Trecho de Livro: Os Invisíveis, de Lucía Puenzo — Gama Revista

Trecho de livro

Os Invisíveis

Romance da cineasta e escritora Lucía Puenzo aborda violências que sofrem crianças nas ruas dos grandes centros urbanos da América Latina

Gabriela Barcelar 10 de Novembro de 2023

Baixinha, Ismael e Alho são, respectivamente, dois adolescentes e uma criança abandonados nas ruas de Once, bairro tradicionalmente dominado pelo comércio popular em Buenos Aires. Juntos, eles protagonizam o romance “Os Invisíveis” (Gryphus, 2023), da escritora, roteirista e cineasta argentina Lucía Puenzo. Coordenados pelo ex-policial Guida em ousadas invasões de residências, a única fonte de subsistência para esses jovens se trata também de um negócio altamente exploratório para o adulto.

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Nas ruas da capital argentina, são muitos os perigos que rondam essas crianças e adolescentes. Além de serem colocados na linha de fogo por aqueles que deveriam protegê-los, precisam lidar com o medo de serem enviados ao Norte para não retornar. Ou então com o desconhecido perigo representado pelo médico que lhes oferece alguns benefícios em troca de passar uma noite com ele. Por essas e outras questões, a obra convida o leitor a pensar: é possível ser criança sem que a infância seja protegida?

“Os Invisíveis” é também o nome de um curta-metragem dirigido por Lucía Puenzo em 2005, que mais tarde ela transfigurou em obra literária. Aproveitando sua participação no Festival do Rio de 2023, em que apresentou os premiados filmes “Los Impactados” e “Tell It like Woman”, a autora lança por aqui também a obra que é seu terceiro livro publicado no Brasil.


Guida já tinha testado vários meninos, mas ninguém chegava aos pés do trio formado pela Baixinha, por Ismael e pelo Alho. Não havia casa em que os três não conseguissem entrar por alguma janela mal fechada. O Alho tinha seis anos mas era o mais hábil dos três, subia pelas paredes cobertas de trepadeiras com uma velocidade de homem-aranha. Era pequenino para a sua idade, embora tivesse o olhar de um homem adulto. No dia em que a Baixinha o apresentou, Guida pediu que levassem o menino dali. Era arriscado trabalhar com gente tão novinha.

– Eu comecei com você com nove.

– Não é igual a seis.

– Ele vai fazer o que eu disser – insistiu a Baixinha.

Guida olhou para o Alho de cima a baixo.

Fazia tempo que Ismael tinha dado uma esticada, e a Baixinha ganhou muitas curvas, as coisas começavam a ficar complicadas. A solução era contar com alguém que passasse por lugares impensáveis.

O Alho devolveu o olhar do segurança, firme como um soldado.

– Eu vou fazer o que ela disser – repetiu ele.

– Vai ter que provar.

– Se ele não servir a gente não traz mais – arrematou Ismael.

Guida concordou. Sabia de cabeça as fragilidades das casas e a rotina dos donos. Era a única coisa que fazia: observá-los. Se tinham cachorro, dava para os garotos uma bolsinha de carne moída na qual misturava calmantes. Se as casas tinham alarme, além da carne moída também dava uma outra bolsinha com cocô de gato. Nesse primeiro dia, o Alho entrou em um casarão inglês que ocupava um quarto de um quarteirão arborizado em Acassuso.

Ninguém chegava aos pés do trio formado pela Baixinha, por Ismael e pelo Alho. Não havia casa em que os três não conseguissem entrar por alguma janela mal fechada

Entrou por um buraco que Guida havia detectado na cerca, uma abertura que devia ser invenção de alguma doninha bem alimentada. Como um contorcionista, passou o braço esquerdo, a cabeça e logo depois o tronco, empurrando o corpo, e não reclamou quando uma pontinha da cerca fez um corte no seu ombro. A Baixinha deixou claro que ele teria uma única oportunidade para impressionar Guida. Uma vez lá dentro, olhou o jardim cheio de árvores e respirou fundo.

As suas mãos suavam e a boca estava seca.

Abriu a bolsinha de carne moída e esperou.

Os pastores apareceram um instante depois: o mais velho fez um som estranho, mistura de rosnado e bocejo; o cachorro balançava o rabo antes de chegar mais perto… Em questão de segundos o Alho tinha os dois comendo na sua mão. Deu um assovio curto, como Ismael tinha orientado. Foi direto para os janelões que davam no jardim. Guida havia feito para ele um esboço precário da planta do primeiro andar. Procurava uma janelinha redonda do lavabo, com uns quarenta centímetros de diâmetro, a única sem grades, que os donos sempre deixavam entreaberta para ventilar. Os cães ficaram o tempo todo atrás dele, lambendo as suas mãos. Depois de alguns minutos, encontrou a janelinha: estava a três metros de altura e mal se podia vê-la por trás da trepadeira.

Deu dois assovios curtos antes de começar a subir.

Empurrou a janela com uma das mãos. Em meio à penumbra viu uns olhos amarelos que o observavam da porta do banheiro. Era um gato obeso e peludo.

Tinha a cabeça torcida para a direita, como se tentasse compreender o que estava acontecendo. Atrás, o Alho viu um corredor de carpete, quase do mesmo tom do pelo do gato.

– Gato veado – sussurrou o Alho – Sai fora.

Em meio à penumbra viu uns olhos amarelos que o observavam da porta do banheiro. Era um gato obeso e peludo

Completou a frase com um som que imitava o gato mais apavorante do bairro dele, desses que deixam os cães aterrorizados. Antes mesmo de terminar, o animal já disparava escada acima. Lá dentro, o Alho tirou o tênis para pisar no carpete. Estava com meias quase coladas na pele, fazia semanas que ele não trocava. Franziu o nariz ao sentir um cheiro rançoso, que na mesma hora reconheceu ser dele próprio. Cinco minutos depois, abria a porta para a irmã com um sorriso triunfante. Fez tudo tão bem que na semana seguinte Guida pediu que o incluíssem no grupo.

– Agora: precisa tomar banho.

– O fedor não vai embora nem se jogar ele na água sanitária.

– Não importa, garota, dá um jeito.

O irmão dela comia dentes de alho como se fosse caramelo. A ideia de que o alho cura tudo tinha se enfiado na cabeça da avó deles. Ela fazia o neto chupar um dente de alho até dormir, enquanto lhe acariciava o cenho. Se ele se concentrasse, ainda conseguia sentir o indicador da sua vó desenhando círculos imaginários na sua testa. Nessa noite a Baixinha proibiu o irmão de voltar a botar um alho sequer na boca.

– É a condição pra você trabalhar.

– Mas…

– O que foi que a gente combinou?

– Ou eu trabalho ou eu volto pra casa.

– Escolhe.

O irmão dela comia dentes de alho como se fosse caramelo. A ideia de que o alho cura tudo tinha se enfiado na cabeça da avó deles

As pupilas do irmão ficaram dilatadas com a ameaça. Era assim que eles chamavam: a casa. Tinham mais medo dela do que do inferno. Entregou um punhado de dentes de alho que tinha escondido na mochila e afundou na abstinência com a determinação de um fundamentalista. Ninguém o tiraria da rua, nem o separaria da sua irmã e de Ismael. Trocou um vício pelo outro: passou essa semana trepando nos vagões e pelas paredes da estação para esquecer aquele gostinho que era a única coisa que o acalmava. Quando voltaram para a Zona Norte, ele surpreendeu todo mundo escalando uma parede de tijolos que tinha uma claraboia a doze metros do chão. Guida viu a façanha da sua guarita, boquiaberto, pensando o que fazer com o corpo depois que o menino quebrasse o pescoço. Mas o Alho escalou com a destreza de um alpinista profissional e mergulhou de cabeça pela claraboia.

Em poucas semanas se transformou em um especialista.

Produto

  • Os Invisíveis
  • Lucía Puenzo
  • Gryphus
  • 160 páginas

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