Ao Paraíso — Gama Revista

Trecho de livro

Ao Paraíso

Novo livro de Hanya Yanagihara, autora do best-seller ‘Uma Vida Pequena’, traz pandemias, amores, heranças, tragédias e vai fundo nas emoções de seus personagens

Luara Calvi Anic 09 de Setembro de 2022

A maestria para amarrar diferentes histórias e prender o leitor sem poupá-lo de temas pertubadores já é característica conhecida de Hanya Yanagihara, 41, autora do best-seller “Uma Vida Pequena” (Record, 2015) e finalista do Man Booker Prize. A americana é também editora-chefe da T Magazine, revista de cultura e lifestyle do New York Times.

Em seu novo livro, “Ao Paraíso”, ela relaciona diferentes personagens, que vão reaparecendo ao longo da trama, com períodos históricos distintos. A autora passa por 1893, 1993 e 2093 trazendo amores, amizades, pandemias, relações familiares, questões de raça, mortes e heranças, numa verdadeira reescrita da história americana com pontos de esperança, como resumiu a escritora Gish Jen em artigo do New York Times.

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O lançamento de 712 páginas começa em uma versão alternativa dos Estados Unidos de 1893, em que o casamento gay é totalmente aceito. Um dos personagens, por exemplo, é um jovem herdeiro que não quer se casar com o pretendente escolhido por seu avô pois está apaixonado por um professor de música. Ainda que esse passado pareça melhor, o futuro distópico criado por Yanagihara, de 2093, segue sua habilidosa capacidade de criar cenários trágicos, como no seu livro anterior.

Seja em 1893, 1993 ou 2093, “Ao Paraíso” é um romance que vai fundo nas emoções e nas relações dos personagens.


Ele havia imaginado que não conseguiria dormir e, de fato, permaneceu acordado pelo que pareceram muitas horas, ciente de que estava sonhando e que ao mesmo tempo continuava consciente, que sob seu corpo sentia os lençóis de algodão engomados, e que a posição em que estava, com a perna es-querda dobrada num triângulo, o deixaria dolorido no dia seguinte. Mas aparentemente ele tinha dormido, no fim das contas, pois quando voltou a abrir os olhos havia finas tiras de luz branca onde as cortinas não chegavam a se encontrar, além dos sons dos cascos dos cavalos pelas ruas e, do lado de fora da porta, das empregadas que andavam de um lado para o outro com baldes e
vassouras.

As segundas-feiras eram sempre terríveis para ele. Despertava ainda mergulhado no horror da noite anterior, e geralmente tentava se levantar cedo, antes mesmo do avô, para que também pudesse sentir que se juntava ao fluxo de atividades que impulsionava a vida da maioria das pessoas, que ele, as-
sim como John, Peter ou Eden, também tinha tarefas a cumprir, ou, como Eliza, lugares aos quais comparecer, em vez de um dia tão indefinido como todos os outros, um dia que ele deveria se empenhar para preencher sozinho.

Nessa manhã, porém, ele gostou de ter acordado tarde, porque ainda não sabia como interpretar os acontecimentos da noite anterior

Não que ele não tivesse nada: na teoria era diretor da fundação filantrópica da empresa, sendo encarregado de aprovar as doações feitas aos vários indivíduos e causas que, quando vistos em conjunto, compunham uma espécie de histórico familiar — os membros da resistência que encabeçavam a luta no sul e as instituições de caridade que trabalhavam para dar moradia e reintegrar os fugitivos, o grupo que se dedicava a oferecer educação aos Negros, a organização que conscientizava a sociedade sobre as crianças abandonadas e negligenciadas, aqueles que educavam as turbas de imigrantes pobres e desesperados que chegavam todos os dias à costa do país, os povos por quem um ou outro membro da família havia se comovido ao longo de sua vida e que agora ajudava de alguma maneira —, mas essa responsabilidade se limitava à aprovação dos pagamentos e à contabilidade mensal de valores e despesas que já haviam sido enviados aos contadores e advogados da empresa por sua secretária, uma jovem muito eficiente chamada Alma, que, na prática, administrava sozinha a fundação; ele só estava ali porque tinha o sobrenome Bingham.

Também fazia trabalho voluntário, explorando as várias habilidades que uma pessoa como ele, ainda quase jovem e com boa formação, poderia ter: montava pacotes de gaze, curativos e compressas com ervas medicinais para os combatentes das Colônias; tricotava meias para os pobres; uma vez por se-
mana, ministrava uma aula de desenho na escola para crianças abandonadas mantida por sua família. Mas, combinadas, todas essas tentativas e atividades ocupavam não mais do que as horas equivalentes a uma semana de cada mês, e ele passava o resto do tempo sozinho e sem rumo. Às vezes sentia que sua vida era algo que estava guardando para consumir depois, de forma que, ao final de cada dia, ele se deitava na cama com um suspiro, sabendo que havia lidado com outra pequena parte de sua existência e se aproximado mais um centímetro de seu desfecho natural.

Nessa manhã, porém, ele gostou de ter acordado tarde, porque ainda não sabia como interpretar os acontecimentos da noite anterior, e se sentiu grato por poder contemplá-los com a mente descansada. Mandou trazerem ovos, torradas e chá e comeu e bebeu na cama, lendo o jornal do dia — mais expurgos nas Colônias, mas a notícia não oferecia detalhes; um ensaio grandiloquente de um filantropo excêntrico, conhecido por suas opiniões por vezes radicais, que novamente propunha que se estendessem os privilégios de cidadania aos Negros que tivessem vivido nos Estados Livres antes de sua fundação; um longo artigo, o nono em nove meses, em comemoração ao décimo aniversário da conclusão das obras da Brooklyn Bridge afirmando que a ponte havia reorganizado o tráfego comercial da cidade, dessa vez com ilustrações grandes e minuciosas de suas imensas torres avultando sobre o rio —, e depois se lavou, se vestiu e saiu, avisando Adams que almoçaria no clube.

Seu avô mostrara tamanho domínio da nova situação em que ele e os irmãos se encontravam que havia ocorrido o que só depois, em lembranças, ele identificou como uma interrupção quase imediata do luto

O dia estava frio e ensolarado e, como a manhã já estava quase no fim, emanava uma energia alegre e vivaz: era cedo o bastante para que todos ainda estivessem animados e esperançosos — esse poderia ser o dia em que a vida daria uma encantadora e muito esperada guinada, em que haveria um golpe de sorte, ou os conflitos do Sul chegariam ao fim, ou simplesmente haveria duas fatias de bacon no jantar, em vez de uma —, mas não tarde o suficiente para que essas esperanças mais uma vez acabassem frustradas. Quando andava, costumava fazê-lo sem ter um destino específico em mente, deixando os pés decidirem o caminho, e nesse momento virou à direita na Quinta Avenida, acenando com a cabeça para o cocheiro que estava amarrando o cavalo marrom na frente da estrebaria.

A casa: agora que não estava mais em seu interior, esperava ser capaz de pensar nela de forma um pouco mais objetiva, mas o que isso significava, afinal? Ele e os irmãos não haviam passado a primeira metade da infância lá — essa honra coubera a uma grande e friorenta mansão bem ao norte, a oeste da
Park Avenue —, mas fora para lá que os três, e, antes deles, seus pais, haviam ido para todos os eventos familiares importantes, e quando os pais morreram, abatidos pela doença, fora para aquela casa que os irmãos se mudaram.

Eles precisaram abandonar na casa de sua infância todos os objetos que fossem feitos de tecido ou de papel, qualquer coisa que pudesse servir de esconderijo para uma pulga, qualquer coisa que pudesse ser queimada; ele se lembrava de ter chorado a perda de uma boneca que adorava, cujos cabelos eram feitos de crina de cavalo, e de o avô ter lhe prometido outra igual, e quando os três entraram em seus respectivos quartos em Washington Square, viram suas vidas antigas recriadas de maneira caprichosa e detalhada — suas bonecas, brinquedos, cobertores e livros, seus tapetes, pijamas, casacos e almofadas. Na parte inferior do emblema do Bingham Brothers havia as palavras “servatur
promissum” — “uma promessa mantida” —, e naquele momento os irmãos tiveram a oportunidade de descobrir que aquelas palavras também se referiam a eles, que seu avô honraria tudo o que lhes dissesse, e nas mais de duas décadas que haviam passado sob sua responsabilidade desde então, primeiro como crianças, depois como adultos, essa promessa nunca fora traída.

Seu avô mostrara tamanho domínio da nova situação em que ele e os irmãos se encontravam que havia ocorrido o que só depois, em lembranças, ele identificou como uma interrupção quase imediata do luto. Era improvável que fosse esse o caso, é claro, tanto para ele e os irmãos quanto para o avô, pri-
vado de seu filho único de forma repentina, mas David tinha ficado tão maravilhado pelo que hoje entendia ser a confiança, a plenitude de seu avô e do reino que ele criara para os netos que desde então não conseguia imaginar aqueles anos de nenhuma outra forma.

Mesmo depois, quando se tornara incapaz de sair da casa, do quarto, quando sua vida se limitara à sua cama, ele nunca deixou de pensar na casa como nada menos que um santuário

Era como se, desde o nascimento dos três, seu avô tivesse planejado um dia se tornar seu guardião, recebendo-os numa casa onde um dia vivera sozinho, ditando seu único ritmo, e não sido surpreendido por essa responsabilidade. Mais tarde, David teria a sensação de que a casa, já muito espaçosa, havia se dividido para criar novos cômodos, que novas alas e espaços tinham se materializado num passe de mágica para acomodá-los, que o quarto que ele passou a chamar de seu (e ainda chamava) fora sido conjurado por necessidade, e não apenas reconstruído para ser o que era e deixar de ser o que havia sido antes, uma outra sala de estar que quase não se usava. Ao longo dos anos, o avô passou a dizer que os netos davam um propósito à casa, que sem eles o lugar seria apenas um amontoado de cômodos, e uma das provas de que ele tinha razão era que os três, até David, aceitavam isso como verdade, e passaram a acreditar verdadeiramente que haviam oferecido à casa — e, por consequência, à própria vida do avô — algo extraordinário e fundamental.

Ele imaginava que cada um deles julgava que a casa fosse só sua, mas sempre gostou de pensar que era seu cantinho especial, um lugar onde ele não só morava como era compreendido. Agora, na vida adulta, às vezes a via como as pessoas de fora a viam, seus ambientes que consistiam em coleções organizadas mas excêntricas de objetos que o avô reunira em suas viagens pela Inglaterra e pelo Continente e até pelas Colônias, onde tinha passado algum tempo num breve período pacífico, mas, acima de tudo, o que mais se destacava era a impressão que ele formara na infância, quando podia passar horas indo de um andar a outro, abrindo gavetas e armários, espiando debaixo das camas e dos sofás, os assoalhos de madeira frios e lisos sob seus pés descalços.

Ele se lembrava em detalhes de, certa manhã, quando ainda era um menininho, ficar na cama até mais tarde, observando um feixe de luz do sol que atravessava a janela, e entender que aquele era seu lugar no mundo, e da sensação de conforto que essa certeza lhe trouxera. Mesmo depois, quando se tornara incapaz de sair da casa, do quarto, quando sua vida se limitara à sua cama, ele nunca deixou de pensar na casa como nada menos que um santuário — com paredes que não só afastavam os horrores do mundo como sustentavam sua própria identidade. E agora ela seria dele, e ele, dela, e pela primeira vez a casa lhe pareceu opressiva, um lugar de que ele agora talvez nunca conseguisse escapar, um lugar que o possuía tanto quanto ele era capaz de possuí-lo.

Produto

  • Ao Paraíso
  • Hanya Yanagihara
  • Companhia das Letras
  • 712 páginas

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