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Conversas‘Sem descanso, a crise destrói ainda mais. Descansar é estratégico’
Para o historiador Leandro Karnal, é imprescindível saber parar, ainda que as fronteiras entre casa e trabalho estejam cada vez mais borradas. ‘Trabalhar sem cessar é uma sabotagem de si’
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‘Sem descanso, a crise destrói ainda mais. Descansar é estratégico’
Para o historiador Leandro Karnal, é imprescindível saber parar, ainda que as fronteiras entre casa e trabalho estejam cada vez mais borradas. ‘Trabalhar sem cessar é uma sabotagem de si’
A pandemia é como um motor ultrapotente que acelerou o mundo contemporâneo a uma velocidade inédita, borrou as fronteiras entre trabalho e vida doméstica, e que existe em paralelo a uma epidemia de exaustão, tornando todos os seus efeitos maiores e mais complicados. Parece impossível conseguir descansar nesse cenário, mas de acordo com o historiador Leandro Karnal, é preciso achar maneiras. Mais que importante, o descanso seria estratégico.
Acontece que o próprio Karnal também tem dificuldades para conseguir parar. Historiador, escritor com 18 títulos publicados, palestrante, youtuber (seu canal Prazer, Karnal tem mais de 700 mil inscritos) e apresentador da CNN Brasil, Karnal tornou-se uma espécie de analista do mundo contemporâneo, capaz de jogar luz sobre problemas tão diversos quanto presentes na vida atual. Fala da ansiedade onipresente no planeta, ao crescimento das milícias, passando pelo amor no século 21.
Talvez por isso mesmo ele diga que ainda está aprendendo como alcançar seu próprio descanso. Se a vida está rápida e confusa para todos, talvez para ele também, a exemplo de como foi difícil marcar essa entrevista: em meio a uma semana repleta de compromissos que pareciam minar qualquer oportunidade de conversa, ele não abriu mão de fazer as reflexões abaixo.
Karnal vê o descanso como uma parada obrigatória para que o corpo e a mente consigam seguir em funcionamento. Descansar então não significa tirar férias e cansar-se em viagens com atividades mil ou ficar em casa sem o trabalho profissional mas assumindo obrigações domésticas, mas sim parar totalmente. “É inteligente prever paradas que não precisam ser férias caras com planilhas de atividades. Parar, meditar, ler, sem compromisso. Parar, verbo sem complementos”, afirma na entrevista a Gama, que respondeu por e-mail e que você lê a seguir.
É mais fácil tirar um rim de alguém do que o deixar sem Wi-Fi. Depois, reclamamos do cansaço. Sejamos honestos: nós o adoramos
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G |Hoje é difícil achar alguém que não ache que mereça um descanso. Como chegamos a esse ponto?
Leandro Karnal |Existe uma sociedade com exigências crescentes sobre os indivíduos. Descansar passou a ser considerado um obstáculo ao sucesso. A pandemia acelerou tudo. Trabalho em casa destruiu os poucos limites entre lar e trabalho. É uma armadilha: trabalhar sem cessar é uma sabotagem de si.
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G |Como descansar num ano apocalíptico?
LK |É obrigatório, especialmente importante se houver crise no ar. Sem descanso, a crise destrói ainda mais. Descansar é estratégico. Isso foi dito por Paul Lafargue e Domenico De Masi em conjunturas distintas. Pessoas de sucesso sabem parar. Tarefeiros são úteis, mas são descartáveis.
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G |As antigas relações de trabalho estão sendo radicalmente reconfiguradas. Num mundo “uberizado”, com precarização de direitos, aumento da informalidade e achatamento salarial, estamos caminhando para a morte do descanso?
LK |Nos EUA, uma pesquisa de 2015 feita pelo Conselho Nacional de Segurança, mostrava que 43% dos trabalhadores dormiam menos do que o recomendado. Esse número deve ter crescido, se eu tivesse que apostar. Outro que mapeou a tendência em ótima reflexão foi Byung-chul Han, que no livro “A Sociedade do Cansaço”, compara a exaustão atual a uma epidemia. No mundo sólido de meados do século passado, as epidemias eram virais, de fato. Han não previa a atual pandemia. Mas isso não invalida seu argumento de que, hoje, as doenças são neurais. Pesquisas feitas na Inglaterra e na França na primeira década dos anos 2000 já relacionavam a falta de descanso e sono com o desenvolvimento de doenças, maus hábitos (como o tabagismo) e prejuízo à formação do feto. Qual a razão de tudo isso para Han? O excesso de algo que, na filosofia, chamamos de positividade. Se antes, como descreveu Foucault, vivíamos a sociedade da disciplina e nossos corpos obedeciam a sinais para entrar e sair de fábricas e escolas, chefes e metas impostas de baixo para cima, hoje vivemos uma cultura do positivo.
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G |Passar mais tempo em casa, sempre foi um objeto de desejo para os trabalhadores. Nessa pandemia, porém, o confinamento revelou para muitos um lado sombrio da vida doméstica. Esse ano pode contribuir para repensar a ideia de descanso?
LK |Passar tempo com a família era um prêmio depois do stress do trabalho. Ficou uma mistura estranha de trabalho, demandas com crianças e jovens e cuidados da casa. O lar não é mais um refúgio onde você fica de roupa confortável e se esquece do resto. Simplesmente juntamos todos os defeitos de todos os lugares em espaços pequenos.
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G |Vivemos uma época em que palavras como produtividade e eficiência parecem ter virado mantras. Até os momentos de lazer entram nessa lógica: existe uma pressão para se extrair o máximo possível do tempo livre. Como sair dessa armadilha?
LK |O antídoto não seria o sim, o positivo, mas dizer não. Baixar o celular, desligar. Não aceitar, não ver, não produzir. Descansar, contemplar, trabalhar para viver e não o contrário. Mas quem aceitaria essa vida atualmente. É mais fácil tirar um rim ou outro órgão de alguém do que a deixar sem Wi-Fi por uma semana. Depois, reclamamos do cansaço. Sejamos honestos: nós o adoramos. Nós o esculpimos, alimentamos, pomos e tiramos do sol. O esmero é tanto nosso companheiro que ele já se confunde comigo.
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G |É possível aprender a descansar?
LK |Você terá de parar, ou porque planeja isso ou porque seu corpo o obrigará ou por colapso mental. Assim, é inteligente prever paradas que não precisam ser férias caras com planilhas de atividades. Parar, meditar, ler, sem compromisso. Parar, verbo sem complementos. Parar para não ser parado.
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G |Descansar da própria família: é legítimo e ético?
LK |Perfeitamente. Ninguém é totalmente outra coisa além de si. Assim, você não é um trabalhador 100% nem pai ou mãe 100%. É saudável isolar-se para aumentar a saudade, estimulará consciência dos outros. As pessoas seriam mais felizes se se permitisse alguns dias longe de quem amam. Isso é uma opção de sanidade.
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G |A internet nos oferece um debate eterno e cansativo. Como se proteger do loop de cancelamentos e lacrações e tirar um descanso dessa esfera da vida atual?
LK |Não tenha opinião sobre todas as coisas. Não precisa. Saber usar a internet é fundamental. Parar de ser usado por ela. Não precisa ativar todas as notificações. Use. Não seja usado.
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G |Agora na pandemia vemos um êxodo urbano em busca de uma vida menos frenética. Como vê isso? É uma ilusão ou é possível desacelerar no século 21?
LK |“Fugere urbem” é antigo. Existia em quase todas as culturas. Fugir da cidade pode ser uma estratégia para quem pode. Porém, não se esqueça: quase sempre somos os carcereiros de nós mesmos. Ao fugir, você estará se levando. Não adianta trocar apenas a visão da janela da sua cela privada.
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G |Você, pessoalmente, o que faz para descansar? E o que o impede de descansar?
LK |Leio, toco piano, tomo vinho, faço atividade física, viajo. Adoro o isolamento terapêutico. Amo fazer paradas estratégicas. Porém, confesso, amo trabalhar e me canso menos do que a média das pessoas. Estou aprendendo a parar. É uma educação nova.