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ReportagemParentalidade expandida: por que faz sentido ter "outras mães e pais"?
Especialistas apontam a importância das redes afetivas em torno da criação de filhos, de tios e padrinhos a amigos envolvidos no dia a dia das crianças
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Parentalidade expandida: por que faz sentido ter “outras mães e pais”?
Especialistas apontam a importância das redes afetivas em torno da criação de filhos, de tios e padrinhos a amigos envolvidos no dia a dia das crianças
A produtora audiovisual Rafaela Rocha, 31, estava em busca de um apartamento em Los Angeles, quando surgiu a possibilidade de alugar um quarto na casa da sobrinha de uma amiga de sua mãe, a Lili. Rocha, que tinha acabado de completar um curso na UCLA (Universidade da Califórnia em Los Angeles), aceitou e fez as malas para viver um tempinho junto com a família, que também incluía o marido e um bebê recém-nascido.
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“E aí o Luca virou o meu xodozinho”, lembra Rocha. Nesse período, ela passou a ajudar a nova amiga a cuidar do dia a dia do pequeno, vivendo boa parte da experiência inicial com a criança junto dos pais. “Foi naturalmente se gerando essa conexão de que todo mundo fala: que, quando você mora fora, amigos se tornam família.”
Depois de algum tempo, o marido foi trabalhar em outra cidade e passaram a ser apenas os três sob o mesmo teto. Ou melhor, quatro, porque Lili engravidou novamente. Além de acompanhar e apoiá-la de perto durante toda a gravidez, Rocha não só estava lá quando Nico nasceu como acabou virando madrinha dele. “Mas a gente não fala muito sobre isso, porque o Luca é muito apegado a mim também”, ela adverte. “Então falo que sou tia e, se surge o assunto, madrinha dos dois.”
Hoje, mesmo sem dividirem mais a mesma casa, a proximidade continua. Se, no Brasil, a produtora costumava tirar os domingos para almoçar com a avó, a refeição agora é com Lili e os sobrinhos Luca e Nico — hoje com sete e cinco anos, respectivamente. “Tenho cadeirinha no meu carro até hoje, adoro estar com eles. Eu só ligo e pergunto: Posso levá-los no cinema? Esses dias, levei o Luca no primeiro ‘concert’ dele”, conta.
A história é exemplo de uma prática comum que pode ser considerada uma parentalidade expandida, em que pessoas que não são mães ou pais acabam dividindo uma parcela da responsabilidade e até vivenciando parte importante da vida das crianças. Aliás, são essas pessoas que ajudam a formar a rede de apoio parental, crucial para muitas famílias equilibrarem a criação dos filhos com várias outras obrigações, sem deixar de lado o lazer.
O desenvolvimento de um ser humano exige uma série de articulações de que uma pessoa só não dá conta
Segundo o professor da Universidade Federal Rural de Pernambuco, Hugo Monteiro Ferreira, que pesquisa o sofrimento psíquico de crianças e adolescentes, é exatamente como diz o ditado: precisa-se sim de uma aldeia para criar uma criança. Ainda mais numa realidade em que principalmente a mãe acaba sobrecarregada com a criação dos filhos, as obrigações da casa e, em muitos casos, um emprego externo.
“Quando saímos do modelo de uma família extensa para a nuclear, esse processo tornou a responsabilidade do pai e da mãe ainda mais intensa”, aponta o autor do livro “A Geração do Quarto” (Record, 2022), sobre a saúde mental e emocional dos jovens brasileiros. “O desenvolvimento de um ser humano exige uma série de articulações de que uma pessoa só não dá conta, sobretudo no sistema social no qual vivemos. Então uma rede de apoio não é só necessária, como também essencial”, declara.
Numa rede ideal, segundo o professor, tanto familiares e colegas da mesma idade quanto adultos trazem para dentro daquele núcleo a possibilidade de um diálogo diferente com os mais jovens. Algo que inclusive pode reduzir ou até evitar o isolamento e a dependência tecnológica, que estão entre os principais temas de estudo do especialista.
“É fundamental que existam pessoas diversas que incentivem uma espécie de retomada da convivência saudável. E nisso uma rede de apoio pode ajudar muito.”
As redes por um fio
Apesar da consciência sobre os desafios de criar filhos e da importância de ter uma rede forte de apoio, não significa que isso hoje tenha se traduzido para a realidade. “A gente tem se fechado cada vez mais dentro de casa. E a pandemia promoveu uma mudança muito abrupta em como observamos essas relações. Então até falar com o avô, com o tio, visitar o padrinho se tornou um perigo”, aponta Lua Barros, especialista em parentalidade, cofundadora da Rede Amparo, voltada para a educação familiar, e mãe de quatro crianças.
Para ela, muitas vezes são os próprios pais que fecham as portas à participação de outras pessoas na vida dos filhos, deixando de lado o enriquecimento que essa troca entre gerações poderia trazer. Só com o tempo, diz, eles vão percebendo que os outros também são importantes para os filhos e que ninguém cria ninguém sozinho.
“Então que eu consiga ter uma relação boa e saudável com algumas pessoas desse meu entorno, que meus filhos vejam isso e se sintam cuidados por outras pessoas também. Até para carregarem essa dimensão de uma mãe que não é só mãe, mas que estava ali convocando outras pessoas”, considera Barros, autora do livro “Eu Não Nasci Mãe” (Editora Nacional, 2020).
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No entanto, a psicóloga e psicanalista especializada em parentalidade Fê Lopes lembra que essa família de núcleo restrito aos pais e filhos nem sempre corresponde à realidade geral. Segundo ela, fora dos grandes centros urbanos e das classes mais altas, nem sempre quem cria são apenas os pais — muitas crianças já nascem inseridas em famílias estendidas, que podem incluir desde parentes a amigos e vizinhos.
O que acontece é que nas classes mais altas, em vez de contar com pessoas próximas, alguns montam uma espécie de rede particular, aponta a psicóloga. “Você bota a criança numa escola de período integral, contrata uma babá… Cria algo que eu não gosto de chamar de rede de apoio paga, porque não é rede de apoio. É um serviço, uma contratação”, afirma.
Por outro lado, em famílias em situação de vulnerabilidade, essa rede é muito mais uma necessidade — o que não significa que haja sempre uma organização comunitária nesse sentido, que seria uma versão meio idílica das periferias, diz Lopes. “Muitas vezes, a mãe e a avó trabalham e não podem cuidar. O que acontece é que se cria essa coisa de ter uma vizinha que cuida. Mesmo que você pague, já é algo mais instituído”, explica.
O lugar do homem
Se boa parte das referências e exemplos de uma família expandida ao longo do texto vêm aparecendo no feminino, não é por acaso. Assim como o lugar de cuidar ainda costuma ser colocado sobre o ombro das mulheres e mães, são muito mais elas que acabam formando essa comunidade em torno das crianças, mesmo quando não são mães, apontam os especialistas.
“O machismo coloca o homem numa condição de não saber, de não ter sido proposto a ele fazer. Então, acaba ficando dentro de casa como mais uma criança para a mulher cuidar”, diz Ferreira. Um exemplo prático dessa última parte é uma pesquisa recente que o professor conduziu, apontando, entre outras coisas, que mais de 75% dos homens precisam que suas esposas busquem toalha e roupas para eles quase sempre que entram no banho.
O machismo coloca o homem numa condição de não saber, de não ter sido proposto a ele fazer. Então, acaba ficando dentro de casa como mais uma criança para a mulher cuidar
De acordo com Lopes, essa participação masculina tem crescido apenas numa determinada bolha de classe média, em que se valoriza mais a presença constante do homem na criação de crianças. Por outro lado, pode ser até um fator extra de preocupação para muitos pais quando vão deixar seus filhos com outras pessoas.
“É um debate que a gente não tinha tão escancarado na mídia, do receio que é deixar sua filha dormir na casa de uma amiga que tem um pai”, reflete a psicóloga. “É muito mais delicado quando tem homens na jogada do que quando não tem. Isso vale até quando a escola inventa um passeio. Quem são as pessoas que vão? Muita gente nem deixa, tem bastante resistência.”
As vantagens de ser “dinda”
Apesar da rotina corrida numa cidade como São Paulo, a publicitária Ana Sano, 38, tenta ver a afilhada ao menos uma vez por semana — quando não dá, a cada duas. A criança hoje tem um ano, mas Sano esteve junto dela há mais tempo: desde o início da gravidez da amiga, que é mãe solo. E ela ajuda, sempre que possível, nos cuidados cotidianos.
“É a primeira vez em que posso acompanhar de perto amigas que têm filhos”, conta a publicitária, que nunca pensou em ser mãe. “Sempre brinquei que meu sonho de maternidade é ser tia, ser ‘dinda'”. Conforme a criança for crescendo e se tornando menos dependente da mãe, Sano pretende fazer ainda mais parte da rotina delas, se oferecendo para ficar com a pequena sempre que necessário.
“No final de semana, sempre penso numa programação em que posso integrar minha afilhada e minha amiga, dar um respiro para ela. Na cidade, é muito fácil uma mãe solo acabar isolada de círculos sociais”, considera a publicitária, que revela: “Pensei que devo estar fazendo algo muito certo para que uma mãe queira que eu seja madrinha da filha dela, dividindo um pouco da minha visão de mundo com essa criança, podendo estar perto na presença e na ausência da mãe. Foi uma alegria muito grande.”
Crianças são mais leves, resolvem conflitos de um jeito diferente, e o cérebro adulto carece disso, assim como da curiosidade e da ousadia do cérebro adolescente
Para Lua Barros, toda criança abre um mundo repleto de vitalidade, que pode trazer benefícios para os adultos também. “É nessa possibilidade de brincar que eu me afasto da tela, que eu consumo menos, problematizo menos o rumo das coisas.” Segundo a especialista em parentalidade, fica até mais fácil lidar com questões de saúde mental quando há crianças por perto. “Se me aproximo de uma criança, aquilo é curativo, transformador.”
Estudos já mostram que ter crianças por perto pode tornar os adultos mais generosos e até ajudar no seu desenvolvimento e aprendizado já na maturidade. “Um adulto deveria sempre buscar contato com crianças, até de um ponto de vista neurológico”, aponta o professor Hugo Ferreira, que sempre manteve amigos, tios e primos bem próximos na criação de sua única filha.
“Crianças são mais leves, resolvem conflitos de um jeito diferente, e o cérebro adulto carece disso, assim como da curiosidade e da ousadia do cérebro adolescente. Um adulto tende a buscar no sistema límbico, responsável pelas emoções, uma compensação emocional que pode estar mais no campo da ludicidade e da criatividade. Então a convivência ajuda muito.”
Com quem você pode contar
Apesar da relação próxima que tem hoje com os “afilhados”, não foi sempre que Rafaela Rocha gostou dessa proximidade com os pequenos. “Nunca achei que ia ter filhos e nem interagir muito com criança, sabe?” O que mudou essa visão foi a gravidez repentina de uma tia — que, no caso, ela já considerava uma segunda mãe. Como a família era muito próxima, Rocha, então com 19 anos e cursando a faculdade, inicialmente entortou o nariz para a ideia de “ter um bebê dentro de casa”.
“Mas o dia em que nasceu o Arthur foi um dos mais incríveis da minha vida. Surgiu um amor que eu nunca tinha sentido antes. E aí acabou que o meu primo-irmão virou o bebê da família, nosso chaveirinho”, lembra.
Barros considera relevante lembrar, no entanto, que não tem como exigir de ninguém essa proximidade com seus filhos — até porque nem todo mundo está aberto a isso ou vai necessariamente encontrar benefícios nesse convívio. “Esse encontro precisa partir da vontade. Se existe a vontade, ótimo. Vamos construir essa relação.”
Segundo Lopes, ainda existe um preconceito de que apenas pessoas com filhos têm interesse ou habilidade para cuidar de crianças, o que não é verdade. Os maiores conflitos, ela diz, podem surgir quando há uma espécie de obrigação, como nos casos de avós que precisam ficar com as crianças diariamente, o que acaba tolhendo a liberdade dessas pessoas. O ideal, diz a psicóloga, é sempre buscar consensos.
Ela também se incomoda com o uso generalizado do termo rede de apoio, que pode ter uma conotação utilitarista, quase comercial. “A gente precisou dar um nome teórico para uma coisa que poderia ser simplesmente sua rede de afetos.” Por isso, para Lopes, a construção dessa rede está muito mais ligada às relações que você estabelece ao longo da vida do que necessariamente à parentalidade.
“Eu não posso pedir que um tio ou tia com quem nunca tive vínculo, agora do nada, porque nasceu um bebê, venha passar vários dias na minha casa. Depende de como temos construído nossas relações afetivas“, considera a psicóloga.
“Em última instância, o que a gente está falando aqui é de quantas pessoas podem amar e se dedicar a essa criança. Quantas pessoas amam e se dedicam a você? Com quem você pode contar na hora que a casa cai?”
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