Grandes filmes de 2024 para ver e rever
Uma reflexão sobre a morte, a beleza da rotina, críticas sociais afiadas, paixões intensas e um thriller à brasileira. Essas histórias marcaram a redação da Gama e festivais de cinema mundo afora
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“Dias Perfeitos”, Mubi
de Wim Wenders
Todo dia ele faz tudo sempre igual: acorda, toma café, veste um macacão, entra em sua van e segue para o trabalho como limpador de banheiros públicos. Entre uma faxina e outra pelas latrinas de Tóquio, escuta música — rock, de preferência —, almoça, observa as pequenas belezas da vida acontecendo ao redor, ouve mais do que fala e está sempre no momento presente. Fim de expediente, ruma para a sauna, relaxa, toma banho, depois janta, vai para casa, lê e dorme. Na manhã seguinte, a mesma coisa. Esse é o pacato, um tanto solitário, mas digno e, sobretudo, feliz cotidiano de Hirayama (Kôji Yakusho, premiado no Festival de Cannes), o carismático protagonista de “Dias Perfeitos”, dirigido pelo alemão Wim Wenders. O filme, que estreou no comecinho de 2024 no Brasil e está em cartaz até hoje na MUBI, não sai da minha cabeça desde janeiro. Talvez pela paz que “Dias Perfeitos” transmite, por me fazer ver o belo no inesperado e banal — afinal, um vaso sendo desentupido e limpo não é o que imaginamos de cara como sinônimo de algo bonito — ou por me chacoalhar mostrando que a vida pode ser levada de um jeito mais simples e tranquilo. (Ana Elisa Faria, repórter)
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“Zona de Interesse”, Prime Video
de Jonathan Glazer
Lançado lá no comecinho do ano aqui no Brasil como uma das grandes apostas do Oscar — que rendeu frutos nas categorias de melhor filme internacional e som —, o longa pode ser também um exercício de paciência. É só enquanto observamos o cotidiano entediante e absolutamente “normal” da família Höss que começamos a perceber as fraturas, em especial nos sons horripilantes de fundo a denunciar os horríveis sofrimentos que acontecem a poucos metros de distância. Para além da pergunta mais tradicional sobre como o ser humano é capaz de fazer tanto mal aos outros, o filme faz questão de nos questionar: é possível saber de tudo isso e seguir vivendo normalmente? No final, mais uma porrada evidencia a incapacidade crônica do ser humano de compreender de fato as violências do passado. E, sem isso, como evitar repeti-las? (Leonardo Neiva, repórter)
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“Malu”, em cartaz
de Pedro Freire
No ano em que “Ainda Estou Aqui” levou o cinema nacional para fora, outro filme feito no Brasil propõe uma viagem para dentro. O longa-metragem protagonizado por Yara de Novaes conta a difícil relação entre Malu, sua mãe e sua filha, para dar sentido a uma vida marcada pelo amor ao teatro e por um caos existencial. Baseado em fatos reais, na vida da atriz Malu Rocha, escrito e dirigido por seu filho Pedro Freire, o filme é sensível e doloroso, nos faz rir e chorar, nos escandaliza e nos faz refletir, nos faz temer e nos desperta compaixão. O processo de escrita e produção foi relatado por Freire na edição de dezembro da revista Piauí, levou cinco anos para ser escrito e foi filmado em apenas três semanas, um filme de baixo orçamento. Mas que alcança sentimentos imensos em quem o assiste. (Isabelle Moreira Lima, editora executiva)
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“Motel Destino”, Telecine
de Karim Aïnouz
O filme mais recente do cineasta Karim Aïnouz, “Motel Destino”, é uma das obras incontornáveis deste ano em que o cinema brasileiro conquistou plateias internacionais, sendo aplaudido por cerca de doze minutos no Festival de Cannes. Não à toa. O longa marca o retorno do diretor cearense às filmagens em sua terra natal em uma trama sexy e violenta. Nele, acompanhamos Heraldo (Iago Xavier), um jovem que, encrencado no mundo do crime, encontra refúgio e trabalho em um motel de beira de estrada no litoral, administrado por Dayana (Nataly Rocha) e seu marido abusivo, Elias (Fábio Assunção). Não demora muito para que Heraldo e Dayana se apaixonem, desencadeando um triângulo amoroso imprevisível. “Motel Destino” é um thriller erótico que combina elementos do cinema noir e da pornochanchada. Tem um trio central de atores em ótima sintonia e uma estética também sedutora, marcada por cores saturadas e fluorescentes — resultado do trabalho da premiada diretora de fotografia francesa Hélène Louvart, que fez a captação em película Super 16 mm. Apesar de um desfecho que dividiu a crítica especializada, “Motel Destino” nos transporta sem esforço para uma saga cheia de tensão e desejo, como só os bons filmes conseguem. (Amauri Terto, coordenador de mídias sociais)
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“O Quarto ao Lado”, Mubi
de Pedro Almodóvar
O filme questiona a máxima de que a morte é a única certeza que negamos, e que, ao chegar, nos encontra despreparados. Em “O Quarto ao Lado”, Martha, interpretada por Tilda Swinton, parece invejavelmente pronta para morrer. Isso fica evidente não apenas no meticuloso planejamento de sua autoeutanásia, mas também na forma como organiza suas memórias relacionadas às esferas fraternais, profissionais, afetivas e maternas, com as quais aparenta estar em paz. Desde o início, fica claro que Martha vai morrer. No entanto, ao longo do filme, fui percebendo que ela não era a única se aproximando da morte. Eu, e todas as pessoas anônimas sentadas no escuro daquela sala, também estávamos. O que dá a Martha um ar de unicidade e protagonismo é o fato de que ela sabe. Essa consciência sobre a própria morte confere à personagem um certo charme, presentes em seu penteado impecável (marca registrada de Tilda Swinton), roupas bem cortadas e caras, além de um senso de humor que nos faz rir mesmo diante das dores da vida (o que, diga-se de passagem, Almodóvar faz muito bem). Um exemplo disso é a cena em que Ingrid (Julianne Moore), sua amiga e cúmplice, se engana com um suposto sinal de morte de Martha e começa a chorar, antecipando o luto. Naquele momento, todos na sala de cinema pareciam prontos para chorar também. Mas, de repente, Martha surge atrás de Ingrid, tal qual um fantasma, o que fez a plateia rir sem qualquer reserva. Outro aspecto marcante é a mobilização de Ingrid diante da situação de Martha. No início do filme, Ingrid está em uma sessão de autógrafos — ela é escritora — quando descobre o estado de saúde da amiga com quem não falava há anos. Em vez de enviar uma mensagem ou uma caixa de chocolates, ela decide visitá-la pessoalmente. Coloca sua bolsa, uma Bottega Veneta Hop Large no braço e segue para o hospital (de luxo) onde Martha está internada. Ao longo do filme, Ingrid aceita acompanhar Martha em seus últimos dias. Ela reconhece na amiga alguém que está vivendo plenamente seus sentidos e desejos, apesar da proximidade da morte. Essa postura de Ingrid reverencia a dignidade de pessoas com doenças terminais ou que enfrentam tratamentos invasivos, geralmente confinadas em instituições hospitalares que, com sua natureza estéril, muitas vezes tornam impossível conciliar vida e morte. Saí do cinema com a sensação de que alguns laços sobrevivem ao tempo e à distância, de que todos deveriam ter uma amiga como Ingrid, e de que a burocracia nos acompanhará até a morte. No mais, é isso mesmo que estão dizendo por aí: Almodóvar conseguiu ambientar muito bem seu filme em Nova York (não sei se isso é uma meta individual dele). Suas cores estão lá: em frutas, quadros, móveis assinados, paisagens, casacos, sapatos e bolsas de grife… As cores estão lá, de um jeito diferente. Acho que mais caras, o que combinou perfeitamente com a cidade. (Natalia Oliveira, coordenadora de relações institucionais e parcerias)
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“A Substância”, Mubi
de Coralie Fargeat
Um filme sobre o pavor do envelhecimento, o interesse das diferentes mídias e da sociedade por corpos jovens e magros, a fama e, principalmente, sobre a violência que mulheres têm de suportar ao serem submetidas a padrões de comportamento e de beleza. O longa, que recebeu o prêmio de Melhor Roteiro no Festival de Cannes de 2024, traz Elisabeth Sparkle (Demi Moore) no papel de uma famosa apresentadora de um programa de ginástica que, de repente, é tirada de seu cargo por ser considerada velha demais. Ela então se submete a um tratamento de rejuvenescimento tão intenso e invasivo que o filme acaba se tornando um terror escrachado, por vezes cômico. Destaque para o trabalho da diretora francesa Coralie Fargeat, que vai fundo em um thriller feminista e sem meias-palavras. Ao assistir seu filme, é evidente a tentativa de revanche aos padrões que mulheres ainda precisam enfrentar. “Eu queria explodir e destruir tudo de uma forma violenta e intransigente porque para abalar isso, precisamos de um terremoto, um tsunami”, disse a diretora sobre essa realidade. (Luara Calvi Anic, editora-chefe)