O dia em que o Brasil começou a morrer — Gama Revista
COLUNA

Maria Ribeiro

O dia em que o Brasil começou a morrer

“Na época, o país era governado por uma mulher, máscaras só eram vistas em centros cirúrgicos ou no carnaval e a gente achava que tristeza era o que tínhamos vivido no sete a um”

28 de Junho de 2021

Foi no dia vinte e dois de dezembro de 2015. Quase sete anos atrás. Faz muito tempo, e, por outro lado, foi ontem. O calendário anda mesmo confuso, ainda mais agora, nessa vida de poucos sapatos, e onde todos os dias são de cinzas –quartas, ou não.

Na época, o país era governado por uma mulher, máscaras só eram vistas em centros cirúrgicos ou no carnaval, e a gente achava que tristeza era o que tínhamos vivido no sete a um –(aqui tem um suspiro).

Nessa noite, enquanto meus filhos dormiam e eu provavelmente assistia a mais um episódio de “House of Cards” –na época o Kevin Spacey ainda não tinha sido cancelado– o Brasil começava, sem que ninguém se desse conta, a morrer de si mesmo. Era véspera de Natal, mas o aniversário do Cristo não costuma comover quem não gosta de poesia. Ainda mais no Brasil da rua Dias Ferreira, onde a briga se deu.

Nessa noite, o Brasil começava, sem que ninguém se desse conta –e as vésperas do aniversário do Cristo– a morrer de si mesmo

A cena aconteceu no Rio de Janeiro, e, o elenco era composto pelos jedis Cacá Diegues, Eric Nepomuceno, Miguel Faria e Chico Buarque (e também por alguns stormtroopers cujos nomes esqueci). Parece que as falas foram poucas, mas por trás delas havia a semente que transformou o Brasil no deserto que é hoje: uma terra infértil que mata árvores e homens, e que xinga poetas nas madrugadas do Leblon.

Desculpa, Chico. A gente não percebeu.

Pra quem não lembra, foi um barraco premonitório. Um grupo de playboys (ai que saudades do Jorginho Guinle!) se vê diante de um artista e um deles o chama de petista. E continua. Diz que os petistas são todos bandidos, e que o cantor deveria ir de vez para Paris (onde Chico mantem um apartamento).

Corta. Mais de seis anos depois, somos governados por um presidente sem partido. A narrativa do rapaz que agrediu um dos maiores ídolos do país foi longe: tirou uma presidenta em um golpe de estado, elegeu um ex-deputado medíocre e homofóbico como chefe da nação, prendeu injustamente um ex-presidente por 580 dias e agora não sabe o que fazer com tantos corpos em sua conta, já que culpar o PT ficou meio sem sentido.

Acho difícil que Jair Bolsonaro fizesse sucesso no Chile ou na Argentina –nossos vizinhos levaram a sério o trauma de suas respectivas ditaduras

Os ídolos de um país dizem muito sobre sua gente. Donald Trump, por exemplo, dificilmente seria eleito na França -apresentadores de tevê não são exatamente o tipo favorito deles. Também acho difícil que Jair Bolsonaro fizesse sucesso no Chile ou na Argentina – nossos vizinhos levaram a sério o trauma de suas respectivas ditaduras. Os dois países puniram seus torturadores e ergueram museus em memória de seus mortos. Tratar, portanto, assassinos, como mitos – como nosso presidente se comporta desde sempre ao vangloriar o sanguinário Brilhante Ustra – no mínimo, não pegaria bem.

Lembrei dos textos de Edgar Morin e de Joseph Campbell que que li na PUC (viva a universidade!) e que jamais esqueci. Sobre as diferenças entre celebridades e heróis. Segundo eles, celebridades vivem para si, ao passo que heróis vivem para
redimir a sociedade, ou seja, para os outros.

Chico Buarque não foi pra Paris, como sugeriu um dos rapazes da Dias Ferreira. Ao contrário, o cantor não só ficou aqui como comemorou seus 77 anos na última manifestação contra o governo, que genocida e incompetente, “ao menos não é petista”, deve pensar o stormtrooper do Leblon.

Isso foi antes do escândalo da Covaxin e do escândalo envolvendo os Irmãos Miranda (alô, Dostoievski!), mas duvido que os rapazes briguentos estejam acompanhando a CPI. Ainda mais em plena Copa América.

Em sua caminhada, numa avenida do Rio de Janeiro, Chico recebeu vários cumprimentos e inúmeras declarações de amor. Alguns dias antes, em uma live com Regina Zappa e Hildegard Angel, chorou ao falar das mortes no Brasil. Como ele, eu também tenho chorado, vez ou outra. Mas ao ver meu herói aclamado no lugar mais importante de uma cidade, que é a rua dos protestos e dos encontros de amor, senti uma alegria tão grande que até esqueci por alguns instantes o meu
crush atual.

Foi mal, Renan.

Maria Ribeiro é atriz, mas também escreve livros e dirige documentários, além de falar muito do Domingos Oliveira. Entre seus trabalhos, destacam-se os filmes "Como Nossos Pais" (2017) e "Tropa de Elite" (2007), a peça "Pós-F" (2020), e o programa "Saia Justa" (2013-2016)

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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