O Eterno Agora
Da literatura às novas tecnologias, o poeta e letrista Antonio Cicero nos convida a refletir sobre a humanidade e a palavra em livro póstumo
O livro mais recente do poeta, compositor, crítico literário e filósofo brasileiro Antonio Cicero (1945-2024), publicado pouco após sua morte, reafirma o compromisso e o profundo interesse do escritor pela palavra. Os sete ensaios que compõem “O Eterno Agora” (Companhia das Letras, 2024), escritos entre 2005 e 2020, na verdade, cobrem um período de tempo que coincide com a própria existência humana, desde os primeiros registros da palavra escrita até o pós-humano — o debate sempre atual sobre o que significa o homem a partir da evolução das biotecnologias.
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Nas palavras do jornalista e professor Adauto Novaes, a quem o livro é dedicado, há uma diferença crucial entre a obra poética de Cicero e seu ensaios. “Sua poesia guarda um rigoroso espírito de análise; seus ensaios expressam um excitante sentido literário. Poesia e pensamento abstrato — esses dois estados do espírito — viajam juntos, sempre em diálogo entre uma forma de criação e outra”, escreve na orelha da obra.
Escritos a convite do próprio Novaes, os textos aqui perambulam por temas variados como a literatura, os direitos humanos, a poesia e os desafios da tecnologia. Mas é sempre com a inegável orientação literária citada pelo jornalista que Cicero se aprofunda nesses e em outros assuntos, convidando o leitor a uma reflexão sobre presente, passado e futuro. Uma nova oportunidade de mergulhar no pensamento e na arte de um dos grandes autores do nosso tempo.
“Persistimos em crer”, afirma T.S. Eliot em seu famoso ensaio sobre a tradição e o talento individual, “que um poeta deve estudar tanto quanto não prejudique sua necessária receptividade e necessária preguiça.” Desse modo, um dos poetas mais celebrados e eruditos do século XX reconhece que a receptividade e a preguiça não são, para o poeta, propriedades menos importantes do que a erudição. Com efeito, o romancista e poeta inglês Lawrence Durrell conta ter ouvido de Eliot que “um poeta deve ser deliberadamente preguiçoso. Deve escrever o mínimo”.
Normalmente considera‑se a poesia uma espécie de arte. Goethe — com certa razão até do ponto de vista etimológico — diz que, ao contrário do que se pensa, poeta é gênero, artista é espécie; logo, a poesia é o gênero, e as artes, espécies de poesia. Dito isso, lembro que também o pintor suprematista Malevich escreveu, num texto intitulado “A preguiça: A verdade real da humanidade”, que não há arte sem preguiça.
O senso comum considera a preguiça um vício. Uma pessoa que, apesar de não ser rica, não trabalhe, é tachada de preguiçosa. Bertrand Russell, em seu esplêndido O elogio ao ócio, afirma que foram os ricos, em particular a aristocracia, que incutiram esse preconceito nas demais classes sociais. “A necessidade de manter os pobres contentes”, explica ele, “levou os ricos, durante milhares de anos, a pregar a dignidade do trabalho, enquanto cuidavam de se manter indignos nesse particular.” E Russell, ele próprio de família aristocrática, rememora: “Quando eu era criança, me lembro de ouvir uma velha duquesa dizer: ‘De que servem os feriados para os pobres? O dever deles é trabalhar'”.
Assim também o jornalista e escritor satírico norte‑americano Ambrose Bierce, em seu Dicionário do Diabo, define a preguiça como “suspensão de atividade injustificável em pessoa de baixa extração”. O mesmo aristocratismo leva Nietzsche, em seu Além do bem e do mal, a afirmar que “para as raças laboriosas é um grande fardo suportar o ócio: um golpe de mestre do instinto inglês foi tornar o domingo tão sagrado e tedioso que, sem se dar conta, o cidadão inglês anseia novamente pelos dias de trabalho da semana […]”.
Seja como for, a maior parte dos poetas tendo sido, desde sempre, composta de pessoas que não são materialmente ricas, não é de admirar que o senso comum estranhe sua preguiça. Já na Roma antiga, o poeta Ovídio, por exemplo, conta que seu pai lhe dizia: “Por que insistes numa ocupação inútil? Nem mesmo Homero fez fortuna”. E, no século XIX, Baudelaire confessa a seus Diários íntimos: “Foi pelo lazer que, em parte, cresci. Com grande prejuízo, pois o lazer, sem fortuna, aumenta as dívidas, as humilhações resultantes das dívidas. Mas com grande lucro, relativamente à sensibilidade, à meditação e à faculdade do dandismo e do diletantismo”.
A maior parte dos poetas tendo sido, desde sempre, composta de pessoas que não são materialmente ricas, não é de admirar que o senso comum estranhe sua preguiça
Creio que, mutatis mutandis, aplica‑se aos poetas e à poesia o que Teles, o filósofo grego do século III, da escola cínica, disse dos filósofos e da filosofia, ao ouvir alguém afirmar que “a pobreza atrapalha o filosofar, e a riqueza ajuda”:
Não é verdade. Quantos pensas terem sido impedidos de ter ócio por prosperidade e quantos por carência? Ou não vês que em geral os mais pobres filosofam, os ricos pela própria natureza ficam em falta completa de ócio? […] Como podes pensar que haja tantos impedidos de filosofar pela penúria como pela riqueza? Não vês que pela carência se fortalece a paciência, pela riqueza o oposto? Penso que quando quer que seja possível ao homem conseguir facilmente o que deseja, já não se dispõe ele a procurar a verdade, mas, tendo sua riqueza a ajudar sua baixeza, ele não se furta a nenhum prazer. E além disso não vês que os ricos, fazendo mais coisas, são impedidos de ter lazer, e os pobres, sem ter o que fazer, começam a filosofar?
Observe‑se que, segundo Teles, os ricos, em geral, não têm lazer para filosofar ou para fazer poesia porque, embora não trabalhem, “fazem mais coisas”. É que o lazer dos ricos é, em geral, ocupado por inúmeras atividades, inúmeros e variados programas: ou seja, é um lazer programado. Isso me faz conjecturar que a organização do lazer, que o filósofo Theodor Adorno denuncia como característica do capitalismo tardio, já existia, de algum modo, na Antiguidade. No entanto, Adorno tem razão ao afirmar que “a dicotomia tradicional de trabalho e lazer tende a se tornar cada vez mais reduzida, e as ‘atividades de lazer’ socialmente controladas tomam cada vez mais do tempo livre do indivíduo”. E hoje isso não acontece apenas com os ricos. Lembro que o lazer programado inclui não apenas a já mencionada hiperatividade dos ricos, a que já aludia Teles, mas também, por exemplo, a hiperpassividade do telespectador compulsivo.
O fato é que, paradoxalmente, a revolução cibernética diminuiu ainda mais o tempo livre. Com a internet, os computadores, os celulares, os tablets etc., nossa época dispõe de uma tecnologia que, além de ter o sentido manifesto de acelerar tanto a comunicação entre as pessoas como os processos de aquisição, processamento e produção de informação, permite a automatização de grande parte das tarefas produtivas e administrativas. Seria, portanto, de esperar que, podendo fazer mais rapidamente o que fazíamos outrora, tivéssemos hoje à nossa disposição mais tempo livre. Ora, ocorre exatamente o oposto: quase todo mundo se queixa de não ter mais tempo para nada. Efetivamente, o tempo livre parece ter encolhido muito.
Não temos mais tempo livre porque praticamente todo o nosso tempo está preso. Preso a quê? Ao princípio do trabalho, ou melhor, do desempenho
A verdade é que não temos mais tempo livre porque praticamente todo o nosso tempo está preso. Preso a quê? Ao princípio do trabalho, ou melhor, do desempenho, inclusive nos joguinhos eletrônicos que alguns supõem substituir o que consideram “velharias” como a poesia. Não estamos livres nunca porque nos encontramos numa cadeia utilitária em que o sentido de cada coisa e pessoa que se encontra no mundo, o sentido inclusive de cada um de nós mesmos, é ser instrumental para outras coisas ou pessoas. Nada e ninguém jamais vale por si, mas apenas como meio para outra coisa ou pessoa que, por sua vez, também funciona como meio para ainda outra coisa ou pessoa, e assim ad infinitum. Pode‑se dizer que participamos de uma espécie de linha de montagem em moto‑contínuo e vicioso, na qual se enquadram as próprias atividades de lazer que nos apresentam como diversões.
Isso nos leva a pensar um pouco mais sobre a preguiça que Eliot tem em mente. É que este fala da “necessária preguiça” — necessary laziness — do poeta na mesma sentença em que fala de sua “necessária receptividade“. Para Eliot, portanto, a preguiça receptiva ou a receptividade preguiçosa constituem uma condição necessária da produção poética.
A melhor descrição que conheço desse estado a que se refere Eliot é dada pelo poeta Paul Valéry, que, aliás, era também um autor admirado pelo próprio Eliot. Refiro‑me ao trecho do ensaio intitulado “Le Bilan de l’intelligence”, em que Valéry fala sobre
aquela paz essencial nas profundezas do nosso ser, aquela ausência sem preço durante a qual os elementos mais delicados da vida se renovam e se reconfortam, durante a qual o ser, de algum modo, se lava do passado e do futuro, da consciência presente, das obrigações pendentes e das expectativas à espreita. […] Nenhuma preocupação, nenhum amanhã, nenhuma pressão interior; mas uma espécie de repouso na ausência, uma vacuidade benéfica que devolve ao espírito sua liberdade própria. Ele então se ocupa somente consigo mesmo. Livre de suas obrigações para com o conhecimento prático e desonerado da preocupação com as coisas próximas, ele pode produzir formações puras como cristais.
A preguiça receptiva ou receptividade preguiçosa de que fala Eliot parece‑me corresponder a esse estado, descrito por Valéry, de “vacuidade benéfica que devolve ao espírito sua liberdade própria”, de modo que ele possa se ocupar somente consigo mesmo. É sem dúvida por conhecer tal estado que Sêneca afirmava que o amor pelas letras tornava‑o preguiçoso (pigrum) e negligente para com o corpo.
Devo dizer que isso me remete, de fato, à minha experiência pessoal. Se eu quiser escrever, por exemplo, um artigo, um ensaio, uma carta, basta que me aplique a desenvolver e explicar determinadas ideias. Desde que eu trabalhe e não desanime, o texto ficará pronto, mais cedo ou mais tarde.
A poesia é ciumenta e não aparece a menos que eu ponha à sua disposição todo o meu espírito e mesmo meu corpo
Não é assim com a poesia. A poesia é ciumenta e não aparece a menos que eu ponha à sua disposição todo o meu espírito e mesmo meu corpo, sem garantia alguma de que, ainda assim, eu consiga escrever um poema. É até possível que escreva uma sequência de versos; mas, embora quase todos os poemas sejam compostos de sequências de versos, a recíproca não é verdadeira, de modo que pouquíssimas sequências de versos chegam a constituir poemas de verdade. Não me basta trabalhar para que nasça um poema. Paradoxalmente, é preciso também, para que nasça um poema, o que se toma como o oposto do trabalho: a preguiça receptiva ou a receptividade preguiçosa. É por isso que até mesmo um poeta que normalmente exalta o “trabalho” do poeta (em oposição à inspiração), como João Cabral de Melo Neto, foi capaz de escrever, numa carta ao poeta Manuel Bandeira: “Ando com muita preguiça e lentidão trabalhando num poema sobre o nosso Capibaribe”.
- O Eterno Agora
- Antonio Cicero
- Companhia das Letras
- 200 páginas
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