Kramp - Livro de Maria José Ferrada — Gama Revista

Trecho de livro

Kramp

Romance premiado de Maria José Ferrada narra a história de uma menina que viaja com o pai comerciante pelo Chile dos anos 1980

04 de Setembro de 2020

POR QUE LER?

Conhecida por seus livros infantis — publicados e premiados em diversos países na Europa e na América Latina —, a chilena Maria José Ferrada transita com maestria para a literatura adulta. Seu primeiro romance, “Kramp”, que chega ao Brasil em meados de outubro pela Moinhos, lhe rendeu a proeza inédita da tripla premiação nos concursos literários mais prestigiados do Chile: o prêmio de melhor romance do Círculo de Críticos de Arte, o prêmio de melhores obras do Ministério da Cultura e o Prêmio Municipal de Literatura em Santiago. A publicação faz parte do esforço da editora mineira de trazer para o país títulos inéditos de autores relevantes na cena latino-americana.

Para ler em uma sentada, “Kramp” é ágil e envolvente ao contar a história de M, uma menina de sete anos que viaja por pequenos vilarejos com o pai, vendedor ambulante de produtos de serralheria da marca Kramp. A narrativa acompanha o crescimento (literal e metafórico) de M ao longo dos anos em que divide a estrada e os aprendizados sobre a vida com o pai — até que uma grande ruptura na família expõe a fragilidade das relações e questionamentos sobre um universo que parecia tão bem ordenado.

Pelos olhos da criança e, depois, adolescente, os pregos, serrotes, martelos e olhos mágicos vendidos pelo pai se transformam em metáforas para a construção do mundo e a classificação dos eventos e das relações, tendo como pano de fundo as paisagens do sul do Chile e a ditadura que paira sobre os habitantes do país na década de 1980. Se, no enredo, as peças tendem a se desencaixar, na prosa de Ferrada tudo se orquestra com a simplicidade do olhar infantil sobre uma história complexa.


V

Aos sete anos (era um dia de primavera, sei disso porque minha mente tinge com insistência essa recordação de luz amarela), escutei pela primeira vez a história da alunissagem e sua moral: com os sapatos bem lustrados e o traje adequado, tudo é possível. E, acho que para me prevenir sobre a natureza da vida, D acrescentou que também era necessário ter um pouco de sorte.

Nessa mesma tarde limpei meus sapatos de verniz com uma escovinha, coloquei um vestido verde combinando com meias verdes e decidi que seria a ajudante de D.

Saí para o pátio, acendi um cigarro e aspirei lentamente. Eu o havia roubado do maço de D, que à noite acabava dormindo com o cigarro aceso na frente da tevê.

VI

Eu tinha herdado de D uma capacidade fora do comum para a insistência. Assim, uma semana mais tarde entramos no carro – que agora ostentava em ambas as portas um logotipo dos produtos Kramp – e partimos para um vilarejo vizinho.

Quando chegamos e estacionamos na praça, D me deu algumas instruções:

1. Que eu sorrisse.
2. Que se eu me aborrecesse poderia ir dar uma volta, sem sair do quarteirão.
3. Que eu agradecesse se os funcionários da loja me dessem um chocolate ou o que fosse.

E me prometeu que, se vendêssemos ou recebêssemos a venda do mês anterior, no final da tarde iríamos à cafeteria.

Visitamos três lojas que vendiam produtos Kramp e também chocolates, brinquedos, botões, revistas, colônias e panos de prato. Já nas primeiras viagens pude observar que os objetos, criados para as mais diversas finalidades, estabeleciam nas lojas das cidadezinhas uma espécie de irmandade. Desde esse tempo tenho o costume de procurar nas vitrines objetos sem relação aparente e pensar que, se os encontrar, terei um dia de sorte (um lápis de madeira se ligava a uma maçaneta de metal, porque a maçaneta, algum dia, seria colocada numa porta. Uma porta de madeira. Lápis-madeira, madeira-porta. Sorte).

Naquela tarde, vendemos trezentos serrotes e recebemos duas vendas do mês anterior.

Também me deram uma revista de palavras cruzadas e uma lata de abacaxi em calda pelas quais agradeci.

No fim da tarde, fomos à cafeteria. E assim começamos nossa sociedade.

VII

Dali para a frente, tudo o que aconteceu foi possível porque minha mãe estava ausente. Não porque saísse muito de casa, mas porque uma parte dela havia abandonado seu corpo e resistia a voltar.

Talvez esse fragmento da minha mãe fosse astronauta, e numa dessas viagens ao espaço ela tenha cruzado com D (que desde a alunissagem tinha o costume de olhar para o céu de quando em quando) e decidido que uma parte sua regressaria e ficaria com ele. Ou melhor, conosco.

Mas as aterrissagens não são fáceis e, na dela, minha mãe tinha perdido a metade da visão do olho esquerdo.

Por esse ponto cego começaria a passar o que chamei de minha “dupla vida”.

Uma mãe inteira teria notado.

Isso a tornava irresponsável?

Acho que não; acho que, antes, a vida é que tinha sido um pouco irresponsável com ela.

VIII

Comecei a achar que as viagens, que em geral duravam um dia inteiro, eram uma disciplina prática que funcionava como extensão do colégio.

O acordo ao qual D e minha mãe haviam chegado consistia em que eu podia trabalhar de ajudante só depois das aulas e durante as férias. E que, não importava o dia que fosse, tínhamos de estar de volta às nove da noite.

Mas para D os tratos nunca valeram nada – tampouco para a minha mãe –, portanto na maioria das vezes passávamos em frente à porta do colégio e continuávamos rumo à estrada.

De tanto escutar falar sobre os produtos Kramp, comecei a utilizá-los para entender o funcionamento do mundo, e assim, enquanto meus companheiros faziam poemas às árvores e ao sol de verão, eu homenageava olhos mágicos, alicates e serrotes.

Também inventava mecanismos como “A Máquina de Somar”, que funcionava com base num retângulo de madeira compensada, pregos e porcas (era como um ábaco normal, mas eu o chamava assim: “A Máquina de Somar”).

Recordo-me de que fui acampar, saímos para olhar as estrelas e, utilizando o Cruzeiro do Sul como referência, expliquei aos meus companheiros que o que brilhava lá longe não eram estrelas, e sim tachinhas de três polegadas com as quais O Grande Carpinteiro havia pendurado tudo no céu. Inclusive a gente.

O que quero dizer é que cada pessoa tenta explicar o mecanismo das coisas com o que tem em mãos. Eu, aos sete anos, tinha estendido a minha e topado com o catálogo da Kramp.

IX

As lojas de ferragens

Toda construção era uma soma de partes, partes unidas por conectores.

D tinha me explicado da seguinte maneira: um edifício, inclusive o maior edifício do mundo, se sustentava numa estrutura unida com parafusos. O que equivalia a dizer que:

1. O grande e o pequeno se complementam.
2. Um único parafuso pode precipitar o fim do mundo, caso esteja mal colocado. Esse edifício, que agora cai vertiginosamente, derrubará outro e este, por um terrível efeito dominó, abaterá o edifício vizinho. Assim até terminar com a cidade, os países e a civilização.

O funcionamento dos ecossistemas, a lei de causa e efeito, a relatividade, “tudo pode ser entendido quando se olha para as gavetas de uma loja de ferragens”, dissera D. “E também para as serras e os martelos que ficam pendurados na parede”, acrescentara.

Todo o resto

Como o velho vendedor tinha falado, a cafeteria e o bar (este último lugar eu não visitava) eram o centro do universo em torno do qual girava o planeta das vendas. Ninguém se punha de acordo prévio para ir a essas reuniões. Só se sabia que em certa hora do dia ali estariam todos, odiando sua sorte maldita.

As cafeterias eram um sol particular e, se alguém tivesse olhado por baixo da mesa, teria visto muitos sapatos pretos exageradamente engraxados, maletas e um par de sapatos brancos que pendiam da cadeira: os meus.

Eu gostava de aspirar a fumaça dos seus cigarros. Ver os vendedores pedirem um café atrás do outro.

Escutar suas mentiras, uma atrás da outra.

A história de C

C tinha matado uma mulher de enfarto ao lhe enviar um lote de um milhão de agulhas. Naquele povoado só viviam mil pessoas; portanto, ao ver o caminhão estacionar diante da sua loja e começar a descarregar a mercadoria, a mulher simplesmente deixou de respirar.

Acontece que os pedidos nunca eram exatos. Eles se multiplicavam. Se alguém encomendava uma dúzia de algo qualquer, era provável que desse algo qualquer chegasse um pouco mais. A vantagem da inexatidão (e evitar assinar qualquer tipo de documento, neste caso, o pedido) era uma das primeiras leis das vendas e da vida.

A história das agulhas tinha acontecido fazia muito tempo, mas eles a repetiam até a exaustão.

A primeira vez que a escutei senti pena da mulher morta, mas dentro de pouco tempo deixei escapar um sorriso e depois uma gargalhada, à qual acrescentei um aplauso, que se uniu à fumaça e às gargalhadas dos demais.

A história de F

A história de F era uma história simples. Ele tinha chegado a uma cidadezinha e tomado um barril de rum.

F subiu ao trem, tirou um cochilo e, quando acordou, estava na mesma cidadezinha da qual havia partido. A hora era a mesma, mas o calendário marcava o dia seguinte. Além de um dia de vida, F perdera a pasta e a maleta.

Toda vez que contavam a história lhe perguntavam se tinha pagado ou não a passagem de volta. E voltavam a lançar suas ruidosas gargalhadas.

Eu gostava de imaginar essa viagem em círculo: um trem com F dentro, viajando infinitamente ao redor de um planeta em forma de barril.

A história de S

Uma tarde, S tinha saído de um povoado maldito (sempre dizia assim: povoado maldito) e espatifado seu Citroën contra a ponte. Como era de se esperar, o parapeito cedeu e S caiu no rio. O golpe foi tão forte que o Citroën se partiu em mil pedaços e S ficou inconsciente, flutuando à deriva, em cima de uma das portas.

Passaram as horas, ou talvez os dias, e S encalhou nas margens de outro povoado “que além de maldito era muito pobre”. Os moradores levaram S, que continuava inconsciente e durante o naufrágio tinha perdido a roupa, até uma casa onde tentaram reanimá-lo. Como não tiveram sorte, vestiram-no com a roupa de um espantalho e o levaram até o único hospital do vilarejo, no qual, semanas mais tarde, ele recuperou a consciência.

Quando chegou à sua casa, com dez quilos a menos e vestido de espantalho, seu cachorro não o reconheceu e sua terceira mulher tinha ido embora com um farmacêutico. “Porque um naufrágio sempre é seguido pelo naufrágio seguinte”, rematava S, que era meu favorito.

A história variava cada vez que S a contava. A porta que o salvara da morte era às vezes uma roda ou um tronco que por acaso passava pelo rio. A roupa de espantalho podia ser uma cortina, a roupa de um morto ou uma colcha.

Produto

  • Kramp
  • Maria José Ferrada
  • Moinhos
  • 88 páginas

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