Solidão e Companhia
A partir da dissonância de depoimentos de amigos e familiares, a jornalista Silvana Paternostro, desafeto de García Márquez, reconstrói a trajetória do autor de “Cem Anos de Solidão”
POR QUE LER?
“Quando lhe concederam o Nobel, seu pai deu uma entrevista para o Diario de la Costa e mencionou todas as cidades onde viveu, dizendo que Gabo não havia inventado nada. Que a história de Remédios, é claro, era da Señora Fulana de Tal, cuja filha ou neta havia fugido com algum sujeito…”
A fala da produtora cinematográfica e crítica colombiana Margarita de La Viega, filha de um grande amigo de Gabriel García Márquez (1927-2014), descreve como muitos na família do escritor enxergavam as incursões do então jornalista pela literatura: uma versão ficcional da vida provinciana que o autor viveu até seus oito anos de idade. A Macondo de “Cem Anos de Solidão”, então, espelhava sua juventude em Aracataca, cidadezinha no interior da Colômbia. Já os patriarcas do romance, Aureliano e Úrsula, seriam inspirados em seus avós, com quem mantinha largo convívio na época.
Construído a partir de uma dissonância de vozes de amigos, familiares, conhecidos e até mesmo desafetos, que buscam relembrar o Gabo — ou Gabito, como era conhecido pelos mais íntimos —, “Solidão e Companhia” (Crítica, 2021) desencava um retrato oral rico em pontos de vista, em alguns casos até mesmo um tanto contraditórios.
A autora, a colombiana Silvana Paternostro, não era ela mesma exatamente próxima de Márquez. Na verdade, as duas crônicas que escreveu sobre Gabo, depois de participar de uma prestigiada oficina ministrada por ele, desagradaram bastante o autor de “O Amor nos Tempos do Cólera” (1985) e “Crônica de uma Morte Anunciada” (1981). Isso passa longe de apagar, no entanto, o extraordinário trabalho da jornalista e escritora, que, por meio de dezenas de entrevistas minuciosas, faz uma descrição complexa da vida e psicologia de um dos artistas mais aclamados de nossos tempos.
EDUARDO MÁRCELES DACONTE: Gabito morou em Aracataca até os 8 anos de idade. Quando seu avô morreu, ele foi para Sucre, porque seu pai havia sido transferido para lá.
MARGOT GARCÍA MÁRQUEZ: Eu me lembro muito bem do funeral porque chorei aquele bendito dia inteiro, nada me consolava. Gabito não estava conosco porque tinha ido com meu pai e Luis Enrique a Sincé em outra das aventuras que meu pai empreendia. Gabito retornou a Aracataca vários meses após a morte de Papá Lelo, e talvez por isso eu não me lembre da reação dele; ele certamente deve ter sentido uma tristeza profunda, porque os dois se amavam muito, eram inseparáveis. Continuamos a viver um pouco mais com a minha avó, a tia Mama e a tia Pa, cujo nome era Elvira Carrillo, uma filha ilegítima do meu avô Nicolás, isto é, meia-irmã da minha mãe. A tia Pa era uma mulher muito boa, cuidou da minha avó com dedicação total até ela morrer, como se ela própria tivesse sido sua filha. Moramos na casa da minha avó até que o dinheiro começou a acabar e ela teve que viver do que meu tio Juanito lhe enviava; então decidiram que Gabito e eu ficaríamos na casa de nosso pai, em Sucre. A família havia se mudado para lá.
MARGARITA DE LA VEGA: Pela primeira vez ele foi morar com os pais, que agora estavam numa situação financeira melhor. A essa altura, a irmã nascera, a que mais tarde se tornaria freira.
Gabito retornou a Aracataca vários meses após a morte de Papá Lelo (…); ele certamente deve ter sentido uma tristeza profunda, porque os dois se amavam muito, eram inseparáveis
CARMELO MARTÍNEZ: Sucre era uma cidade muito importante, mas na década de 1940 as inundações causaram uma grande quantidade de estragos. Era uma cidade com sete ou oito mil habitantes. Para chegar a Sucre, é preciso ir a Magangué. Em Magangué, pega-se um barco com motor de popa e segue-se para Sucre. Mas depende, num barco com dois motores de popa de 100 ou 150 cavalos de potência cada, pode-se chegar lá em 45 minutos. Gabito morou em Sucre até ir para Barranquilla. Bem, ele estava estudando no colégio San José, em Barranquilla, com os jesuítas. Eu o conheci em Sucre por volta de 1940 (nós dois tínhamos 13 anos) porque sua casa — onde seu pai, o doutor García, morava — ficava na frente da minha.
JUANCHO JINETE: Quando menino, ele estudou aqui em Barranquilla, no colégio San José.
MARGOT GARCÍA MÁRQUEZ: Foi por isso que, quando enviaram Gabito para estudar no San José, em Barranquilla, eu me senti abandonada. Sempre fui muito próxima dele, ele era tão amoroso, parecíamos gêmeos. Ele terminou o ensino fundamental em Sucre e, quando tinha 11 ou 12 anos, apenas três meses depois que fomos morar na casa dos nossos pais, ele foi para Barranquilla, e eu fiquei sozinha. O choque foi tremendo. A calma e a ordem a que eu estava acostumada desapareceram, porém, o que eu mais sentia falta era do meu carinho por meus avós; eu não conseguia me aproximar da minha mãe porque ela não tinha tempo, com tantas crianças, e de meu pai menos ainda. Para mim, ele sempre pareceu distante, tanto que todos os meus irmãos o chamavam de tú; eu o chamava de usted.
CARMELO MARTÍNEZ: Ele sempre teve vocação para ser escritor porque no colégio San José, em Barranquilla, criou um pequeno jornal. Quero dizer que ele basicamente era escritor, um jornalista. Ele não falava de romances. Isso veio depois.
MARGOT GARCÍA MÁRQUEZ: Ele foi um ótimo aluno, ganhava prêmios, medalhas por excelência, o melhor do colégio. Naquela época, os prêmios que davam aos melhores alunos eram livretos de missa, porque, claro, era um colégio jesuíta; bem, Gabito me enviou o livreto que lhe deram, com uma dedicatória para mim; ele me enviava cartões ilustrados, medalhas, rosários, tudo que eles lhe davam ele enviava para mim. Eu também escrevia para ele em Barranquilla, para a casa do tio Eliécer García, o irmão de nossa avó Argemira (mãe do meu pai), onde ele estava morando. Ay! Quão feliz fiquei quando Gabito chegou em casa para as férias. Nós dois estávamos de novo próximos, eu tentava oferecer a ele o melhor, preparava as pequenas fatias de banana-da-terra frita de que ele tanto gostava.
Naquela época, os prêmios que davam aos melhores alunos eram livretos de missa, porque, claro, era um colégio jesuíta; bem, Gabito me enviou o livreto que lhe deram, com uma dedicatória para mim
QUIQUE SCOPELL: Eu o conheci com Ricardo González Ripoll, meu primo, porque eles saíram daqui para estudar em Zipaquirá. Subíamos o rio Magdalena de barco quando precisávamos ir a Bogotá. Nós três viajamos de barco. Comecei a estudar em Bogotá, mas eu estava apaixonado e o amor era mais forte do que meus estudos, e desde então tenho sido um beberrão por toda a vida, foi quando comecei a beber rum. E, como punição, me enviaram para estudar nos Estados Unidos.
FERNANDO RESTREPO: Gabo diz que foi no Colegio Nacional de Zipaquirá que ele descobriu sua paixão pela literatura e pelo romance, estimulado por um professor. Certa vez, perguntei: “Ei, e como você chegou a Zipaquirá?”. Então ele respondeu que sua bolsa era para um colégio em Bogotá, só que não havia mais vagas, e por fim encontraram um lugar para ele no colégio em Zipaquirá, e assim foi parar lá. Eu não conhecia a escola, mas, quando fomos com ele, passamos por ali, e ele olhou para ela e apontou para onde estivera. É um colégio oficial que tinha um grande internato. Era somente para homens. Ou seja, não era uma escola importante. Era desconhecida fora dos limites locais.
CARMELO MARTÍNEZ: Ele foi para Zipaquirá para terminar o ensino médio e depois entrou na faculdade de direito.
MARGARITA DE LA VEGA: Quando lhe concederam o Nobel, seu pai deu uma entrevista para o Diario de la Costa e mencionou todas as cidades onde viveu, dizendo que Gabo não havia inventado nada. Que a história de Remédios, é claro, era da Señora Fulana de Tal, cuja filha ou neta havia fugido com algum sujeito… Ela disse que, na verdade, os lençóis a levaram embora quando estendia roupas, e que ela havia desaparecido. Divino. Guardei essa entrevista por um longo tempo. Naquela época, lembre-se, eram recortes de jornal. Na entrevista, ele disse que os padres em San José haviam dito que Gabo era esquizofrênico e que ele o curara com alguns glóbulos homeopáticos. Imagino que Gabo tinha uma imaginação incomum e que amadureceu muito rapidamente, porque crescera apenas com idosos. E isso acontece quando crianças crescem com idosos ou são muito próximas a eles. Ele era assim naquela época.
JAIME ABELLO BANFI: Gabo era um clarividente. É um clarividente, melhor dizendo. Naquela época ele era clarividente em termos da própria cultura. Ou seja, um homem do Caribe colombiano que em um de seus primeiros artigos já fala sobre os problemas da literatura colombiana. É um garoto de 20 anos e já está julgando o romance colombiano. Incrível.
Falava sobre a música vallenato quando ninguém prestava atenção no vallenato. Falava sobre mil coisas.
O fato é que, em primeiro lugar, ele é um gênio. Não se engane. Ele tem a inteligência de um gênio. É superperceptivo. E também tem a capacidade de se antecipar a acontecimentos. Com um sexto sentido. Então, é um gênio acima de qualquer suspeita. Em segundo lugar, ele lia bastante desde muito cedo, tanto que eles tinham medo de que perdesse a cabeça quando era jovem, porque lia demais. E, em terceiro lugar, seu contexto. Aquele contexto que é tão bem contado na memória de sua família, com todas aquelas viagens. Aquela família singular. Aquela condição de um tipo de classe intermediária. Alguém que teve acesso a muitas pessoas. Ou seja, em termos financeiros, eles eram pobres, mas com acesso a todos os tipos. Viagens por toda a região e as coisas com seu avô. Tudo isso é muito interessante. Tudo isso influenciou sua personalidade tão especial.
RAFAEL ULLOA: Sua mãe sempre disse que os romances dele eram cifrados e que ela tinha a chave. Ela lia o livro e dizia: “O homem que ele menciona aqui é o fulano de tal em Aracataca”.
Sua mãe sempre disse que os romances dele eram cifrados e que ela tinha a chave. Ela lia o livro e dizia: ‘O homem que ele menciona aqui é o fulano de tal em Aracataca’
- Solidão e Companhia
- Silvana Paternostro
- Crítica
- 288 páginas
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