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ReportagemA Amazônia está secando?
Com períodos seguidos de seca, rios em seus níveis mais baixos e incêndios, região enfrenta riscos à biodiversidade e à sobrevivência das comunidades
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A Amazônia está secando?
Com períodos seguidos de seca, rios em seus níveis mais baixos e incêndios, região enfrenta riscos à biodiversidade e à sobrevivência das comunidades
“A preocupação é maior, porque no ano passado secou, mas este aqui já está batendo o recorde”, diz Anderson Witoto, presidente da associação que representa os indígenas Witoto. A etnia que habita os municípios de Amaturá e Santo Antônio do Içá, na região do Alto Solimões, Amazonas, está instalada em uma das regiões mais atingidas pela seca. E ainda este ano, o rio Solimões deve atingir o nível mais baixo de sua história, segundo projeções do Serviço Geológico do Brasil.
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De acordo com Witoto, a seca vem isolando até mesmo as comunidades da região que ficam à beira do rio. “Com a seca, surgem os grandes bancos de areia, ilhas nascem, então as comunidades ficam isoladas”, afirma o líder indígena. “Isso as que estão no Solimões, imagina as que ficam em igarapés [cursos de água estreitos e de pouca profundidade]”
Na Amazônia, o rio é um dos principais meios de transporte e de acesso a alimentos e recursos essenciais para boa parte da população indígena. Porém, hoje nove em cada dez terras indígenas da região vêm sofrendo com a seca, de acordo com um levantamento do site InfoAmazônia.
“Um dos principais problemas é o acesso dessas comunidades até as cidades. E um impacto inevitável é que muitas estão sofrendo pela falta de água e de alimentação”, conta Witoto, e reforça: “Todo ano essa situação vem se repetindo, essa mesma demanda.”
Em 2024, o Brasil vive um ano de extremos que abrange inclusive as duas extremidades do país. Se o primeiro semestre foi marcado pelas trágicas enchentes no Rio Grande do Sul, a segunda parte do ano convive com a intensa seca na região amazônica, que fez com que o estado do Amazonas declarasse situação de emergência devido ao baixo nível dos rios e aos riscos para a saúde pública.
Muitas comunidades estão sofrendo pela falta de água e de alimentação
A Amazônia já tinha registrado no ano passado recordes negativos em uma de suas piores estiagens, com seus principais rios alcançando os níveis mais baixos de que se tem registro. Neste ano, a história vem se repetindo como uma tragédia de proporções ainda maiores. Tanto que, segundo as projeções do Centro Nacional de Monitoramento e Alerta de Desastres Naturais (Cemaden), a região deve enfrentar a pior seca dos últimos 44 anos.
O fato de a Amazônia já ter assistido a roteiro semelhante tão recentemente contribui para a intensidade da estiagem atual. “A gente teve um período muito seco no ano passado que continuou até o início deste ano”, explica a diretora de ciência do IPAM (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia), Ane Alencar. “E acabamos tendo uma época de chuva muito curta e incipiente. De repente, começou a seca de 2024 e a gente estava devendo, já tinha um estresse hídrico instalado ali.”
Especialistas consideram que as mudanças climáticas vêm intensificando os efeitos de eventos naturais como El Niño e La Niña — fenômenos que alteram a temperatura das águas do Pacífico, tornando-a mais quente ou fria, respectivamente, e impactando o clima do planeta.
“Apesar de acontecer de vez em quando, o El Niño nem sempre é tão intenso quanto em 2003. E nesse mesmo período a gente teve o aquecimento das águas do Atlântico, o que fez a Amazônia secar bastante”, continua Alencar. “Então foram essas duas coisas, associadas ao processo pelo qual o planeta está passando, em que a cada ano as temperaturas ficam mais altas devido ao aquecimento global.”
O El Niño até já foi embora, mas sua irmã ainda não deu as caras, outro ponto que ajuda a explicar a seca prolongada na região Norte. “Normalmente, quando tem La Niña, a Amazônia fica mais úmida, chove um pouco mais. Só que o fenômeno ainda não começou, ele está se instalando. Geralmente, ela aparece no início do ano, que para a gente é um período chuvoso”, afirma a representante do Ipam.
Bibiana Garrido/IPAM
Uma biografia da seca
Uma análise histórica do clima na região amazônica pode mostrar em detalhes por que a situação é preocupante. “Considerando as quatro últimas décadas, vemos que as secas estão ficando cada vez mais intensas”, declara a professora de oceanografia física e clima da Universidade Federal de Santa Catarina, Regina Rodrigues.
A especialista integrou um estudo da World Weather Attribution que analisou a fundo os dados da seca na Amazônia em 2023. Entre as principais descobertas, a pesquisa mostrou que o aumento das temperaturas globais teve ainda mais impacto para a situação do que fenômenos como o El Niño.
Os pesquisadores também concluíram que habitantes mais vulneráveis da região, como populações ribeirinhas, comunidades indígenas e pequenos produtores, foram afetados de forma desproporcional pela estiagem. Isso por conta dos níveis elevados de pobreza na região e da alta dependência dos rios, seja para ter acesso à água potável — a seca e a baixa no nível dos rios reduz a qualidade da água — ou mesmo para a compra e venda de alimentos.
“Os agricultores enfrentam esse problema da logística, o escoamento desse produto fica mais difícil”, reforça Witoto. “Muitas comunidades e agricultores chegam até a perder a produção por não conseguir levar os alimentos até a cidade e fazer a venda.”
Rodrigues explica que uma atmosfera mais quente acaba intensificando a característica do local. Portanto, em uma região com mais umidade, as chuvas podem se tornar torrenciais. Já numa atmosfera seca, a tendência é que a estiagem fique ainda mais severa. “Esse é o problema da mudança climática. Se você tem um fenômeno natural ocorrendo em uma terra cada vez mais quente, cada vez pior vai ficando a seca”, afirma a professora.
O grande problema desses períodos de seca em sequência é que seus efeitos vão se acumulando e fazendo escassear cada vez mais os recursos hídricos. “Em dezembro e janeiro teve chuva. Mas, como estava tudo seco e a precipitação também não foi tão intensa, agora a gente entra na fase seca pior do que estava, porque a água não foi reposta. A seca de 2023 tinha começado numa situação de mais normalidade”, diz Rodrigues.
Brincando com fogo
E as consequências negativas de uma seca tão intensa também vão se acumulando ao longo do tempo. Ane Alencar, do Ipam, aponta questões como a queda no estoque de peixes — afetando, mais uma vez, a alimentação e até a situação financeira dos moradores que dependem da pesca para sobreviver —, uma maior mortalidade de árvores e também alterações preocupantes na biodiversidade de uma região que abriga 10% dela no planeta.
Um dos problemas que vem dominando o noticiário nos últimos tempos são os incêndios, que ganham ainda mais projeção com o tempo seco e a falta de chuvas. Fora de controle na região amazônica, as queimadas geraram em agosto uma nuvem de fumaça que se espalhou por 11 estados e milhares de quilômetros, chegando ao Sul e Sudesde do Brasil. Um relatório da WWF-Brasil aponta que, até 27 de agosto, foram registrados 28.697 focos de queimadas na Amazônia, salto de 83% na comparação com o mesmo período do ano anterior.
“Num lugar onde as pessoas usam muito fogo, a probabilidade de expansão dos incêndios florestais é muito grande. Esse fogo está escapando e atingindo áreas além do previsto, por conta dessa dificuldade de controlar”, destaca Alencar, que é especialista em monitoramento de incêndios. Isso sem contar as suspeitas de queimadas criminosas na Amazônia, possivelmente feitas por grileiros de terras e que hoje estão sendo investigada.
Com um período de seca que já favorece o surgimento de doenças respiratórias, a adição da fumaça que vem tomando cidades como Manaus coloca a qualidade do ar em queda livre. “Tem ainda a questão sanitária e o abastecimento de energia”, lembra a diretora de ciência do Ipam. “Tudo isso acaba impactando não só a região, mas o bolso dos brasileiros como um todo.”
Anderson Witoto
Mãos vazias
Alto Solimões, Vale do Javari, rio Madeira e Alto Rio Negro são algumas das regiões do Amazonas mais afetadas pela seca até o momento, na visão da coordenadora-executiva da Articulação das Organizações e Povos Indígenas do Amazonas (Apiam), Mariazinha Baré. “O Alto Solimões a gente já pode considerar que está seco, porque o transporte fluvial de pessoas não está sendo feito, só em canoas menores.”
A falta de opções de locomoção gera dilemas graves para as comunidades indígenas que veem seus rios secarem mais e mais. “As escolas indígenas param de funcionar e até equipes médicas não conseguem mais entrar nos territórios ou, se entram, fica muito mais penoso”, pontua Baré.
A Apiam propôs à Conab (Companhia Nacional de Abastecimento), junto ao Ministério Público Federal, a compra e distribuição de cestas básicas de produtos da agricultura familiar indígena, como forma de aliviar os efeitos do período mais devastador da seca nessas regiões. Segundo a líder da Apiam, porém, faltam canais de diálogo com os governos para discutir soluções.
As escolas indígenas param de funcionar e até equipes médicas não conseguem mais entrar nos territórios ou, se entram, fica muito mais penoso
“Foi criado um grupo de trabalho muito focado dentro das instituições públicas. E a nossa sugestão para o próprio governo é que essas ações possam se dar via organizações indígenas para, de fato, conseguir que as ajudas humanitárias cheguem até os territórios”, declara Baré, que diz ainda haver problemas de logística. “Do contrário, vai acontecer o mesmo do ano passado. Passou a estiagem, encheu o rio e muitas das doações ainda não tinham chegado.”
Anderson Witoto aponta que ao menos a preocupação com a água potável foi minimizada com a abertura de poços artesianos em cerca de 80% das comunidades do Alto Solimões. “Mas ainda faltam aquelas 20%, que são as mais distantes.” No caso dos alimentos, além da falta de acesso, o líder indígena revela que os preços dos produtos têm aumentado de forma alarmante nessa época.
E ele reclama ainda do calor atípico que afeta o dia a dia dos Witoto. “Chega meio-dia, a gente precisa sair de casa, ir para debaixo das árvores, porque vem um ar abafado, que não é normal aqui para a gente. A gente já sente essa diferença no clima ano após ano.”
Recentemente, ele lembra, as comunidades responderam a um questionário da Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas) relatando boa parte dessas necessidades à instituição, à espera de algum apoio. “Todo ano se repete isso”, reitera Witoto. “Até agora, ainda não chegou nenhuma ajuda para as comunidades, nem do governo federal nem estadual.”
O curso do rio
Para Mariazinha Baré, a criação de um plano de enfrentamento em diálogo com os indígenas é essencial para identificar as regiões que mais precisam de atenção, quais suas necessidades básicas e as melhores formas de fazer essa distribuição. No caso da água, por exemplo, esse tipo de ação acaba sendo muito mais complexo.
“É difícil sair distribuindo tantos galões dentro das comunidades”, considera a representante da Apiam. “A alternativa são projetos estruturantes, feitos com antecedência, tendo em vista que a situação vem piorando ano a ano. Significa fazer ações conjuntas, integradas com o próprio distrito e a Funai para saber onde estão essas comunidades maiores e que tipo de tecnologia pode ser utilizado para atender nesse período extremo de seca.”
As soluções para o problema da seca a longo prazo são conhecidas, mas também difíceis de implantar. A principal delas é o desmatamento zero, como destaca a professora Regina Rodrigues. A especialista também aponta a importância de desenvolver uma economia sustentável mais forte na região amazônica. “Senão, como a gente vai fazer em 30 anos, se continuar deixando queimar? Não vai ter como manter, inclusive, essa produtividade de soja que a gente tem hoje. Quando você se envolve economicamente, de maneira sustentável, vai perdurar.”
Como a gente vai fazer em 30 anos, se continuar deixando queimar?
Na terça-feira (27), o ministro Flávio Dino, do STF, determinou um período de 15 dias para o governo reforçar o combate a incêndios na Amazônia e no Pantanal, onde as queimadas já consumiram mais de 15% do bioma local só este ano.
Alencar não vê outra solução para o problema que não um uso mais responsável do fogo pela população para prevenir incêndios, já que os gestores públicos têm um número limitado de recursos para combatê-los. Os governo do Pará e Rondônia, por exemplo, proibiram esta semana a realização de queimadas em todo o estado. “Isso é importante, mas, se não tiver engajamento, uma única pessoa usando fogo pode criar um grande incêndio”, ela considera.
“E esse impacto não vai ser só local”, acrescenta Rodrigues. “É um negócio assustador as pessoas não se ligarem na importância da Amazônia por acharem que está longe, que só vai impactar os locais ou a biodiversidade. Não, vai afetar a disponibilidade de chuva para o Sul, Sudeste e Centro-Oeste, que reúnem praticamente toda a produção agrícola e energética do país.”
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