O que acontece quando uma mulher vai presa? — Gama Revista
Rafa Elias / Getty Images

O que a sociedade perde quando uma mulher vai presa?

Entre 2000 e 2016 a população carcerária feminina aumentou 656%. A maioria dessas mulheres representa a única referência financeira e afetiva de suas famílias, deixando uma lacuna que exige a mobilização de redes de apoio — em geral, de outras mulheres

Mariana Payno 03 de Outubro de 2020

Quando uma mulher é presa, toda a família é presa também — entre as que passaram pelo sistema prisional e as que trabalham com o tema, essa é a impressão geral de todas as entrevistadas para esta matéria. Ancorada na realidade, a metáfora tem sua razão de ser: um relatório de 2017 do ITTC (Instituto Terra, Trabalho e Cidadania) atestou que a maioria das mulheres encarceradas era, antes da prisão, o núcleo financeiro e afetivo de suas famílias — ou seja, as principais, ou muitas vezes as únicas, responsáveis não só pelo sustento material, mas pelos cuidados de filhos e filhas, idosos e pessoas com deficiência.

“Por isso, quando uma mulher é privada de liberdade, toda a sua rede é afetada, exatamente por esse papel central ocupado por ela nas dinâmicas familiares”, explicam a Gama Raissa Maia e Juliana Ávila, especialistas do ITTC. Tamanho papel dificilmente pode ficar vago — e, em geral, quem se mobiliza para preencher essa lacuna é uma outra mulher. “[O cuidado com a família] vai ser direcionado para uma sogra, irmã, tia, avó, mãe. Isso significa uma alteração no dia a dia: muitas vão ter que deixar seus postos de trabalho ou disponibilizar mais renda familiar”, observa Surrailly Youssef, defensora pública do estado de São Paulo.

Foi o que aconteceu com a venezuelana Yehny Cisneros, 40. Durante os dois anos em que esteve em uma penitenciária na capital paulista — e enquanto continua trabalhando por aqui para enviar dinheiro a uma Venezuela em constante crise —, sua filha de 14 anos ficou com a irmã mais velha, de 20, e o filho de 17 passou a morar com a avó paterna. “Minha filha [mais velha] tinha acabado de dar à luz, teve que aprender sozinha a cuidar da criança e tocou a responsabilidade de cuidar também da minha outra filha”, conta. Agora em liberdade, Cisneros fez parte das 36.929 mulheres que estavam presas até dezembro de 2019 no Brasil, segundo os dados do governo. Assim como ela, 74% dessas prisioneiras são mães.

O cuidado com a família vai ser direcionado para uma sogra, irmã, tia, avó, mãe

Lá da Venezuela, a primogênita de Cisneros não pôde fazer muito mais do que zelar pelos irmãos mais novos — visitas seriam, claro, impossíveis; conversar pelo telefone nas saídas temporárias dos feriados era o que dava. Mas, quando os familiares estão mais próximos, as idas à prisão e as necessidades das mulheres lá dentro acabam se tornando outras preocupações de quem fica do lado de fora. “Tem uma série de questões que é preciso suprir, como o jumbo, que é muito caro”, diz Ana Luiza Voltolini, comunicadora do Centro de Convivência É de Lei e autora do livro “Nosotras” (Recriar, 2020), sobre mulheres imigrantes presas no Brasil.

Voltolini afirma que são majoritariamente mulheres que se organizam para fazer visitas, preparar os alimentos e comprar os produtos para o jumbo (conjunto de itens que os presos podem receber de seus familiares, como alimentos, produtos de higiene pessoal, roupas e cigarros). Realidade que não muda, diga-se de passagem, quando é um homem que está preso. “A questão de gênero está muito por trás do encarceramento”, na opinião de Youssef — seja pelo vácuo que as mulheres presas deixam em suas famílias, seja pelas funções que as outras assumem a partir daí. Em um país em que a população carcerária feminina aumentou 656% entre 2000 e 2016 +, essa não é uma equação com poucos envolvidos.

Enfraquecimento dos vínculos

“Meu filho tinha dois anos quando fui presa. Quando ele foi me visitar pela primeira vez, depois de um ano, não me reconheceu como mãe, era uma criança tímida”, conta Camila Lopes, 29, que passou quatro anos na Penitenciária Feminina de Santana, em São Paulo. “A situação é muito ruim: é bom a visita estar ali, mas a questão de ir embora é muito difícil.” Enquanto ela estava na cadeia, o filho ficou com o pai e os sogros; as visitas não eram muito frequentes, mas aconteciam.

Nem todas as mães encarceradas, porém, continuam em contato com as crianças, sobretudo as pequenas. Fatores como as revistas vexatórias, prática ainda comum em muitas instituições, e as distâncias transformam o evento em uma grande jornada para as famílias. “O processo de visita é muito violento. É longe, cansativo, difícil de fazer com um bebê”, afirma Voltolini. O resultado é que os vínculos vão sendo enfraquecidos, e as pesquisadoras Raissa Maia e Juliana Ávila, do ITTC, ressaltam os danos ao desenvolvimento físico, emocional, social e psicológico das crianças que a situação pode trazer.

Não é uma perda, é uma marca. A gente nunca sai como entrou

“Foi muito difícil, principalmente no começo. Eu estava muito acostumada aos meus filhos, e eles a mim. Perdi nosso dia a dia, perdi muitos aniversários”, conta Yehny Cisneros. Ainda separada da família que ficou na Venezuela, ela comemora a chance de conversar diariamente com os filhos e netos pela câmera do celular depois que saiu da prisão — o neto mais novo só conhece a avó pela tela.

Nem todas têm a mesma “sorte” de manter os vínculos: a prisão pode romper definitivamente com laços afetivos, dizem as especialistas do ITTC. Afinal, um sistema carcerário como o do Brasil, cheio de problemas e privações, pode deixar sequelas mais profundas naquelas que o vivenciam. “A consequência do cárcere é marcada para sempre na sua vida: quanto mais tempo passa, menos você esquece. É uma dor para a pessoa e para a família, mas não é uma perda; é uma marca. A gente nunca sai como entrou”, diz Camila Lopes. Seu relato vai ao encontro das observações de Ana Luiza Voltolini. “A prisão adoece física e mentalmente. É muito difícil curar isso se você não tem uma rede de apoio”, avalia a comunicadora.

Aí entra uma nova mobilização necessária por parte das famílias: a de reintegrar a mulher egressa — o que não é fácil e nem sempre acontece. “É uma função de acolhimento, porque se a pessoa já tinha obstáculos para acessar saúde, educação, trabalho formal, esses obstáculos são maiores a partir do momento em que carrega consigo o estigma [de ter passado pela prisão]. É mais difícil acessar o mercado de trabalho, ser aceito pela sociedade, e isso implica um esforço familiar para reincluir essa mulher nas redes de apoio e de contato”, diz defensora pública Surrailly Youssef.

Lopes teve a sorte de contar com o apoio dos pais, dos sogros e do companheiro. Oito anos depois de ter saído da cadeia, ela toca o próprio negócio e cursa Serviço Social na PUC-SP. Na universidade, estuda e pesquisa a questão carcerária; participa de eventos e divide abertamente sua experiência — mas nem sempre foi assim. “Eu saí desconfiada de todo mundo, porque, na verdade, você é uma pessoa rejeitada, pensa que se as pessoas souberem vão te rejeitar”, diz. “Ter as pessoas ali te incentivando é importante. Eu não tinha nada quando saí, então qualquer tipo de conquista era uma grande conquista.”

Saí desconfiada de todo mundo, porque você pensa que se as pessoas souberem vão te rejeitar

Desigualdade sistemática

Lopes, no entanto, rejeita o discurso de “ressocialização” — a função a que, idealmente, as prisões se prestariam. “A gente já é social, já está socializado, não é bicho. Temos é que ser integrados à sociedade de uma maneira que garanta nossos direitos”, defende. A falta de respaldo do poder público, tanto com políticas preventivas ao cárcere quanto para reinserção das egressas — como a garantia de moradia, emprego e educação —, é criticada por ela e por outras especialistas no tema. “Caso direitos básicos fossem garantidos, possibilitando uma existência digna às pessoas historicamente atingidas pelas desigualdades étnico-raciais, as prisões poderiam ser evitadas”, atestam Maia e Ávila, do ITTC.

Para elas, entender o problema da prisão de mulheres passa necessariamente pela compreensão de um cenário de empobrecimento feminino e de racismo estrutural +. Sem alternativas no mercado formal, várias acabam recrutadas pelo tráfico de drogas — movimento que tem crescido nos últimos anos. A associação ao tráfico é o delito mais recorrente entre as mulheres presas, cometido em 62% dos casos, de acordo com o Infopen +.

“Muitas mulheres cometem crimes porque precisam complementar a renda para sustentar seus filhos, e o tráfico é um trabalho flexível que permite que elas estejam em casa para cuidar deles”, diz Youssef. A defensora pública explica que o problema é agravado pela existência de uma divisão sexual do trabalho no mercado ilícito. “A mulher desempenha papéis de guarda, transporte, varejo, se tornando mais vulnerável ao policiamento ostensivo de uma política de drogas punitivista.”

O panorama revela, então, um grande ciclo de vulnerabilidade dessas mulheres e de suas famílias — e embora isso seja percebido com bastante clareza por quem atua diretamente junto a elas, não é assim que o sistema de justiça avalia os casos. “Existe uma clara resistência do judiciário a enxergar todas as dinâmicas sociais que levam a mulher à prisão. É um sistema que pune as mulheres não só por romper a lei, mas por romper seu papel social de gênero”, afirma Youssef. Ela acredita que os julgamentos não ficam apenas no âmbito penal, mas também são morais, ao considerarem mulheres que cometeram crimes incapazes de exercer a maternidade, por exemplo.

Existe uma clara resistência do judiciário a enxergar todas as dinâmicas sociais que levam a mulher à prisão

Essa mentalidade, muitas vezes, inviabiliza que alternativas menos penosas para a vida em família do que a prisão em regime fechado sejam postas em prática. O Brasil possui mecanismos como o Marco Legal da Primeira Infância e as Regras de Bangkok +, das quais o país é signatário, que poderiam garantir a prisão domiciliar cautelar durante o processo penal para gestantes, mães de crianças com até 12 anos ou de pessoas com deficiência. Apesar de muitas se enquadrarem nesses casos, os dados do Infopen mostram que 45% das mulheres presas ainda não foram julgadas e condenadas.

Enquanto aguardam a sentença na prisão, as famílias sofrem as consequências dessa ausência. Para Youssef, a única forma de reverter esse quadro é “repensar o encarceramento como principal mecanismo de resposta aos conflitos sociais” e reconhecer que “a prisão de mulheres é desproporcional e tem efeitos nefastos para a sociedade”.

A prisão de mulheres na pandemia

Durante a pandemia, o Conselho Nacional de Justiça recomendou a saída antecipada da prisão para mães de crianças de até 12 anos ou de pessoas com deficiência, grávidas e lactantes, idosas, indígenas e presas com deficiência ou que fazem parte dos grupos de risco. Entretanto, de acordo com os dados da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, apenas cerca de 7% dos processos peticionados para situações como essas resultaram no alvará de soltura —  o que a defensora pública Surrailly Youssef considera bastante negativo. “Os filhos também estão em isolamento, sem atividades educacionais, e com isso a responsabilidade das outras mulheres ficou ainda maior. O apoio da mulher presa em casa reduziria essa carga de trabalho e mais uma série de demandas que são desconsideradas. Mesmo com a pandemia, muitos atores do sistema de justiça não se sensibilizaram para essa questão”, diz.

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