Fernanda sempre foi urgente — Gama Revista
Pessoas

Fernanda sempre foi urgente

No aniversário de dois anos da morte da escritora, sua editora escreve sobre seus últimos dias. ‘Despediu-se da vida agradecida e realizada, num rompante belíssimo e cheia de aplausos’

Eugênia Ribas-Vieira 25 de Agosto de 2021
Bob Wolfenson

Fernanda Young, em sua última postagem, escreveu: “Onde queres descanso, sou desejo”, verso da música “Quereres”, de Caetano. Estava em seu ateliê, em Gonçalves, seu pequeno recanto, uma casa de vidro, arestas de madeira, construída por um marceneiro da região. Seu quintal era imenso e florido, e ali corriam as pessoas que amava. Talvez já soubesse, naquele seu último entardecer, estar no paraíso que desenhou para si. Dois anos depois de sua morte, percebo que Fernanda se despediu da vida agradecida e realizada, num rompante belíssimo e cheia de aplausos.

Caetano e sua casa em Gonçalves, dois grandes pilares de sua vida, nessa última postagem. Foi com Caetano que Fernanda começou a se debruçar sobre as palavras, a se encantar com a possibilidade da poesia. Foi em Gonçalves que realizou seu sonho de ser livre. Fernanda se despediu da vida, como bem quis, com seu início de tudo, seu Big Bang subjetivo, a poesia de Caetano, e seu fim, o paraíso físico que ela mesma idealizou, a casa de Gonçalves.

Condensaria este último momento, esta pessoa que ela alcançou, esse quadro pintado com todo o enigma e beleza de uma Louise de Bourgeois, ouvindo os “Noturnos”, de Chopin, que tanto ouvia em vida. Por que, nos últimos meses de vida, Fernanda se reconciliaria com o pai, que há tanto tempo não via? Por que postou fotos de seus avós e antepassados no Instagram, coisa que nunca tinha feito? Algumas perguntas não consigo responder. Naquele último mês, Fernanda me mandou um agradecimento por tudo: “Meu amor, obrigada. Eu sempre terei muita gratidão pela sua aparição importante, pontual e mágica na minha vida, porque, sinceramente, eu falo muito de você, né? Repetidas vezes, nessa pulsão de desistência, e você por perto. É uma coisa muito interessante. Alexandre também acha muito bonito. Então, eu sou muito, muito grata.”

Não sei se foi uma questão de sobrevivência, mas sua escrita lhe servia de anteparo para a loucura, para não cair em desequilíbrio

Fernanda viveu para a arte, e sem ela, acho que não teria sobrevivido o que sobreviveu. Acho que a minha figura, para ela, como editora, representava seu elo com sua arte, com sua escrita, com sua publicação, por fim. Sem isso, Fernanda parecia não aguentar, parecia não sustentar as tantas vozes e pensamentos randômicos que sempre teve em mente. Não sei se foi uma questão de sobrevivência, mas sua escrita lhe servia de anteparo para a loucura, para não cair em desequilíbrio. Como bem diz a personagem Amanda, no trecho de seu livro “As Pessoas dos Livros” (Ed. Rocco, 2011), “Sofre tanto que resolveu urgentemente escrever algo novo. Distrair-se da horrível realidade, controlar-se. Esquecer-se. Morrer. Os fantasmas da esquizofrenia falam pelos seus dedos, é preciso escutá-los. Organizá-los, guiá-los, oferecer a
eles essa cama”.

Me arrisco a dizer, em meio a tantas Heinekens divididas, que Fernanda estava sempre atenta, numa luta incansável pela sua própria voz. Para se descobrir. Eu sempre lhe pedi calma. Mas Fernanda sempre foi urgente. “Onde queres descanso, sou desejo.” Esta frase, inclusive, naquele dia, ingenuamente pensei que se direcionava a mim, quando ela postou. Porque fora uma das últimas conversas que tivemos. Ela disse que estava dormindo cinco horas por dia, que estava decorando texto da peça que iria estrear em alguns dias, que estava escrevendo o livro novo, que estava escrevendo Shippados. Estava muito nervosa com a ideia de voltar aos palcos, ao mesmo tempo, estava muito feliz e realizada. Eu, como sempre fiz, pedi que descansasse, que poderíamos adiar a publicação, que ela não precisava escrever o livro novo agora. E por mais que ela se dissesse exausta nos últimos dias, assim continuava, por uma luta, uma luta que era como uma honra, ou uma corda a que se segurava com as duas mãos.

São poucos os autores que deixam uma obra de mais de dez livros, em tão pouco tempo de vida. Não só uma aventura, a da escrita para Fernanda, uma necessidade. Começou muito cedo, seu primeiro livro no início da faculdade de Letras, depois viriam mais dez, onze, doze, talvez. Escrevia sempre em rompantes, mandava blocos de textos da noite anterior, ou de algumas horas em que ficou presa em algum lugar, escrevia sem parar. “Efeito Urano” (Rocco, 2001), se orgulhava disso, escreveu em dois meses. Escrevia em suas paredes, em sua pele, em cadernos, inúmeros, nunca vi Fernanda descansar, esse é o bem da verdade.

Fernanda não queria mais ser deixada. Por isso, falava, e falava sempre. E escrevia, sempre. E precisava ser lida, ouvida, aplaudida

Que luta era essa? Hoje me pergunto. Ela dizia que não queria ser esquecida. Que uma vez, quando criança, foi deixada sentada numa escada de piso gélido, imagem que está em um dos seus poemas do livro “A Mão Esquerda de Vênus” (Globo Livros, 2016). “O que aguardo é ficar longe/ dessa menina que está sentada nos / degraus frios da escada”. Acho que Fernanda não queria mais ser deixada. Por isso, falava, e falava sempre. E escrevia, sempre. E precisava ser lida, ouvida, aplaudida. Uma angústia que a arte segurou, que a equilibrou, mesmo nos momentos mais difíceis.

Nunca soube se as Heinekens serviam para apaziguar essa toda vontade. Talvez. Talvez, a fizessem relaxar. Nunca vi Fernanda relaxada, fato. Vi Fernanda muito amiga, muito generosa, muito alegre. Mas nunca a vi, assim, querendo descansar. Descansar pra quê? Murakami nos diz em um de seus livros que parou de fumar porque, do contrário, não teria tempo de vida suficiente para elaborar a obra que sabia que tinha que elaborar. Acho que Fernanda era igual. Tinha esse cálculo – e, portanto, essa urgência.

A vida lhe pegou de surpresa, um vento frio, quiçá. Mas ela estava preparada, já havia marcado seu lugar no mundo, já havia escrito sua obra. Numa das mensagens que guardo, Fernanda afirma, “este será meu último livro”, referente ao livro que estava escrevendo, de título provisório “O Livro – O mistério do sofrimento”.

E assim se despediu. Nunca vou esquecer FY. Seu desejo se perpetua. Seu silêncio, contudo, também. Nunca mais reclamaria da sua urgência. Hoje a tenho como um grande aprendizado, dois anos depois de sua morte, a entendo. Te entendo, Fernanda. A vida é um sopro, Clarice já tinha escrito. Você já sabia.

*Nascida em 1970 em Niterói, Rio de Janeiro, a escritora Fernanda Young morreu em 2019 em Paraisópolis, Minas Gerais, vítima de ataque de asma seguido de paráda cardíaca.

Eugênia Ribas-Vieira foi editora de Fernanda Young nos últimos livros: “A louca debaixo do Branco” (Editora Rocco, 2010), “A Mão Esquerda de Vênus” (Editora Globo, 2013), “Estragos” (Editora Globo, 2016), “Pós-F: Para além do feminino e do masculino” (Leya, 2018) e “Posso Pedir Perdão, Só Não Posso Deixar de Pecar” (Leya, 2019). Com intervalos, acompanhou Fernanda por 15 anos de produção literária

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