Por que adaptações cinematográficas de videogame não funcionam?
Com a estreia do novo ‘Mortal Kombat’, a discussão sobre a qualidade das versões cinematográficas de games volta à tona. Gama busca entender onde elas estão pecando
Em 1995, o filme “Mortal Kombat” era lançado nos cinemas ao redor do mundo. Dirigido por Paul W.S. Anderson — não confundir com Paul Thomas Anderson –, o longa acompanhava a história de Liu Kang, Johnny Cage e Sonya Blade em um torneio de artes marciais para salvar o mundo. Inspirado no jogo de mesmo nome, o filme foi a primeira adaptação cinematográfica de videogames a fazer um sucesso considerável de bilheteria. Apesar de não ser um sucesso de crítica, ganhou um status de clássico cult e foi celebrado pelos fãs de jogos por ser um dos poucos exemplos de adaptações que respeitaram o material base. Mais de 25 anos depois, a franquia de jogos Mortal Kombat volta com “Mortal Kombat” (2021), um reboot produzido pelo cineasta James Wan — responsável por “Invocação do Mal” (2013) e “Aquaman” (2018) — que estreia nos cinemas dia 16 de abril.
Se o filme da década de 1990 ficou marcado por seu roteiro de qualidade duvidosa e uma atuação mais para lá do que para cá, o reboot tenta imprimir um tom mais sério e aposta em um clima mais adulto, longe das cores extravagantes e do visual brega do original. A tendência, entretanto, não é única do novo Mortal Kombat e segue um padrão recente de adaptações cinematográficas de videogame.
Os dias de “Super Mario Bros.” (1993) e “Street Fighter” (1994) ficaram para trás, os visuais cômicos e os orçamentos pequenos deram lugar a superproduções hollywoodianas que buscam transportar o mundo interativo dos videogames para o cinema. “Need for Speed” (2014), “Hitman: Agent 47” (2015), “Assassin’s Creed” (2016), “Warcraft” (2016), “Rampage” (2018) e “Tomb Raider” (2018) bem que tentaram, mas apesar de atores ganhadores de Oscar, orçamentos multimilionários, efeitos especiais de ponta e grande expectativa dos fãs, todos acabaram do mesmo jeito, uma grandiosa decepção em se tratando de bilheteria e recepção de crítica e público.
A sina das adaptações de videogame parece ser real e é um tema de debate comum entre fãs de jogos. Afinal, por que as adaptações cinematográficas de videogame não funcionam? Gama conversou com dois especialistas para tentar entender o que impede essas adaptações de passarem de nível.
Por que não dá certo?
“Se pegarmos todas as adaptações e olharmos o desempenho de bilheteria ou a recepção da crítica e dos fãs, a unanimidade é inexistente. Você dificilmente vai ver essas adaptações pendendo para um lado positivo, seja em questão de negócio ou de crítica”, afirma Thiago Romariz, ex-diretor de conteúdo do site Omelete, colunista de cultura pop do Yahoo e fundador do aplicativo Chippu.
Para ele, existem dois motivos pelos quais as adaptações não atingem o sucesso desejado: a transposição literal e a falta de cancha dos diretores, que não entendem os games como uma linguagem narrativa. “Ao tentar adaptar de maneira muito literal, você acaba perdendo toda a essência do jogo. Foi o que aconteceu com o filme do Mario na década de 90.” Para Romariz, um bom exemplo do que deve ser feito é o filme do Sonic, lançado em 2020. Não chega a ser uma peróla do cinema, afirma o jornalista, mas é uma adaptação completa. “É uma narrativa bem diferente do game, mas traz uma fidelidade ao material aliada a referências e narrativas próprias do cinema.”
Se pegarmos todas as adaptações e olharmos o desempenho de bilheteria ou a recepção da crítica e dos fãs, a unanimidade é inexistente
Já Mário Abbade, crítico de cinema e colunista na TV Bandeirantes e na rádio BandNews Rio FM, acredita que é um exagero dizer que nenhuma adaptação de jogo funcionou. Enquanto crítico, ele prefere não levar em conta o histórico de sucesso ou fracasso das adaptações e acredita que cada filme deve ser analisado por seu próprio mérito. “As linguagens podem ser diferentes, mas isso não impossibilita uma boa adaptação. O gosto é subjetivo, o que é ruim para uns pode ser excelente para outros.” Abbade, entretanto, entende que boas adaptações tendem a ter um elemento em comum — um bom autor.
Como exemplo, ele cita “O Iluminado” (1980) de Stanley Kubrick. “O Iluminado é um best seller do Stephen King, mas Kubrick pegou a história e transformou em algo completamente diferente do livro e em um ótimo filme.” As opiniões sobre a versão de Kubrick são variadas, existem aqueles que amam o livro e odeiam o filme e aqueles que odeiam o livro e amam o filme, mas independentemente disso, o crítico enxerga de forma positiva a abordagem autoral na adaptação. “Não é porque você jogou o videogame daquela forma que o filme tem de ser feito igual. O Iluminado é a obra de um cineasta, não uma simples transposição do livro do King “, afirma.
Para Romariz, a entrada de uma nova geração de cineastas possibilita uma melhora substancial nas adaptações de videogames. “Durante muito tempo, os responsáveis por essas adaptações e realizações não fizeram parte da geração que cresceu com o videogame. Hoje, a geração de diretores, roteiristas e atores que trabalham em Hollywood cresceram com os games e sabem como transpor essa linguagem para o cinema.” Para o jornalista, entretanto, ainda estamos longe de ver adaptações de games fazendo o mesmo sucesso que as adaptações de quadrinhos fazem nos dias de hoje. Romariz entende que o sucesso da Marvel em 2008 se deve ao fato de que os produtores da Casa das Ideias perceberam que as adaptações cinematográficas precisavam falar com o público do cinema, não somente com o público dos quadrinhos. “Os fãs precisam ser respeitados, mas não há necessidade de fazer uma adaptação direta dos jogos. ” Abbade concorda e afirma que as adaptações não podem ser feitas apenas para os fãs de jogos, mas sim direcionadas a um público mais amplo que consome cinema.”
Durante muito tempo, os responsáveis por essas adaptações e realizações não fizeram parte da geração que cresceu com o videogame
“Enquanto o único foco for agradar somente o público que joga, esquece. Tem de haver uma mescla entre as duas coisas”, fala Romariz. Entender que as histórias que começam nos videogames não precisam continuar ou serem transpostas para o cinema de maneira 100% fidedigna é o segredo para uma boa adaptação. “O público do cinema é naturalmente mais amplo do que o do videogame, você precisa fazer histórias universais, que não dependam tanto da interatividade dos games”, diz Romariz. Relembrando os filmes de heróis, o jornalista diz que as adaptações de quadrinhos também sofriam de um mal parecido — os grandes sucessos eram raros: Superman na década de 70, Batman na década de 80, Homem-Aranha e X-Men no começo dos anos 2000 e, por fim, o Universo Cinematográfico da Marvel em 2008. “Até a Marvel chegar com o MCU, as adaptações boas eram exceções. Enquanto três ou quatro adaptações de jogos não fizerem grande sucesso, não teremos uma era consistente de filmes baseados em games.”
Passando de nível
“No fim das contas, as adaptações de games estão vindo em um momento onde a indústria de jogos ainda está amadurecendo. São apenas 40 anos de indústria de verdade e 20 anos de indústria massiva. Hoje, vemos jogos que tem profundidade narrativa, mas na década de 90 tínhamos pouquíssimos exemplos disso. O amadurecimento das narrativas vai acabar trazendo adaptações melhores”, afirma Romariz.
Ainda hoje, o jornalista não enxerga muitos jogos que oferecem grandes possibilidades narrativas para o cinema. Usando o filme da década de 90 de Mortal Kombat como exemplo, Romariz afirma que Paul W. S. Anderson. conseguiu adaptar migalhas de mitologia apresentadas no jogo e criou um filme estiloso com personagens carismáticos, mas tão profundo quanto um pires. “Vamos começar a ver filmes um pouco mais complexos e profundos quando jogos focados em narrativas ficarem em maior evidência.” Como exemplo ele cita “The Last Of Us” (2013), jogo que será adaptado para uma série da HBO. “The Last Of Us parece muito mais um filme do que um jogo, o clima é bem cinematográfico. Ali você consegue explorar mais camadas narrativas e, consequentemente, fazer um filme mais profundo.”
Além de “The Last Of Us”, que conta com Pedro Pascal no elenco, o jogo “Uncharted” também ganhará uma versão cinematográfica protagonizada por Tom Holland. Apesar das inúmeras falhas, Hollywood ainda não desistiu dos videogames, algo que não surpreende Romariz. “A indústria do cinema sempre procura adaptar de outras mídias que atraem muitas pessoas. Foi assim com as tirinhas, com a literatura pulp, com a literatura fantástica juvenil e com os quadrinhos. Hoje o videogame é a grande mídia do momento, é natural que os olhos se voltem para lá.”
Abbade acredita que as adaptações de jogos continuarão a acontecer, assim como livros, quadrinhos e peças de teatro continuam a ser adaptados para o cinema. “Haverá boas adaptações e adaptações de má qualidade. O que difere uma da outra é o cineasta que está por trás”, finaliza.
Romariz, no entanto, acredita que o futuro das adaptações de videogame não está nos cinemas, mas sim no streaming. “O cinema está tendo que se reinventar como negócio, é um momento interessante da indústria de entretenimento. Hoje, o streaming e a televisão talvez sejam o lugar mais adequado para esse tipo de adaptação. A indústria audiovisual mudou.”
Link, o protagonista da série “The Legend Of Zelda” — uma das mais tradicionais franquias de videogame da história — não fala. A escolha é uma opção deliberada dos produtores dos jogos, que entendem que o personagem é o avatar do jogador no mundo virtual e que tem de ser o mais plano e simples possível para não contradizer nenhuma vontade do jogador. Afinal, a imersão tende a se quebrar se quem está controlando Link se irrita com o jogo mas escuta o personagem falando de maneira mansa. O conceito, popular no mundo dos videogames, tem até nome: “Silent Protagonist” ou “Protagonista Silencioso”.
Popular durante a década de 80 e 90, com o passar do tempo esse clichê passou a ser abandonado por grande parte dos jogos. A evolução da capacidade tecnológica dos videogames permitiu a maior e melhor utilização da dublagem de voz de personagens, mas esse não foi o único motivo pelo qual o protagonista silencioso foi deixado de lado. Com o passar do tempo, a complexidade das histórias dentro dos jogos passou a ganhar mais atenção e as vozes se tornaram essenciais para transmitir as emoções desejadas. Em “The Legend of Zelda: Breath of the Wild” (2017), último jogo da série, Link ainda não fala, mas todos os personagens coadjuvantes tem voz e entregam performances emocionantes.
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