Coluna da Vanessa Rozan: O consumo de beleza entre crianças — Gama Revista
COLUNA

Vanessa Rozan

A invasão de crianças e adolescentes no consumo de beleza

Não dá para negar completamente o uso dos cosméticos na socialização, mas também não dá para entregar seu filho para o TikTok educar

06 de Fevereiro de 2024

Uma nova epidemia do consumo de beleza é a invasão de crianças e pré-adolescentes nas lojas da gigante de produtos de beleza Sephora dos Estados Unidos. Em dezembro de 2023, a TikToker Chloe Grace postou um vídeo sobre uma interação que presenciou em uma das lojas da rede entre uma criança que queria um corretivo e uma mãe que negociava com ela os termos da compra. O mais irônico é que a própria influenciadora, que não deve ter mais de 20 anos, enquanto falava sobre o assunto, aplicava um corretivo na face. Eu fico pensando o quanto ela, talvez sem ligar os pontos, não tenha se dado conta do ato. Uma influenciadora jovem, dentro de uma rede social ocupada majoritariamente por jovens com idade entre 18 e 24, com impressionante presença da faixa etária de 10 a 19 anos (25%), ia aplicando o corretivo e falando o quanto era um absurdo que garotas pré-adolescentes quisessem levar suas mães na Sephora para comprar corretivos. De onde será que esses pré-adolescentes podem ter tirado essa ideia maluca de ter que usar um corretivo?

Essa rede social em questão é famosa por viralizar quase que diariamente uma nova trend de maquiagem que, na velocidade da luz, se torna uma febre instantânea. Tendências essas que trazem técnicas já antigas rebatizadas às vezes com nomes de comidas e quase sempre acompanhadas da palavra girl: Vanilla Girl, Clean Girl, Brazilian Girl, That Girl, Luxury Girl, Honey Girl, Grunge Girl. Todas as tendências são meninas. Até agora não tivemos uma lady, woman, person, madam. Chegou essa semana uma Mob Wife, esposa do mafioso, uma trend que consiste em casacos de pele, maquiagem mais elaborada, óculos escuros grandes e muitos acessórios dourados, e ainda assim, é a esposa de alguém poderoso. Basta você pesquisar qualquer um desses temas pra ver que essas girls são, em geral, um tipo bem parecido de beleza. São muito jovens, em geral brancas, com nariz fino e lábios grossos e mostram pencas de produtos, aplicados no ritmo de uma música com direito a muitas caras e bocas. Tudo muito sensual, são olhares e movimentos labiais ensaiados para despertar desejo. Qualquer aproximação com a indústria pornográfica não é mera coincidência.

Eu sou mãe de uma pré-adolescente que tem em casa um monte de maquiagem disponível além de contar com acesso a algumas redes sociais. Os amigos, na escola e no aplicativo de mensagens, compartilham muitos vídeos sobre o assunto, e a princípio pode parecer incontrolável ou pode ser lido como uma fase que vai passar. Sim, uma influenciadora de 20 anos que faz um passo a passo com inúmeros produtos de skincare e maquiagem e que impacta diretamente no desejo de consumo da faixa etária da minha filha não tá lá muito preocupada em como vai reverberar em quem assiste o conteúdo que ela produziu e que viralizou. Não posso cobrar essa consciência da garota, mas seria muito importante ter essa discussão dentro do campo da influência o mais rápido possível. Será que existe tempo para essa conversa na velocidade das trends infinitas?

É preciso acompanhar o rolê na farmácia ou na perfumaria e controlar o que entra e o que sai da nécessaire de crianças e adolescentes

O que eu de fato posso fazer é educar a minha filha, monitorando o acesso e o tempo de uso de redes sociais e celulares, já que temos comprovação científica de que o uso deles impacta negativamente a nossa autoestima, sendo as meninas as mais afetadas. Outra conversa que acontece sempre é a da construção social do valor da mulher, que está em cima da beleza, da juventude e da aparência. Para ajudar aí, eu recomendo o livro “Na Sala dos Espelhos: Autoimagem em transe ou beleza e autenticidade como mercadoria na era dos likes & outras encenações do eu”, da fantástica Liv Strömquist. Outro ponto é sugerir o uso de fórmulas mais limpas, que não possuam possíveis disruptores hormonais. Sobre isso não existe nada muito comprovado, mas, se há dúvida, prefiro não arriscar.

O que sabemos é que a fisiologia cutânea da pele de uma pré-adolescente não está completamente formada. Sendo mais permeável, essa é uma pele que não passou pela enxurrada de hormônios, ou está passando, o que a torna mais porosa e sensível. Casos de acne, frequentes nessa faixa etária, devem sempre ter acompanhamento médico.

Li esses dias que uma garota de 13 anos usou retinol na pele e quase perdeu a visão. Ela viu a técnica no TikTok e quis replicar para ter — PASMEM — redução de rugas e rosto brilhante. Casos como esse deveriam nos fazer pensar sobre quais conteúdos nossos filhos estão acessando e também que tipo de alerta o produtor do conteúdo colocou quando compartilhou essa “dica”. Não há um compromisso com o impacto do vídeo ou com a audiência. Eu ainda me deparo com receitas caseiras de limão, açúcar e café esfregados na região dos lábios, que podem causar queimaduras seríssimas. Há também os lápis de colorir como delineador para olhos. Esses, ao usar pigmento não testado oftalmologicamente e que podem causar alergia além de complicações bem piores, são um exemplo das dicas vendidas ali como infalíveis, superbaratas e acessíveis. O pior é que se espalham rapidamente. Todo mundo pode dar uma dica infalível com base nas vozes da sua cabeça, segundo a Universidade do TikTok.

Todo esse movimento também é um alerta para que os pais entendam que é preciso acompanhar sim o rolê na Sephora, na farmácia ou na perfumaria e controlar o que entra e o que sai da nécessaire; limites precisam ser dados. Não dá pra negar completamente o uso dos cosméticos nessa fase de socialização pós-pandêmica; mas também não dá pra entregar seu filho pro TikTok educar. Vai ter que ser como diz minha filha: um pouco de Nutella, um pouco de tomate.

Vanessa Rozan é maquiadora, apresentadora de TV e curadora de beleza e bem-estar. É proprietária do Liceu de Maquiagem, uma escola e academia de maquiagem e beleza profissional, aberta há 13 anos. Fez mestrado em comunicação e semiótica pela Puc-SP, onde estudou o corpo da mulher no Instagram.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

Quer mais dicas como essas no seu email?

Inscreva-se nas nossas newsletters

  • Todas as newsletters
  • Semana
  • A mais lida
  • Nossas escolhas
  • Achamos que vale
  • Life hacks
  • Obrigada pelo interesse!

    Encaminhamos um e-mail de confirmação