A Palavra que Resta — Gama Revista

Trecho de livro

A Palavra que Resta

Romance de estreia do escritor cearense Stênio Gardel sobre amor proibido é um dos cinco semifinalistas do National Book Awards na categoria tradução

Tereza Novaes 23 de Outubro de 2023

Depois dos 70 anos, Raimundo aprende a ler para descobrir o que Cícero, um amor da juventude, deixou escrito em uma carta. Os dois mantiveram um romance proibido e, quando as famílias descobriram a relação, Cícero partiu, deixando apenas a tal carta. Misturando presente e passado, o livro tem linguagem poética, marcada pelo vocabulário regional e pelo fluxo de consciência.

Semifinalista de um dos mais importantes prêmios literários dos Estados Unidos, na categoria tradução, “A Palavra que Resta” (Companhia das Letras 2021) foi lançado pela Companhia das Letras em 2021 e vertido para o inglês por Bruna Dantas Lobato. Os ganhadores do National Book Awards serão anunciados em 15 de novembro.

A obra também concorreu ao Prêmio Jabuti e deve virar filme. O autor, Stênio Gardel, é um dos convidados da Flica, a Festa Literária de Cachoeira, na Bahia, que começa na quinta-feira, dia 26.


Raimundo

Raimundo Gaudêncio de Freitas, traço incerto, arredio ao toque do papel. Lápis danado, domado, e ele escrevia o nome completo pela primeira vez. Setenta e um anos e essa invenção, como ele diz, de aprender a ler e escrever depois de velho. Raimundo não foi difícil. Complicado era Gaudêncio, denso de saudade, as cinco vogais e acentuado. Freitas era feito de sangue.

A vontade, tinha sim, desde menino, mas o pai lhe dizia que a letra era para menino que não precisava encher o próprio prato. Raimundo foi cedo para a lida. De noite, o braço ritmado no golpe da foice pedia descanso, que no outro dia tinha mais. O intento de aprender se rendeu à precisão. O futuro estava escrito na frente dele, era o presente do pai, pai de família, dono de um pedaço de chão, assinando com o dedo quando a palavra falada não bastasse. O que não podia ser falado, ficasse palavra muda, pensamento. Raimundo não virou pai de família nem dono de sítio. Se arrancou as raízes, levando no bolso da camisa a carta.

Uma carta inteira. Uma palavra seguindo a outra, quantas palavras? Mandar carta para uma pessoa que não sabia ler, só sendo. A ponta do lápis pairou acima da linha. O próximo nome tinha escrito a carta cinquenta e dois anos antes. Ao lado do caderno, o envelope encruado, sempre fechado. Raimundo não deixou ninguém ler e envelheceu com o desejo de saber o que ela diz crescendo dentro dele. Feto idoso, rebento tardio. A carta guardava uma vida inteira.

Cícero

Escreveu ao lado do nome, o nome dele. O final era com “u”? Com “o” ficava mais bonito. Seis letras só, mas cabia tanta coisa que era pesado. Feito a cruz, começava com “c” também, como coração e cu.

Se conheciam desde meninos, nascidos na mesma comunidade. Foi aos dezessete, num forró na quadra do grupo, que os olhos cor de terra de Cícero lavraram Raimundo.

— Festa boa, né, Gaudêncio? Muita moça bonita.

— É.

Raimundo achou Cícero bonito, de uma boniteza parecida com a que via nas moças. Coração inquieto, sangue enxerido no pé da barriga. Caule plantado.

Deitado na rede, imagens buliçosas na cabeça reviravam o corpo. Corpo de homem, o dele e o de Cícero. Homem com mulher, homem com homem não prestava, as pessoas falavam disso, homem tinha que achar era mulher bonita, homem que achava homem bonito não era homem, mas era homem e achava Cícero bonito! E será que Cícero achava Raimundo bonito também? Veio foi falar das moças e dançar com elas. Os cabelos perfumados no óleo de coco, os seios macios, as pernas roliças. Cícero segurava com vontade as moças bonitas escanchadas na perna dele, roçando.

Trabalhavam os dois sozinhos, roçando as terras do pai de Cícero, dias depois. Uma chuva fina e ligeira excitou o chão. A vista de Raimundo escapulia até o corpo do outro, de peito duro descamisado, coberto de suor e poeira. Paisagem que desperta num pássaro preso o desejo de voar. Raimundo gaiola. Se Cícero percebia, Raimundo acoitava o olhar, mas o brilho da foice lhe cortava logo a paciência, e ele de novo se afoitava a encarar o amigo, contando que a cabeça decidisse se iria querer o que o corpo queria.

— Que foi, Gaudêncio?

Eita, e agora? vai brigar comigo, espalhar pro povo todo, Raimundo baitola, Que história é essa de ficar me encarando? que que tu foi fazer, Raimundo? ele é meu amigo, vai dizer nada não, não era nada de todo jeito, Nada não.

Quis responder, não respondeu, mas respondeu. Cícero se aproximou devagar, chegou bem perto, assim, o rosto a um palmo do rosto de Raimundo, com uma mão agarrou a nuca dele, pelo lado esquerdo, perto da mecha de cabelo branco, com a outra apertou sua cintura. Raimundo não se mexeu. Se fincou nos olhos castanhos, tateando o calor que rastilhava o corpo e dilatava as veias, sem saber onde pôr a cabeça, as mãos, os pés, o membro que crescia entre as coxas. Terra saliva línguas braços pernas bocas fome vida.

Se encontravam quase todo dia. O risco era grande.

Tudo na moita. Na moita mesmo se escondiam dos outros e se mostravam um para o outro. Homem e homem, e se entendiam muito bem, se gostavam. Gosto bom mas que deixava um ranço arranhando as ideias.

Dois anos durou.

— Que porra é essa?

O pai de Cícero pegou o filho de quatro, fechou os cinco dedos da mão direita e o derrubou no chão com um soco.

Seu Nonato, ele é teu filho, a gente é amigo, cresci indo na sua casa e o Cícero vindo na minha, de um tempo pra cá a gente começou a se gostar, a gente não está fazendo mal, não, seu Nonato, precisava bater desse jeito nele não, faça mais isso não, ele é teu filho, levanta, Cícero, se levanta, Raimundo acabou não dizendo nada, enquanto Cícero limpava o sangue do lábio com o dorso da mão.

Seu Nonato puxou o filho pelo braço.

— Levanta, Cícero, se levanta, veste a roupa e anda pra casa.

Raimundo fez que ia acudir. Parou. Seu Nonato se invocou e mostrou para ele a cara virada no cão.

— E você, seu rapaz? Deixa eu falar pra teu pai, que teu couro vai arder.

Produto

  • A Palavra que Resta
  • Stênio Gardel
  • Companhia das Letras
  • 160 páginas

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Este conteúdo é parte da série “Gama na Flica 2023”, produzida com apoio do Governo do Estado da Bahia e das secretarias de Educação e Cultura, realizadores da Feira Literária Internacional de Cachoeira (BA)

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