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ReportagemComo a sua cidade pode resistir às mudanças climáticas?
De amplos sistemas de drenagem à reconstrução de áreas florestais em meio ao asfalto, especialistas apontam políticas para combater os impactos urbanos do clima
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Como a sua cidade pode resistir às mudanças climáticas?
De amplos sistemas de drenagem à reconstrução de áreas florestais em meio ao asfalto, especialistas apontam políticas para combater os impactos urbanos do clima
Até pouco tempo atrás, quando alguém trazia à tona as alterações climáticas, dificilmente questões como urbanismo e políticas municipais viriam rapidamente à nossa cabeça. Mas eventos recentes como as trágicas enchentes no Rio Grande do Sul, o recorde de incêndios, o período de seca e altas temperaturas e a nuvem de fumaça que encobriu cidades brasileiras — São Paulo chegou a registrar a pior qualidade do ar no mundo por cinco dias consecutivos — fazem com que o planejamento urbano hoje seja um dos assuntos centrais no combate às mudanças do clima.
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“A catástrofe do Rio Grande do Sul foi um evento climático extremo, só que cidades como Porto Alegre e o próprio Estado estavam totalmente despreparados”, aponta o arquiteto e especialista em urbanismo climático Pedro Henrique de Christo. “Aquilo já deu um alerta grande nas lideranças públicas. Só que o lapso de memória dessas lideranças é curto.”
Com a onda de incêndios pelo país que, além de intensificar o desmatamento de grandes áreas de floresta, também gera uma piora considerável na qualidade do ar, Christo aponta que o poder público foi obrigado a se mover. Recentemente, o governo federal destinou R$ 514 milhões extras para ações emergenciais de combate às queimadas e aos efeitos da estiagem. Também já tinha criado um comitê especificamente para lidar com o combate ao fogo.
O especialista enfatiza, porém, que lidar com os danos pode sair até sete vezes mais caro para os cofres públicos do que investir em ações de prevenção. À frente do Nave, movimento social dedicado à realização de um Novo Acordo Verde no Brasil, e mestre em políticas públicas pela Universidade de Harvard, Christo é um exemplo da importância que vem ganhando o urbanismo como forma de se adaptar às mudanças climáticas — iniciativas também conhecidas como resiliência climática.
Nem sempre é fácil definir o que significa se planejar para a crise climática. Afinal, o problema engloba várias áreas da vida na cidade e pode ter direcionamentos variados. Apesar de, segundo o IBGE, cerca de 84% da população do Brasil viver em áreas urbanas, a maioria dos exemplos desse tipo de plano — quase todos, na verdade — vem de iniciativas estrangeiras. É o caso das cidades-esponja, implantadas em larga escala na China após uma enchente que atingiu Pequim em 2012, matando 80 pessoas. A partir disso, cidades a exemplo da própria capital chinesa e outras, como Xangai e Jinhua, criaram áreas para absorver e reter a água das chuvas, além de sistemas para reduzir a velocidade dos rios.
“Os parques alagáveis são uma grandíssima solução, até porque retirando o concreto e o asfalto, você permite a água penetrar”, afirma o urbanista. Mas Christo ressalta que a iniciativa, aplicada também em países como Holanda e Dinamarca, precisa estar integrada aos espaços ao redor para de fato fazer uma drenagem bem-sucedida.
Um dos desafios para aplicar esse tipo de solução aqui no Brasil, diz o especialista, são cidades como Cabrobó, município de Pernambuco que passa por um processo de desertificação — mas onde, sempre que chove, costumam ocorrer alagamentos. “O desafio é, quando chover, acumular água, mas também espremer essa esponja para usar essa água em época de seca.”
A principal proposta é conectar fragmentos da floresta dentro e fora das cidades, criando uma maior resiliência para enfrentar de enchentes a deslizamentos e períodos de seca
Nesse sentido, Christo cita o exemplo de Singapura, país asiático que tem sofrido com secas constantes e onde cerca de 85% da água das chuvas é coletada, tratada e reutilizada usando sistemas semelhantes. “Eles até pagam a Malásia para não destruir suas florestas, porque é de lá que vêm suas chuvas”, enfatiza o especialista.
No caso do Brasil, exemplos como esses ainda são raros. Mas as recentes tragédias relacionadas ao clima têm chamado a atenção para o tema, que vem sendo foco de debates e ações de organizações sociais e ganhando um destaque ainda tímido na política, em meio às eleições municipais que se aproximam.
A folha e o concreto
Criadas pela União Europeia para contemplar soluções de engenharia e infraestrutura que imitam processos naturais, as Soluções Baseadas na Natureza hoje estão no centro das estratégias da sociedade civil para planejar o espaço urbano em resposta às mudanças climáticas no Brasil. É o que aponta a diretora de políticas públicas da Fundação SOS Mata Atlântica, Malu Ribeiro.
A organização hoje lidera iniciativas de criação e proteção de parques e áreas verdes em áreasurbanas nos 17 estados que compõem a Mata Atlântica brasileira. Embora todos os olhos se voltem naturalmente para a Amazônia, a Mata Atlântica é hoje o bioma mais degradado do país, com apenas 12,4% de floresta remanescente, de acordo com a organização.
Cobertura original x remanescentes atuais da Mata Atlântica Reprodução/SOS Mata Atlântica
“Uma ação importante, que integra as causas de restauração florestal e de água para a cidade, é a criação de parques lineares aproveitando as faixas de rios e córregos urbanos”, destaca Ribeiro. A principal proposta é conectar fragmentos da floresta dentro e fora das cidades, criando uma maior resiliência para enfrentar de enchentes a deslizamentos e períodos de seca.
Até mesmo em cidades menores, de interior, o avanço rápido do asfalto e da pavimentação vêm reduzindo consideravelmente a permeabilidade do solo. “Antes as pessoas tinham quintais com horta e bicho. Tem cidades com incentivos econômicos e redução de impostos para quem tem áreas permeáveis, mas muitas que adotaram essas políticas acabaram abandonando. Agora é hora de voltar com essas estratégias”, afirma a representante do SOS Mata Atlântica.
Christo ressalta que a presença de vegetação pode reduzir as temperaturas entre 5 e 10 graus numa determinada região, também limpando o ar em até 30% — um impacto e tanto num momento em que a qualidade deste é fortemente afetada pelas queimadas e a seca. Se o verde ainda estiver aliado a rios, destaca o urbanista, é possível criar microclimas com temperaturas ainda mais amenas.
“A gente já vive um estágio em que algumas intervenções humanas inclusive podem fortalecer sistemas naturais. O urbanismo climático é a síntese disso”, afirma. O especialista, aliás, foi um dos líderes do projeto do Parque Sitiê, no bairro do Vidigal, no Rio, um lixão que foi transformado numa agrofloresta de 8,5 mil m².
“Tem muita infecção respiratória em favela por causa de lixo exposto, de esgoto, principalmente em crianças e idosos. A gente começou com esse trabalho mais no foco social e de sustentabilidade a longo prazo, mas vimos que os padrões de chuva na região tinham mudado drasticamente”, conta Christo. As mudanças relacionadas a eventos climáticos extremos levaram a equipe a desenvolver um plano maior e mais integrado, envolvendo tecnologias de drenagem, contenção de deslizamentos e um sistema de reuso de água, transformando a realidade da região e fazendo do parque um espaço comunitário.
Onde a corda arrebenta
Iniciativas como o Parque Sitiê também jogam luz sobre a maior vulnerabilidade das populações periféricas aos efeitos das mudanças climáticas nas grandes cidades. Sofrendo frequentemente com enchentes e deslizamentos, como os ocorridos em Porto Alegre, São Sebastião e Recife,as regiões de periferia também costumam contar com menos parques e cobertura vegetal, que mitigam os impactos da seca e do calor.
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Além de um maior impacto para a saúde, como o agravamento de problemas respiratórios, a distribuição desigual de hospitais dificulta o acesso de muita gente aos tratamentos necessários. “A maior parte dessas regiões é habitada pela população preta e parda. Então existe um nexo entre as áreas mais pobres da cidade e as áreas negras, porque é para lá que essas populações são jogadas”, destaca o sociólogo, pesquisador e coordenador de projetos do Afro-Cebrap, Huri Paz.
Por todas essas questões ligadas ao racismo ambiental, pensar numa resposta às mudanças climáticas nas cidades engloba praticamente todos os aspectos da vida urbana, incluindo a oferta de moradias e até o transporte.
“A mobilidade urbana também faz parte do racismo ambiental, porque ela tira o direito das pessoas de acessarem a cidade e até a natureza”, aponta Paz, com base numa pesquisa que desenvolveu sobre o tema na cidade do Rio de Janeiro. Uma das descobertas que fez é que, como o transporte é pensado principalmente para o trabalho, nos finais de semana é comum ter que esperar até duas horas num ponto de ônibus para conseguir ir à praia ou à região central — dificultando também o acesso a áreas verdes, que já são escassas nas periferias.
A mobilidade urbana faz parte do racismo ambiental, porque ela tira o direito das pessoas de acessarem a cidade e até a natureza
Outro ponto importante do estudo é que justamente nas áreas mais pobres circulam os ônibus mais antigos. “Eles emitem mais CO2, então produzem áreas na cidade em que a poluição do ar é maior do que em outras”, considera.
Por isso, o pesquisador defende uma adoção mais democrática de veículos elétricos, a renovação das frotas nas grandes cidades e mais opções de transporte público. E, além disso, um olhar especificamente voltado para as populações periféricas no planejamento urbano. “As iniciativas ambientais precisam considerar a distribuição justa dos recursos. Senão elas podem acabar concentrando esses benefícios nas áreas centrais e perpetuando as desigualdades.”
A política do desastre
Em meio à crise com a qualidade do ar, que alcançou níveis subterrâneos em São Paulo, também chamou a atenção a escassez de propostas sobre a questão climática na campanha para a prefeitura da capital paulista. Os planos de alguns dos principais candidatos trazem propostas sobre a renovação do transporte público, a criação de áreas verdes e a ampliação da reciclagem, mas com poucos detalhes sobre sua implementação.
Para o professor de economia da sustentabilidade da PUC e pesquisador sênior da consultoria WayCarbon, Sergio Margulis, as gestões de municípios podem fazer pouco para lidar com as emissões de gases que reforçam o aquecimento global. “O combustível utilizado, os automóveis e as indústrias, tudo depende de regulação federal. As cidades podem criar leis para melhorar o fluxo de carros ou reduzir o trânsito, medidas muito pequenas para evitar emissões”, diz o especialista.
As iniciativas ambientais precisam considerar a distribuição justa dos recursos, não concentrando esses benefícios nas áreas centrais e perpetuando as desigualdades
Por isso, afirma que o foco deve ser mesmo nas adaptações para lidar com as mudanças climáticas — que, no entanto, também não acontecem numa velocidade ideal. Segundo Margulis, na política pública, a agenda climática sofre com um grande problema: é “movida a desastres”.
“A gente fala essas coisas há anos, décadas até, e nada acontece, vai todo mundo empurrando com a barriga. Aí, quando começa a ocorrer o que estava previsto, todo mundo fica desesperado”, avalia. Mas o desaparecimento de temas como enchentes, secas e queimadas das manchetes pouco tempo após acontecerem, segundo o especialista, ilustra o rápido esquecimento de problemas ligados às alterações do clima.
Ele destaca também que Porto Alegre estava desenvolvendo um plano de adaptação climática, do qual Margulis inclusive participa, quando iniciaram as enchentes. E aponta que grandes capitais como São Paulo, Rio, Salvador e João Pessoa também possuem planejamentos voltados ao tema — alguns mais, outros menos avançados. A expectativa é que esses planos se aprofundem nos próximos anos.
Taxa de desmatamento em hectares na cidade de São Paulo (SP) entre os anos de 2000 e 2023 Informações obtidas através do aplicativo “Aqui tem Mata?” com dados do “Atlas da Mata Atlântica”, da Fundação SOS Mata Atlântica e do Instituto Nacional de Pesquisas Especiais – INPE
Recentemente, centenas de candidatos a vereadores de todas as regiões do Brasil se uniram na chamada Bancada do Clima, aliança que busca colocar as cidades no centro da agenda climática e sustentável. “Temos a Bancada da Bala, a Bancada da Bíblia, e o Brasil fala sobre isso. Com a Bancada do Clima, a gente quer que o país também reconheça a relevância do tema”, defende a professora de advocacy e transformações sociais da FGV, Marina Bragante (Rede-SP), candidata a vereadora em São Paulo e liderança do grupo.
O Brasil segue em uma onda de retrocesso e desmonte da legislação ambiental
Com apoio da ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima do Brasil, Marina Silva, à sua candidatura, Bragante propõe ações como instalar bebedouros em locais de grande fluxo, criar corredores e áreas verdes estratégicas nas periferias da cidade. Segundo ela, o objetivo da Bancada é trazer exemplos de referência política sobre o assunto por todo o Brasil e fortalecer a pauta do clima durante e após as eleições.
“Muita gente tinha a sensação de que esses impactos estavam distantes. Então, como é que você vai usar o orçamento para uma coisa que as pessoas não estão nem sentindo ainda? A política ainda funciona muito na lógica do voto, não do cuidado e proteção da vida na nossa cidade”, declara.
No site Aqui Tem Mata, o SOS Mata Atlântica fornece dados sobre a porcentagem da floresta original remanescente em milhares de municípios, informando também se o desmatamento na região vem aumentando ou diminuindo nos últimos anos — dados importantes para avaliar o trabalho de alguns candidatos às prefeituras.
“Os mandatos coletivos e candidaturas sobre novas bandeiras, principalmente ligadas a lideranças mais jovens, têm uma sensibilidade maior para a questão climática, mas não são a maioria”, aponta a diretora de políticas públicas da organização, Malu Ribeiro. “Ainda é muito difícil fazer políticas públicas sobre o tema. Na verdade, o Brasil segue em uma onda de retrocesso e desmonte da legislação ambiental.”
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