Trecho de Livro: Trem-Bala, de Kotaro Isaka — Gama Revista

Trecho de livro

Trem-Bala

Adaptado para o cinema com Brad Pitt, thriller do japonês Kotaro Isaka coloca em rota de conflito cinco assassinos viajando num trem de alta velocidade

Leonardo Neiva 03 de Junho de 2022

Cinco assassinos profissionais. Uma maleta misteriosa. Um trem-bala avançando em altíssima velocidade entre Tóquio e a cidade de Morioka, no norte do Japão. Essa é a receita do escritor Kotaro Isaka para um suspense de tirar o fôlego, que vendeu mais de 700 mil cópias só em terras japonesas. Agora, além de desembarcar por aqui, o livro “Trem-Bala” (Intrínseca, 2022) também está prestes a estrear nos cinemas numa adaptação hollywoodiana repleta de ação, com um elenco encabeçado por nomes como Brad Pitt, Sandra Bullock, Aaron Johnson, Bryan Tyree Henry, Joey King e Logan Lerman

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A trama, que se inicia com um pai em luta contra a bebida e buscando vingança contra um psicopata mirim que botou seu filho em coma, vai trocando de pontos de vista entre os vários assassinos que, por um acaso do destino, embarcaram num mesmo trem. O título do livro, aliás, não surge apenas para descrever o cenário onde toda a narrativa se desenrola. A própria história também avança na velocidade do veículo dentro do qual seus personagens se encontram, repleta de revelações e reviravoltas que vão se alternando de forma vertiginosa como as curvas do caminho.

Autor especializado em livros de mistério, Isaka é best-seller absoluto em seu país de origem, já tendo vendido milhões de cópias de suas obras, que também foram adaptadas mais de dez vezes para o cinema e a TV. Vencedor de vários prêmios do gênero no Japão e no exterior, ele já teve outros de seus livros traduzidos para o inglês, mas “Trem-Bala” é o primeiro a chegar ao Brasil, na esteira de sua adaptação cinematográfica, que tem estreia prevista para agosto.


Kimura

A estação de Tóquio está abarrotada. Já faz algum tempo desde a última vez em que Yuichi Kimura esteve aqui, então ele não tem certeza se ela está sempre lotada desse jeito. Se alguém lhe dissesse que havia algum evento especial acontecendo, ele acreditaria. As turbas que vêm e vão o empurram, fazendo-o se lembrar do programa de TV a que assistiu com Wataru, um sobre pinguins, todos amontoados, coladinhos. Pelo menos os pinguins têm uma desculpa, pensa Kimura. Faz muito frio onde eles moram.

Ele espera por uma brecha na torrente de pessoas e corta caminho por entre as lojas de suvenires e quiosques, apertando o passo.

Após subir um lance curto de escadas, Kimura chega à catraca do trem-bala, o Shinkansen. Ele fica tenso assim que cruza o portão da bilheteria automatizada, imaginando que, de alguma forma, ela possa detectar a pistola no bolso do seu casaco e prendê-lo ali enquanto os seguranças o cercam, mas nada disso acontece. Ele diminui o passo e olha para o painel, para conferir a plataforma do seu trem, o Hayate. Um policial uniformizado está de guarda, mas o tira aparentemente não presta a menor atenção nele.

Um menino que parece ter uns oito ou nove anos com uma mochila nas costas esbarra em Kimura. Ele sente um aperto no peito ao pensar em Wataru. Ele imagina seu filho lindo, deitado inconsciente e imóvel numa cama de hospital. A mãe de Kimura berrou quando o viu. “Olhe pra ele, parece que está só dormindo, como se nada tivesse acontecido. Como se ele estivesse ouvindo tudo o que estamos dizendo. Isso é demais pra mim.” Pensar naquilo faz Kimura sentir-se estraçalhado por dentro.

Esse filho da puta vai pagar. Quando alguém pode empurrar um menino de seis anos do telhado de uma loja e seguir andando livre e ileso por aí é porque tem alguma coisa muito errada com o mundo. Kimura sente o peito apertar novamente, não de tristeza, mas de raiva. Ele avança depressa em direção à escada rolante segurando com força um saco de papel. Eu parei de beber. Eu consigo andar em linha reta. Minhas mãos estão firmes.

O Hayate já está na plataforma, esperando sua vez de partir. Kimura vai disputando espaço com a multidão até o trem e embarca na primeira porta que vê, no terceiro vagão. De acordo com as informações que levantou com seus antigos contatos, seu alvo está sentado no lado dos assentos para três pessoas, na quinta fileira do sétimo vagão. Ele vai entrar no vagão de trás e atacá-lo sorrateiramente pelas costas. Tranquilo, bem objetivo e alerta.

Ele segue até o espaço que conecta os vagões. Há um recuo com uma pia à esquerda, e ele para em frente ao espelho. Fecha a cortina que separa o pequeno lavabo do restante do trem. Então, olha para o seu reflexo. Cabelo desgrenhado, remela no canto dos olhos. Fios do bigode apontando para todos os lados. Até sua barba de três dias parece malcuidada. Um verdadeiro farrapo. Não é fácil se ver daquele jeito. Ele lava as mãos, esfregando-as debaixo d’água até que a torneira automática se fecha. Seus dedos tremem. Isso não é a bebida, é só o nervosismo, ele diz a si mesmo.

Quando alguém pode empurrar um menino de seis anos do telhado de uma loja e seguir andando livre e ileso por aí é porque tem alguma coisa muito errada com o mundo

Ele não usava a arma desde que Wataru havia nascido. Mal tocou nela enquanto se preparava para essa missão. Agora, está feliz por não a ter jogado fora. Uma arma vem bem a calhar quando você quer dar um susto em alguém, quando precisa deixar bem claro que algum idiota passou muito dos limites.
A face no espelho se retorce. Rachaduras partem o vidro, a superfície se incha e se deforma, e um sorriso sarcástico se esculpe em seu rosto.

— O que passou, passou — diz seu reflexo. — Você vai dar conta de puxar o gatilho? Você não passa de um bêbado que não conseguiu proteger nem o próprio filho.

— Eu parei de beber.

— Seu filho está no hospital.

— Eu vou pegar o filho da puta.

— Você vai conseguir perdoá-lo?

A bolha de emoção dentro de sua cabeça não faz mais nenhum sentido e, portanto, explode.

Ele enfia a mão no bolso do casaco esportivo preto e puxa a arma de lá, depois tira um objeto fino e cilíndrico de dentro do saco de papel. Ele encaixa o silenciador e o rosqueia até o final. Aquilo não vai eliminar completamente o barulho do tiro, mas, numa .22 como essa, vai abafá-lo e deixar parecendo um puf, mais fraco que o som de uma arminha de brinquedo.

Ele se olha mais uma vez no espelho, assente, coloca a arma dentro do saco de papel e se afasta da pia.

Uma atendente está preparando o carrinho de lanches, e ele quase a atropela. Kimura abre a boca para gritar “Sai da frente!”, mas seus olhos encontram as latinhas de cerveja e ele prontamente bate em retirada.

“Lembre-se, um gole e acabou.” As palavras do pai vêm à sua mente. “O alcoolismo nunca desaparece de verdade. Basta um gole para começar tudo de novo.”

Ele entra no quarto vagão e segue pelo corredor. Um homem sentado à sua esquerda está ajeitando as pernas e esbarra em Kimura quando ele passa. A arma está segura dentro do saco de papel, porém está maior do que o normal por causa do silenciador, e bate contra as pernas do homem. Kimura puxa rapidamente o saco para perto de si.

Seus nervos se tensionam, e ele sente uma onda de adrenalina. Vira-se para o homem — expressão amigável, óculos de armação preta, inclinando a cabeça timidamente ao pedir desculpas. Kimura estala a língua, dá as costas e está prestes a seguir em frente quando o senhor amigável lhe diz:

Você vai dar conta de puxar o gatilho? Você não passa de um bêbado que não conseguiu proteger nem o próprio filho

— Ei, seu saco está rasgado.

Kimura para e olha. É verdade, tem um rasgo no saco, mas não há nada saindo por ele que possa ser facilmente identificado como uma arma.

— Cuide da sua vida — resmunga ele, enquanto vai se afastando.

Ele deixa o quarto vagão e começa a ganhar velocidade enquanto cruza o quinto e o sexto.

Certa vez, quando ainda estava acordado, Wataru perguntou: “Por que o vagão número um do Shinkansen é o que fica por último?”

A mãe de Kimura respondeu: “Porque o vagão que estiver mais próximo de Tóquio é o número um.”

“Por que, papai?”

“O vagão mais próximo de Tóquio é considerado o primeiro vagão, o vagão seguinte é o segundo. Então, quando pegamos o trem para a cidade onde o papai cresceu, o vagão número um é o que fica por último, mas quando voltamos para Tóquio, o número um é o que vai na frente.”

“Quando o Shinkansen viaja na direção de Tóquio, dizem que ele está subindo, e os trens que deixam a cidade estão descendo”, acrescentou o pai de Kimura. “Tóquio sempre é o centro de tudo.”

“Vovô, vovó, então vocês sempre sobem pra nos visitar!”

“Bom, nós queremos ver vocês, por isso viemos. Subimos o morro a toda velocidade!”

“Mas não são vocês quem sobem, é o Shinkansen!”

O pai de Kimura olhou para o filho.

“O Wataru é uma graça. Difícil acreditar que é seu filho.”

“As pessoas me perguntam o tempo todo ‘Quem é o pai?'”

Os pais dele ignoraram o comentário azedo e saíram tagarelando animadamente:

“Vai ver as coisas boas pularam uma geração!”

Ele entra no sétimo vagão. À esquerda do corredor há fileiras de assentos para duas pessoas e, à direita, assentos para três, todos virados para a frente, de costas para Kimura. Ele enfia a mão dentro do saco, envolve a coronha da arma e então começa a andar, contando as fileiras.

Há mais assentos vazios do que ele esperava, meia dúzia de passageiros espalhados. Na quinta fileira, ao lado da janela, ele vê a parte de trás da cabeça de um adolescente. O garoto se espreguiça. Ele veste uma camisa de colarinho branco por baixo de um blazer. Está impecável, feito um aluno digno de integrar um quadro de honra. Vira-se para olhar pela janela e fica encarando, pensativo, outro trem-bala parando na plataforma.

A uma fileira de distância, ele é acometido por um instante de hesitação. Eu vou mesmo machucar um garoto que parece tão inofensivo?

Kimura se aproxima. A uma fileira de distância, ele é acometido por um instante de hesitação. Eu vou mesmo machucar um garoto que parece tão inofensivo? Ombros estreitos, estrutura delicada. Parece só um adolescente discretamente empolgado por viajar sozinho no Shinkansen. A determinação e a agressividade dentro de Kimura arrefecem um pouco.

Então, faíscas estalam à sua frente.

Num primeiro momento, ele acha que o sistema elétrico do trem entrou em curto. Mas era o seu próprio sistema nervoso entrando em colapso por uma fração de segundo, primeiro com faíscas e, depois, com um apagão. O garoto encostado na janela havia girado o corpo e encostado uma coisa parecida com um enorme controle remoto de TV na coxa de Kimura. Quando finalmente percebe que aquilo é uma arma de choque artesanal tipo a que aqueles adolescentes usavam, Kimura já está paralisado, completamente imóvel, com todos os pelos de seu corpo eriçados.

Quando dá por si, está abrindo os olhos, sentado ao lado da janela. Suas mãos estão amarradas à sua frente. Seus tornozelos também, envoltos em faixas de um tecido resistente e fita adesiva. Kimura agita os braços e as pernas, mas seu corpo não sai do lugar.

— Você é muito burro, Sr. Kimura. Não acredito que seja tão previsível. Você é mais confiável que um programa de computador. Sabia que você viria atrás de mim aqui. Sei exatamente o que veio fazer.

O garoto está sentado bem ao seu lado, falando de forma descontraída. Alguma coisa em suas pálpebras bem-marcadas e no seu nariz pequeno lhe confere um aspecto um tanto quanto feminino.

Este garoto havia empurrado o filho de Kimura do telhado de uma loja, e estava rindo quando fez isso. Embora estivesse no ensino médio, falava com a confiança de alguém que tinha vivido muito mais tempo.

— Eu sei que já disse isso, mas ainda estou surpreso com como tudo correu tão bem. A vida é mesmo muito fácil. Mas não pra você, sinto dizer. E pensar que você ainda largou sua preciosa bebida e se preparou tanto pra isso!

Produto

  • Trem-Bala
  • Kotaro Isaka
  • Intrínseca
  • 464 páginas

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