A convite da Gama, 14 artistas e cartunistas compartilham o que têm pensado e desenhado, dentro dos limites quarentena, sobre o período em que vivemos
“Tenho pensado muitas coisas novas nesses meses, mas a maioria delas é interrompida pela vida particular dos meus vizinhos de cima. Barulhos de todo tipo, eles são muito criativos. Em uma noite particularmente difícil, me veio uma ideia: e se eu conseguisse arrancar o teto do meu apartamento como se fosse de papel e jogar meus vizinhos fora? Levantei da cama, anotei, voltei pro quarto. Terminei a tirinha no dia seguinte me sentindo pelo menos um pouco vingada. Depois me dei conta de que, na verdade, o meu teto é antes de mais nada o chão deles, e praticamente não me pertence. Numa disputa, eles levariam a guarda com certeza. E eu ficaria olhando pro céu, quieta e feliz.”
Deborah Salles (São Paulo, 1992) é coautora de “Viagem em Volta de uma Ervilha” (Veneta, 2019), em parceria com Sofia Nestrovski. Formada em design gráfico, foi indicada ao 20º Grammy Latino pelo projeto gráfico do disco “Lição #2: Dorival”, da banda Quartabê, para quem também fez um gibi. Desenhou o zine “Escuta Mútua”, da Clínica Pública de Psicanálise, e fez ilustrações para a Quatro Cinco Um, The Intercept Brasil e Tag Livros.
“Liberdade (ou a ausência de) é um assunto que me interessa muito e, nesse contexto, o limite seria uma maneira de restringi-la. Espinosa tem uma fala que gosto muito a esse respeito (e estou sendo bem simplista aqui): ele classifica que apenas a natureza é livre por não sofrer nenhum tipo de constrangimento em sua produção. Os seres humanos, ao contrário, nunca poderiam experimentar a liberdade absoluta, justamente por serem constrangidos. Nesse sentido, penso limite como um tipo de constrangimento que nos é imposto, algo que pode ser externo a nossa vontade. Existe também outra leitura sobre limite com que me identifico muito, que seria o limite para a produção criativa. Passei muito tempo incomodada com minhas limitações na ilustração: por não dominar as técnicas para produzir tudo o que imaginava, precisava simplificar muito minhas ideias, a ponto de tornar sua execução possível para mim. Essa simplificação (ou limitação) acabou se tornando meu estilo.”
Mari Casalecchi (Araraquara, 1979) vive sem São Paulo há mais de 20 anos. Artista visual e designer, é autora dos zines “Finito”, “Abstinência” e “Doenças Crônicas”.
“Sempre gostei de desenhar fotos de pessoas. Nessa quarentena descobri as Irmãs Brown, que foram retratadas durante 40 anos pelo fotógrafo Nicholas Nixo. Como elas aparecem sempre olhando para a câmara em planos que variam muito pouco, essa falta de deslocamento espacial traz o tempo para o primeiro plano, desenhando questões que parecem urgentes nesse momento: a morte, a memória, a ideia de futuro. Desenhar essas mulheres envelhecendo me parece o melhor retrato da concretude quase sólida que o tempo adquiriu na quarentena.”
Luli Penna (São Paulo, 1965) é cartunista e ilustradora. Em 2017, publicou “Sem Dó”, sua primeira graphic novel, pela Editora Todavia.
“‘Sem voltinha hoje’ foi feito no começo de maio, já na quarentena. Me ocorreu isso quando fui no supermercado e vi uns vira-latas na rua correndo despreocupados.”
Allan Sieber (Porto Alegre, 1972) é artista plástico, cartunista e roteirista. Mora Rio de Janeiro, onde mantém a galeria A Hostil Carioca. Atualmente, publica na revista Piauí e tem uma página semanal na revista Época. De 1999 a 2014, manteve a Toscographics Desenhos Animados.
“Essa imagem é um quadrinho que fiz em um momento de crise sobre meus limites como filha, pessoa, médica e residente médica de patologia.”
Cynthia B. (Rio de Janeiro, 1986) é médica formada pela UFRJ e ilustradora semanal na Folha de S. Paulo. Seus quadrinhos foram publicados também na revista Piauí e em outras revistas independentes, uma ou duas editadas por ela. Em 2016, publicou seu primeiro livro, “Estudante de Medicina”, pela editora Veneta.
“Acredito que minhas produções artísticas conseguem ultrapassar os limites impostos para os corpos negros, uma vez que elas os projetam em plenitude, diante do cruel cenário de genocídio da população negra que temos vivido no Brasil. Elas criam outras possibilidades de existência para além da morte e da dor, e nos ajudam a manter a vivacidade pulsante em nossas mentes.”
Tay Cabral (Rio de Janeiro, 1996) é artista visual e comunicadora social. Formada em publicidade e propaganda pela Universidade Federal Fluminense, trabalha em projetos voltados para a representatividade negra no design e nas artes visuais. É uma das fundadoras da iniciativa Elas Conduzem e integrante da Comunidade Global Shapers no Rio de Janeiro.
“Fiz esse desenho depois de assistir ao filme ‘Sudden Fear’, de 1952, com a Joan Crawford. Tenho encontrado um certo conforto em filmes dessa época durante a quarentena. Bom, em dado momento a Joan (sempre essa atriz maravilhosa) aparece nessa cena desesperada, pensando em jeitos que ela pode ser assassinada… Impossível não relacionar com esse medo da morte que se impõe durante a pandemia. Ficamos nesse limite da sanidade mental, com a constante do medo como pano de fundo.”
Talita Hoffmann (Porto Alegre, 1988) trabalha com pintura, design e ilustração. Graduada em design visual, fez projetos para editora Ubu, Folha de S. Paulo, MTV, SESC, revista Quatro Cinco Um, entre outros. Já realizou exposições individuais e coletivas em lugares como Galeria Logo, MAM-RJ, MAM-RS, MIS, Fumetto InternationalComixFestival e Galeria Lume.
“Durante o período de quarentena e de tantas notícias difíceis e tristes às quais temos sido expostos, venho pensando e acreditando cada vez mais na importância de nos agarrarmos à vida. Estar vivo e poder cuidar minimamente de si é um direito básico, mas que não é possível para todos. Nesses tempos, andei observando as plantas de casa e como seguem crescendo desenfreadamente, apesar de todo o caos em que estamos inseridos. É claro que elas não são afetadas pelo vírus, mas um mundo que desenvolve transgênicos e explora recursos naturais diversos faz com que espécies desapareçam. Essas que estão aqui seguem extrapolando limites, e é sobre esse local, o local da vida, que venho refletindo e admirando. Porque é à vida que quero me agarrar hoje!”
Linoca Souza (São Paulo, 1989) é ilustradora e artista visual, formada em artes visuais pelo Centro Universitário Belas Artes. Produz ilustrações e pinturas onde aponta a desigualdade de gênero, social e étnica, temas que desenvolve em oficinas, como as dos SESCs Pompéia, Interlagos, Jundiaí, São Carlos e União das Mulheres de São Paulo.
“O negacionista, seguro em sua casa, incentiva o consumo e ressalta a importância da abertura do comércio. Enquanto isso, em um ônibus lotado, um funcionário do comércio pensa graças a Deus tenho um trabalho precário. Um passageiro do mesmo ônibus lotado saiu pra comprar um par de sapatos que não precisa e pensa graças a Deus abriu o shopping.”
Rafael Sica (Pelotas, 1979), é autor de “Triste” (Lote42, 2019), “Fachadas” (Lote42, 2017), “Novela” (BebelBooks, 2014) e “Ordinário”(Companhia das Letras, 2010), entre outros. A exposição individual “O Ordinário Rafael Sica” percorreu as unidades da Caixa Cultural de Fortaleza, Rio de Janeiro e Curitiba, durante o ano de 2018.
“Essa é uma bromélia imaginária que também pode ser encontrada na Mata Atlântica. Ela nasce sobretudo da necessidade de uma natureza próxima e da retomada das sensações de alegria que foram vivenciadas nesses espaços.”
Santídio Pereira (Curral Comprido, 1996) é artista visual. Nascido na Caatinga, mudou-se para São Paulo junto com a mãe e os irmãos em busca de uma vida melhor. Hoje, seu trabalho circula por diversas instituições, entre elas a Fundação Cartier, na França, o Annexb, em Nova Iorque, o MAM-SP e o Instituto Tomie Ohtake.
“Acordar espécie. Recolher o Sol. Da janela imagino prolongamentos e mutações da nossa espécie. Um sentimento antagônico de expansão e limitação. Trauma ecológico, voltar ao local, ao nosso corpo, à nossa espécie, à nossa casa. ‘Acordar espécie’ faz parte de uma série que estou fazendo com a foto da mão na janela e muitas ideias sobre expansão e limitação.”
Manuela Eichner (Arroio do Tigre, 1984) é artista visual, vive entre São Paulo e Berlim. Sua produção abarca desde videos e performances até oficinas colaborativas, passando pelo desenvolvimento de ilustrações, instalações e murais. Nessas diferentes frentes recorre sistematicamente a princípios de colagem, ruptura e embaralhamento da unidade espacial.
“Escolho esta obra pra falar de limites e sobretudo pra falar de amor. ‘Crescer junto quebrando todos os ciclos de não-amor’ fala sobre o afeto para os corpos pretos, e tocar nessa ferida é ter de lidar com inúmeros limites impostos pelo racismo. De que forma o amor que nos foi negado por séculos será reconstruído agora? Como um povo ferido vai falar e viver de amor? O olhar branco nos diz que um corpo preto suporta tudo, inclusive a falta do amor. O afeto em nossos corpos sempre foi tutelado por alguém, e é a essa quebra de ciclos que nos agarramos. A nossa reivindicação é sobre corpos pretos vivos, livres, capazes de amar, a garantia dos nossos direitos, e nada menos.”
Silvelena Gomes (Pindoretama, 1994), mora em Fortaleza e é estudante de publicidade e propaganda na Universidade Federal do Ceará. Atua nas áreas de direção de arte, design e ilustração e participou de produções visuais como as capas de “Pílula Livre”, álbum da cantora Doralyce, e “Para de Apontar o Dedo”, single da cantora Bia Ferreira. Também é responsável pela identidade visual do segundo álbum da cantora Lucy Muritiba, de título homônimo.
“No dia em que a quarentena começou, decidi fazer um diário com meu personagem chamado Cato y su cola. No começo, ouvia as notícias e contava um pouco do que pensava sobre elas. Um dia fiquei doente depois de escutar um podcast que falava sobre o que estava acontecendo em Guaiaquil, então decidi ler, ouvir e escrever outros tipos de coisas, mais poéticas, e que me ajudaram a passar por essa tristeza.”
Powerpaola (Quito, 1977) é artista plástica, cartunista e ilustradora. Nasceu em Quito, cresceu em Cali, morou em Medelín, Paris, Sydney, São Salvador e Bogotá. Atualmente vive, pinta e desenha em Buenos Aires.
“‘Pra quando tudo isso passar’: onde estaremos ou onde queremos estar quando tudo isso passar? Daqui de dentro do meu confinamento físico e mental, penso em lá fora, penso no outro e tento entender e respeitar os limites das nossas muitas vontades e lidar com o tamanho das saudades.”
Robinho Santana (Diadema, 1983) é artista visual, pesquisador e músico experimental, com formação em design e fotografia. Seu trabalho dialoga com o dever compulsório de exprimir a sua relação com a vida e a cultura de seu povo. Além de se reconhecer, busca nas obras uma representação plural e digna da mulher e do homem negro, tornando-os protagonistas em sua arte.