Domingo é tempo para as piores conclusões — Gama Revista
COLUNA

Marilene Felinto

Domingo é tempo para as piores conclusões

É o pior dia exatamente porque não há descanso possível

28 de Julho de 2023

Domingo é o pior dia. Quase uma convenção de que domingo é mesmo o pior dia – porque sobra tempo para a pessoa olhar a semana que se desenha adiante e pensar no que transformou sua vida. Inclusive tempo para pensar no quanto inútil (ou útil) ela se considera e qual é o seu valor socialmente estabelecido.

No domingo, a casa vazia se enche de solidão – e a casa cheia nem sempre faz sentido, a família, a coisa toda (a quase automática reprodução da periclitante vida humana, para o bem e para o mal, nos dias segundo, terceiro etc., os dias da “criação” do mundo).

Domingo é o pior dia – e quem teria descansado nesse chamado “sétimo dia”? Mentira cristã. Quem teria descansado? Ninguém. Na preparação do espírito para a segunda-feira, pouco importa o regime de trabalho ou o tipo de atividade quando acontece de a vida se apresentar como uma obrigação sofrida… a despeito, é claro, de algum momento de prazer que torne suportáveis os dias subsequentes.

Pouco importa a profissão… Tanto faz escrever quanto fincar um prego num pedaço de madeira de carpintaria. Aliás, escrever e se arrepender, corrigir, arrepender-se novamente. Escrever não é diferente de bater um prego com martelo e o martelo desviar-se, errar o alvo e atingir justamente o dedo da pessoa (o acidente de trabalho).

No domingo, a casa vazia se enche de solidão – e a casa cheia nem sempre faz sentido

“Eu só preciso de um milhão de reais”, alguém disse, “que guardaria para a emergência cotidiana”. Concordei: “eu também; era o que bastava, um milhão”. De resto, trabalharia quando quisesse, como quisesse. O valor: neste mundo da financeirização de tudo, sobra tempo, no domingo, para se concluir que até hoje não se acumulou o capital suficiente, e que a pessoa continua escravizada pela iminência da segunda-feira…

Escrever. O dedo está praticamente roxo da martelada. Escrever, autocensurar-se e parar. Corrigir-se, voltar, recomeçar – o dedo pulsa, quente. Tentar concentrar-se, pensar nas coisas boas da vida… – mas quais, se só vêm na mente os desafetos, gente má, que desdiz, maldiz e desdenha? Expor-se, ignorando a autocensura. Escrever, traduzir, errar… Traduzir de novo… O dedo inchou enormemente.

Antes fosse indígena, e então viveria sob outra lógica… e o dia santificado, o domingo, não existiria… a prática do trabalho seria então pelo coletivo, sem objetivos de adquirir riqueza, coletando, colhendo e caçando apenas a quantidade necessária para a sobrevivência… Não haveria pressões por produtividade, por popularidade, nem competição nem roubo.

“Eu só preciso de um milhão de reais livres para mim”. E alguém gargalhou, dizendo que essa quantia era insignificante. A ideia frustrada é capaz inclusive de levar a pessoa a buscar conselhos de autoajuda. Algo que reconforte, na perspectiva da semana de trabalho exposta a estressores de todos os tipos – mas só se encontra autoajuda para grã-fino, coisa de certa espécie de “filósofos” e psicanalistas midiáticos escrevendo autoajuda para grã-fino ler.

Domingo é tempo para as piores conclusões, sobre o que a pessoa fez ou teria feito de sua vida

Domingo é tempo para as piores conclusões, sobre o que a pessoa fez ou teria feito de sua vida, sobre que tipo de gente ela é ou teria sido, sobre por onde anda e com quem. E, finalmente, se é uma pessoa ruim… Sim, uma pessoa ruim, capaz de dizer: “Não me quis? Não me queira!”, e pronto. Domingo é uma crise, uma depressão: a crise do seu capital, da reprodução literalmente fictícia do seu capital – o ridicularizado um milhão de reais, a quantia que lhe serviria de utópica libertação e liberdade –, a crise da dificuldade de mobilizar sua fragilíssima força produtiva, de encarar seu estresse ocupacional e de dar espaço total à sua grandiosa preguiça, ao seu senso de inutilidade da vida.

Na segunda-feira, o dia primeiro da criação, tanto faz produzir uma esquadria, uma porta, uma janela… ou um escrito resultado do trabalho abstrato absurdo – e tão concreto quanto um dedo esmagado por um martelo –, um texto resultado da “expansão da atividade intelectual como forma do trabalho subsumido ao capital!”, assim diz a economia. “Subsumido”… que palavra bonita… subsumido e subsumido!

No princípio que era o nada, no vazio e à beira do abismo, alguém disse, no começo da semana (ou do mundo): Haja saco! E houve algum saco. E no dia sexto da mágica do gênesis, o sábado, alguém suspirou e disse: amanhã é domingo, que inferno! Domingo é o pior dia, exatamente porque não há descanso possível.

Marilene Felinto nasceu em Recife, em 1957, e vive em São Paulo desde menina. É escritora de ficção e tradutora, além de atuar no jornalismo. É bacharel em Letras (inglês e português) pela Universidade de São Paulo (USP) e mestre em Psicologia Clínica (PUC-SP). É autora, entre outras dez publicações, do romance As Mulheres de Tijucopapo (1982 – já na 5ª edição, ed. Ubu, 2021), que lhe rendeu o Jabuti de Autora Revelação e é traduzido para diversas línguas. Seu livro mais recente é a coletânea de contos Mulher Feita (ed. Fósforo, 2022).

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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