo.”
Na visão de Gabriela Augusto, fundadora da consultoria Transcendemos, que tem como foco promover inclusão em organizações e empresas, essa exclusão do sistema de ensino começa já na educação básica. “Muitas abandonam a escola devido ao bullying e à falta de apoio, o que limita suas oportunidades de qualificação profissional”, aponta. Não à toa uma pesquisa realizada em 2017 pela Rede Nacional de Pessoas Trans do Brasil mostra que 82% das mulheres trans e travestis abandonam o ensino médio entre os 14 e os 18 anos
Para as empresas criarem políticas internas que de fato promovam a inclusão e equidade, é preciso investir sim na contratação de pessoas trans e travestis, mas também no período pós-contratação, afirma Scheffel. “Para que tenham chances e consigam realizar seus sonhos dentro do mercado de trabalho.”
O Congresso e o Ministério da Educação têm apresentado resistência contra projetos de lei como o protocolado pela deputada federal Erika Hilton (PSOL-SP), que propõe a criação de cotas para pessoas trans nas universidades federais, de forma a reverter parte desse quadro. Apesar disso, algumas universidades pelo Brasil, como a UFBA, a UFSC e a UFABC, já incluem cotas para pessoas trans no vestibular. Outras, a exemplo da Unicamp, estão em processo de implementação.
Após passagens pelos times de comunicação, treinamento e desenvolvimento em empresas como iFood e Amil, Niodara conseguiu abrir um caminho para si, só que fora das grandes corporações. Em 2023, fundou a consultoria Novas Narrativas, onde hoje é CEO. O objetivo do projeto é sensibilizar empresas e organizações para uma inclusão real, gerando um senso de pertencimento, segurança e potencialização que ela mesma nem sempre encontrou no mercado de trabalho.
“Às vezes eu não consigo fechar um trabalho mesmo quando tenho preparo para isso e recebo um feedback super positivo. Mas, quando decidi empreender, eu sabia que teria essa dificuldade, enfrentaria uma estrutura à qual o meu corpo nunca pode pertencer. Então a proposta é sobre ressignificar esses espaços para mostrar que nós também podemos ser empreendedoras, nós também podemos ser donas dos nossos negócios.”
As violências cotidianas
Noah Scheffel trabalhava havia mais de dez anos numa organização onde coordenava equipes de tecnologia, quando passou pelo processo de transição de gênero. “Foi tudo muito violento, porque aquela posição, apesar de hierarquicamente parecer que me protegeria, não me protegeu”, lembra. Ele passou a sofrer casos diários de transfobia dentro da instituição, tendo seu nome social e pronomes desrespeitados constantemente e chegando a ser impedido de usar o banheiro. “Até o momento em que eu tive um colapso mental, uma ideação suicida e passei por uma internação psiquiátrica.”
Scheffel compara a situação ao momento em que contou sobre a transição para a filha de quatro anos — hoje ele tem duas; uma à qual deu à luz antes da transição, e outra que adotou mais tarde. “Por fazer o papel de mãe dela, essa era a minha maior preocupação, muito mais que o trabalho.”
Elas pegam menos transporte coletivo ou de aplicativo pelo medo da violência que é recorrente nesses espaços
Na hora da revelação, a pequena fez uma única pergunta: que nome teria dado a ela, caso tivesse nascido menino? A resposta: Noah. “Aí ela me disse: mãe, então eu te dou o meu nome de menino. Para minha filha, foi muito simples de entender isso e nunca errar os meus pronomes, sempre me chamar pelo masculino, ao contrário da organização onde eu trabalhava.”
Quando finalmente saiu da empresa, Scheffel decidiu abrir o EducaTRANSforma, para apoiar outras pessoas trans e travestis na busca por oportunidades no mercado de tecnologia e para tentar evitar que passassem pelo mesmo que ele. Segundo o empreendedor, o preconceito segue sendo a maior barreira para ampliar a entrada de pessoas trans no mercado formal, desde a contratação até a jornada dentro da empresa.
“As organizações têm muito desconhecimento ainda do que é uma pessoa trans com relação a plano de saúde, a atendimento médico, a questões de contratação e nome social”, afirma Scheffel. Isso, segundo ele, faz com que muitas pessoas trans e travestis acabem sendo tratados como tokens ou cobaias dentro do ambiente corporativo, sem a possibilidade de crescer e se desenvolver na empresa.
Segundo Benevides, cerca de 60% desses colaboradores deixam a instituição onde trabalham entre três e seis meses depois de serem admitidos. Falta, nesses casos, uma formação interna que impeça perguntas invasivas e situações de assédio, o que cria ambiente de trabalhos violentos para pessoas trans, diz a presidente da Antra. Segundo ela, para evitar problemas, a maioria das empresas opta também por desligar ou transferir o trabalhador vítima de casos de transfobia por parte de clientes.
É necessária uma atenção específica até em relação ao deslocamento e transporte, que, no país que mais mata pessoas trans no mundo, pode acarretar diversos tipos de violências. “Elas pegam menos transporte coletivo ou de aplicativo pelo medo da violência que é recorrente nesses espaços”, explica Benevides. “Então falar sobre empregabilidade trans e a possibilidade de inclusão requer toda uma mudança estrutural e sistemática.”
Grupo de afinidades
Foi de maneira informal que Paula Saul, gestora de conteúdo e comunidade da agência de marketing Soko, criou um grupo com outras duas colaboradoras trans de quem já era amiga antes de entrar na empresa. Além da afinidade que já existia, era uma forma de compartilharem suas experiências. Com o passar do tempo, mais pessoas trans e travestis entraram na empresa, e ela foi adicionando todas elas no grupo.
Quando passou a incluir todos os sete colaboradores trans da Soko, Saul achou que era hora de oficializar a comunidade junto à agência. “Eu disse que era um lugar legal e mais seguro para falarmos abertamente sobre as nossas questões. Temos uma experiência, de certa forma, similar. Eles oficializaram nosso grupo e isso foi muito especial”, conta. Assim nasceu o Grupo de Afinidade de Pessoas Trans.
Segundo ela, a comunidade acabou sendo essencial para garantir que as pessoas trans dentro da empresa ganhassem o direito a um auxílio hormonioterapia, cobrindo parte importante dos gastos mensais dos colaboradores com a prática, geralmente negligenciada pelos planos de saúde. “Acredito que a gente só conseguiu realmente ter essa conversa e trazer essas questões porque estava dentro desse grupo muito específico”, afirma Saul. Ela conta também que o sucesso da iniciativa tem inspirado colegas a proporem o mesmo nas instituições onde trabalham.
Pelo fato de ser uma mulher trans, muitas instituições vão deixar de contratar a minha empresa para chamar a de uma pessoa cisgênero ou a de um homem, mesmo gay, no meu lugar
A comunicadora defende que vagas afirmativas, voltadas especificamente para pessoas trans e travestis, tragam embutido um plano de carreira que ajude a romper o ciclo de precarização desse trabalho. “Geralmente são essas vagas sempre menores, pessoas em funções de operação, que não são convidadas a pensar”, aponta.
“Nós não temos uma estimativa concreta, mas acreditamos que muitas dessas divulgações de vagas partem de um lugar que é mais de fazer parecer do que efetivamente garantir essa contratação”, resume Benevides.
Esse cenário complexo acaba empurrando boa parte dos trabalhadores trans, quando não à prostituição, a empreender por necessidade, sem uma formação ou preparação adequada. “Muitas das vezes vai gerar uma renda suficiente apenas para que a pessoa possa comer”, considera a representante da Antra. Ao mesmo tempo, segundo ela, caso passe a vender um produto ou serviço, ela segue vulnerável ao mesmo preconceito e violência por parte do público.
Gabriela Augusto, da consultoria Transcendemos, conta que começou a empreender cedo. No início, o maior medo era como seu currículo seria aceito pelas lideranças e recrutadoras. “Apesar de ser considerada referência na minha área, hoje sei que, pelo fato de ser uma mulher trans, muitas instituições vão deixar de contratar a minha empresa para chamar a de uma pessoa cisgênero ou a de um homem, mesmo gay, no meu lugar.”
Pioneirismo
As ações necessárias para tornar o ambiente corporativo de fato mais inclusivo são muitas, na visão de Augusto. Entre as principais, cita a realização de treinamentos sobre diversidade e inclusão, com foco nas lideranças, e programas de mentoria e desenvolvimento profissional para colaboradores trans e travestis. Além disso, ela defende a criação de políticas claras contra discriminação e assédio, com canais de denúncia acessíveis, e benefícios essenciais, como planos de saúde que cubram necessidades específicas de pessoas trans. Tudo isso aliado a uma intensa revisão dos processos de seleção e recrutamento, garantindo que estes sejam livres de preconceitos.
Em termos de políticas públicas, são poucas as que garantem maior presença da comunidade trans no mercado formal. Hoje a maioria dos projetos sobre o tema está tramitando no Congresso e busca garantir uma reserva de vagas de emprego para pessoas trans e travestis em empresas e concursos públicos, como o PL 144/2021 ou o 354/2024. No entanto, propostas como essas têm encontrado resistência entre uma maioria de parlamentares conservadores.
Benevides destaca que o tema tem sofrido contínuos retrocessos desde a eleição de Bolsonaro, com uma maioria alarmante de propostas contra a comunidade trans e LGBTQIA+. “As políticas pró-LGBTQIA+ que estavam em curso antes da ascensão do bolsonarismo foram desmobilizadas, e o governo atual está tendo muita dificuldade para reconstruir a partir dos escombros”, declara.
Desde 2023, o INSS formalizou a inclusão do nome social de pessoas trans e travestis no cadastro da Previdência. Ainda assim, a questão previdenciária levanta uma série de dúvidas em relação à comunidade trans. “A aposentadoria não era uma realidade para a nossa comunidade. Agora ela passou a ser”, diz Benevides. Segundo ela, as discussões sobre os critérios para que pessoas trans e travestis possam se aposentar ainda são praticamente inexistentes e necessitam de diálogos extensos junto ao poder público.
Paula Saul considera que trabalha num ambiente seguro hoje na Soko. No entanto, sente um certo desconforto ao pensar na possibilidade de sair da empresa e avalia ter muito mais barreiras para consolidar seu currículo do que uma pessoas cis. “A gente fica fadado a só conseguir trabalhar em lugares que tenham esse comportamento super específico, porque ainda não é uma coisa difundida no mercado de trabalho.”
Ela lembra que, mesmo ao entrar na agência, precisou passar por um processo pessoal de construção da autoestima profissional. “Num primeiro momento, eu estava num lugar onde não via nenhuma pessoa igual a mim. Então obviamente tinha todas as minhas inseguranças”, conta. Para ela, esse lugar de pioneirismo acaba sendo inerente às pessoas trans e travestis hoje no mercado de trabalho.
“Existem pessoas que já fizeram milhões de coisas antes da gente, é importante reconhecer. Mas eu sinto também que estou vivendo muitas coisas pela primeira vez. As pessoas [trans] hoje em posição de construir algo no mercado, em específico na publicidade, que é o meu caso, são pioneiras. É muito louco você ser pioneiro de alguma coisa.”
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