Curriculum Vitae -- CV: André Laurentino — Gama Revista
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Acervo Pessoal

CV: André Laurentino

Escritor, desenhista e publicitário, o CCO da Ogilvy em Londres quer criar um ambiente mais diverso na publicidade

Leonardo Neiva 16 de Setembro de 2021

Publicitário, escritor de ficção, roteirista, desenhista, designer, cartunista. A lista não é um catálogo de profissões, mas parte do extenso currículo do publicitário pernambucano André Laurentino, 49, CCO da agência Ogilvy em Londres. André é hoje um dos publicitários mais premiados do Brasil, tendo recebido um total de 32 Leões de Ouro ao longo da carreira, seja como redator, diretor de arte, diretor criativo ou de comunicações.

O publicitário fez parte de inúmeras campanhas famosas, como a ação mundial da Dove lançada em 2020 com o slogan “courage is beautiful” (a coragem é bela), que reforçou a dedicação dos profissionais de saúde do mundo todo na luta contra a covid-19. Para causar esse efeito, a marca estampou selfies tiradas por médicos e enfermeiros com o rosto marcado pelo uso excessivo de equipamentos de proteção, como máscaras. Mais recentemente, em abril, também participou de uma campanha que desafiou o tabu do sexo na terceira idade para a ONG britânica Relate.

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Laurentino também já foi roteirista na TV Globo — onde escreveu séries como a humorística “Sexo Frágil” (2003-2004) —, colunista no jornal Estadão e cartunista na revista Piauí. Em 2005, publicou seu primeiro romance, “A Paixão de Amâncio Amaro” (Agir). Em 2017, foi a vez de se arriscar pelas crônicas com a coletânea “Não me Deixe Aqui Rindo Sozinho” (Realejo Livros).

Essa multiplicidade de talentos, no entanto, nem sempre foi fonte de orgulho. “Quando comecei a escrever para a Globo, escondia das pessoas o que fazia, com medo do que iam achar”, conta. “Talvez fosse coisa da minha própria cabeça. Não estou criticando o mercado, mas tinha medo de que isso fosse visto como defeito.”

Quando comecei a escrever para a Globo, escondia das pessoas o que fazia, com medo do que iam achar

Mas, segundo o publicitário, os tempos mudaram. Com a chegada da internet e das mídias sociais, várias tecnologias e plataformas passaram a fazer parte do dia a dia profissional. E, na publicidade, ter diferentes tipos de conhecimento passou a ser uma habilidade valorizada — e até mesmo desejada.

Na entrevista a seguir, ele defende uma maior diversidade nas agências, como forma de trazer diferentes pontos de vista para dentro da publicidade e aproximar as marcas do público. Também fala sobre a dificuldade de enxergar o mundo pelos olhos do outro, a importância de buscar a novidade e as principais diferenças que existem entre trabalhar e viver.

  • G |Quais os seus maiores aprendizados nesses anos como líder criativo na Ogilvy?

    André Laurentino |

    A importância de criar as condições ideais para a criatividade numa empresa. Meu job hoje é esse. Criamos há uns seis anos um programa chamado The Pipe para trazer diversidade para dentro das agências, porque os líderes do futuro ainda não estão formados e precisam ser muito mais diversos do que os que estão aí hoje. A gente traz pessoas de diferentes classes sociais, diferentes regiões da Inglaterra, raças, culturas, religiões e orientações sexuais. O programa oferece um estágio de dois anos. Depois desse período, graças a uma associação com o governo britânico, os participantes recebem notas que ajudam a entrar na universidade. E não é só para a área de criação, essas pessoas também entram na parte financeira, de atendimento e planejamento. Já tivemos poetas, skatistas, DJs, empilhadores de prateleiras de supermercado, artistas plásticos, designers de joias, todos de camadas que não teriam acesso a uma agência de publicidade. Queremos o talento cru, não dar a eles os nossos vícios. No final de cada ano, contratamos os melhores. Essa turma já conseguiu ganhar concorrências mundiais para as Olimpíadas e grandes marcas como Coca-Cola, levando prêmios como o Leão de Cannes e o Lápis do D&AD, um dos prêmios mais difíceis de se ganhar. Isso é uma grande alegria, criar as condições para que as pessoas, quando chegam na agência, encontrem um ambiente receptivo e possam florescer. Algumas dessas pessoas criaram uma rede interna de apoio à comunidade negra, chamada Roots. O trabalho foi tão bem feito que saiu da Ogilvy e hoje atende toda a WPP, grupo do qual a Ogilvy faz parte. O que me dá prazer é ser mentor dessas pessoas. Quando você dá espaço e condições, não só para essa turma, mas também para grandes talentos da publicidade mundial, cria as condições para que se sintam bem e façam um trabalho maravilhoso. Recebemos dois Grand Prix frutos disso, pela série dos enfermeiros na pandemia da Dove. Nós pegamos as selfies dos enfermeiros e médicos da linha de frente, com a cara toda marcada pelas máscaras. O responsável foi um grande cara que a gente conseguiu trazer para a Ogilvy, Dan Fisher, que hoje é diretor de criação mundial.

  • G |Você teve que abrir mão de algo para chegar onde chegou?

    AL |

    Não. Houve uma época, até os anos 2000, antes do boom da internet, em que se tinha que ter uma fidelidade bombástica à publicidade. Se você era redator, tinha que ser redator, não podia nem olhar para o lado. Era o modelo, uma especialização vertical absoluta. Eu nunca fui assim porque sempre gostei de várias coisas, gostava de desenhar e de escrever. O que eu escrevia era literatura, crônica. Gostava de passear por outras coisas, como a fotografia. Me incomodava o fato de que na publicidade isso seria mal visto. Quando comecei a escrever para a Globo, escondia das pessoas o que fazia, com medo do que iam achar. Talvez fosse coisa da minha própria cabeça. Não estou criticando o mercado, mas tinha medo de que isso fosse visto como defeito. Depois do boom da internet e da proliferação das mídias, o contrário passou a ser verdade. As pessoas gostam do publicitário que tenha vários interesses, porque hoje ele tem que entender de PR (relações públicas), de conteúdo de longo duração, de séries, estruturas narrativas, tecnologia, algoritmo, geolocalização… Por isso eu não tive que abrir mão, porque passou a ser um diferencial. Entendo de roteiro e de desenho. Posso ser um melhor diretor de criação porque fui diretor de arte e posso ser um melhor editor porque fui redator, então sei identificar um problema na imagem ou no texto. Tudo isso eu consigo graças a essa pluralidade de interesses.

Os líderes do futuro ainda não estão formados e precisam ser muito mais diversos do que os que estão aí hoje

  • G |O que um bom publicitário precisa saber?

    AL |

    ??Precisa estar atento às descobertas e inovações tecnológicas, porque elas acontecem quase mensalmente. As mídias estão mudando. O TikTok, por exemplo, está admitindo formatos mais longos para competir com o YouTube. Só que isso é uma parte técnica da coisa. Quem entra em publicidade precisa saber se conectar com as pessoas. E é muito difícil enxergar o mundo através dos olhos dos outros. Sabemos disso pela polarização. Não estou falando da cultura de cancelamento, porque muitas vezes ela pune pessoas com comportamentos nocivos à sociedade. Se o cara é racista, não tem que tentar entender o mundo a partir dos olhos dele, pelo amor de Jesus Cristo. O que eu quero dizer é que uma sociedade muito polarizada impede que as pessoas se aproximem do mundo a partir da experiência alheia. Para quem está entrando no mercado de comunicação e publicidade, isso é fundamental. A mesma coisa para quem vai escrever um livro. É essencial saber pensar com a cabeça do outro porque você vai ter vários personagens. Um erro muito comum, que eu aprendi ao escrever meu próprio romance, é fazer todos os personagens iguais. Dizem que uma receita para escrever qualquer drama é criar um monte de pessoas incompatíveis e pô-las no mesmo ambiente. Vai dar pau para todo lado, aí a história sai. Para criar essas pessoas incompatíveis, você tem que pensar como cada uma delas. Na publicidade, a pessoa vai precisar se comunicar com gente muito diferente dela. Daí a importância da diversidade na equipe de criação, porque preciso de pessoas que tenham outras experiências de vida.

  • G |O que você indicaria como os maiores erros quando se está no início?

    AL |

    Tentar repetir o passado, usar as mesmas armas. Quem está chegando tem que trazer a novidade. Isso não é exclusivo da publicidade. Nas novelas, nas artes, na música, quem está chegando propõe outra coisa. Teve alguém que criou a Bossa Nova, alguém que a desenvolveu e alguém que decidiu mudar de assunto. O Tropicalismo, por exemplo, propôs uma outra pauta. Mas eles não são contra a Bossa Nova. Os Novos Baianos levaram a Bossa Nova para outro lugar. O rock brasileiro, os rappers, o sertanejo levaram a MPB para outro lugar. As pessoas que querem entrar no mercado e manter o que já está não estão começando com uma boa ideia.

  • G |O que você diria para alguém que pensa em trilhar um caminho parecido com o seu?

    AL |

    Duas frases explicam a minha resposta. Todo mundo vê a champanhe que eu tomo, mas ninguém vê os tombos que eu levo. E todo mundo quer ir para o céu, mas ninguém quer morrer. Não fui eu que inventei, essas frases já existem. O que quero dizer é que, para se ter essas várias aptidões, tem que se esforçar para caramba, porque poucos nascem gênios. Picasso, Bach, Mozart, isso é gênio, hoje se usa a palavra com muita leviandade. Tem que ralar. Fiquei desenhando muito, até desisti porque achei muito difícil. Agora voltei. Para escrever, li todo tipo de livro. Desde livro de aeroporto daqueles “seja um best-seller amanhã”, esse tipo bem raso, até Lukács e Walter Benjamin. Dei todo o tempo e disposição que pude. Tenho que saber onde o galo canta, isso custa muito esforço. Ficar a par das coisas em publicidade dá muito trabalho porque tem muito para se saber hoje em dia. Então, meu conselho para quem quer ter uma carreira plural é: se prepare para trabalhar em dobro ou triplo. Uma coisa que é uma grande frustração é que nunca entendi como fazer música. Eu amo música brasileira, é a minha religião, mas não consigo tocar. Comprei agora um violão e achei um professor na internet. Para minha infelicidade, só gosto de Caetano, João Gilberto, Gilberto Gil, coisas muito complicadas, com posições e ritmos difíceis. Estou há dois meses para tocar uma única música, “Eu Quero Samba”. Fico o dia inteirinho em dois acordes até meia-noite, porque amo esse negócio. Só para entender a teoria, por pura paixão, porque não vou viver de música, mas serve para tirar minha cabeça do dia a dia. O segredo é gostar. Eu li uma frase muito divertida que contraria o que eu disse. Procure trabalhar com o que você ama e nunca mais vai amar nada na vida. Realmente, se você ama escrever e vira escritor, já não é mais prazer, vira obrigação. Então consigo fazer muitas coisas em nível amador.

Ficar a par das coisas em publicidade dá muito trabalho porque tem muito para se saber hoje em dia. Então, meu conselho para quem quer ter uma carreira plural é: se prepare para trabalhar em dobro ou triplo

  • G |A paixão e a motivação andam juntas?

    AL |

    O limite de quão bom você quer ser, o esforço quem faz é você. A não ser que seja gênio, porque ninguém vai escrever “A Divina Comédia” só se esforçando, mas com certeza vai ficando cada vez melhor do que era antes. Sem paixão, esse esforço vai estar limitado logo de cara. No documentário “Jiro Dreams of Sushi” (2011), se aquele cara [o chef japonês Jiro Ono] não amasse sushi, não ia ficar a vida inteira se aperfeiçoando nisso. Ele trabalhava tanto que nunca via os filhos. Um dia, o filho acordou assustado e falou: “Mamãe, tem um homem dormindo na sala”. Era o pai. Eu acho uma vida de merda, mas cada um é cada um. Sem paixão, esse cara não ia se dedicar desse jeito. Com as aulas, fui entender o que o João Gilberto consegue fazer no violão. Para chegar naquele grau, ele chegou a ficar oito meses numa mesma música. Ficou trancado no banheiro da casa da irmã dele uma semana inteira num único acorde. Só paixão faz um negócio desse. Claro que era um gênio, a capacidade do cérebro dele assimilou essas coisas que ninguém mais conseguiu.

  • G |Quais têm sido os maiores desafios para o seu trabalho?

    AL |

    Como juntar as marcas e os serviços dos clientes às pessoas. Esse é o maior desafio. Porque há, evidentemente, uma sobrecarga de informação de que a gente não consegue dar conta nem no grupo de família do WhatsApp. Imagine o que as marcas estão querendo que você faça, se interesse, leia, entenda, lembre, compre, prefira. Na minha profissão, o maior desafio é descobrir como fazer as pessoas se interessarem pelos serviços ou produtos das marcas para as quais eu trabalho.

  • G |Na sua trajetória você cometeu alguma falha que não cometeria hoje?

    AL |

    Várias. Hoje em dia as respostas das empresas a comentários em mídia social têm que ser muito ágeis e espertas, porque grandes empresas e profissionais foram treinados em outro mundo, um mundo de broadcast, em que a mensagem era transmitida quase num monólogo. Toda uma geração de grandes profissionais foi treinada para o monólogo. Hoje em dia, são diálogos. Uma das coisas que aprendi, por dar com os burros n’água muitas vezes, é a velocidade que essa conversa tem que ter. O jornal costumava ter a seção de cartas à redação. Hoje a pessoa bota no Instagram e taggeia o jornal. Se os seguidores concordarem, todo mundo vai compartilhar numa velocidade que, quando a empresa der conta, já não tem mais volta. E é uma radicalização das coisas. As áreas cinzas, onde geralmente está a verdade, não existem mais. Tem algumas marcas que dão show nesse atendimento, e a gente tem que aprender com elas.

  • G |Você vive para trabalhar?

    AL |

    Essa pergunta é interessante porque, pelo volume de dedicação que dou ao meu trabalho, diria que sim. Mas encontrei alguns meios de ter prazer. Vou responder com uma frase boa que vi na internet. Deve ser de algum filósofo grego, sei lá quem é [na internet, a frase é atribuída ao pensador chinês Confúcio]: “Toda pessoa tem duas vidas, e a segunda começa quando ela descobre que só tem uma.” Com a pandemia, passamos por aquela fase tenebrosa que durou quase um ano inteiro, em que os países listavam um número acima de mil mortes todos os dias. Nosso Facebook era praticamente um obituário. O que eu vejo em vários briefings que recebo é que as pessoas estão reavaliando sua relação com a vida. Quero dizer que os desenhos que eu faço, o violão que eu toco não servem para nada além de desenhar ou tocar violão. O fim está na própria ação, essa é a definição do prazer. O trabalho eu faço com várias finalidades, para ganhar uma reputação, uma promoção, meu salário, uma carreira. Mas não pretendo tocar violão nem para minha mulher — que, aliás, não me aguenta, e com razão. Eu faço para mim. Isso é viver.

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