Brasileiros pela metade — Gama Revista
COLUNA

Maria Ribeiro

Brasileiros pela metade

É isso que temos sido. Vendo nossos povos originários sendo dizimados, vendo a fome chegar a 33 milhões de conterrâneos

17 de Junho de 2022

A primeira vez que eu entrei no Rio Negro, 16 anos atrás, eu pensei ter chegado ao céu. Era novembro. Era domingo. Era outro Brasil.

Havíamos saído de Manaus em uma lancha pequena, meu namorado e eu, e decidido passar o dia “no maior hotel de selva do mundo”. Pelo menos era assim que se auto intitulava o hotel para o qual nos dirigimos, o hoje extinto Ariau.

No início, era só o vento no cabelo e uma água escura, enquanto a cidade ficava para trás. Até que de repente apareceu uma árvore, e depois outra, e depois outra, e em seguida uma floresta. Submersa. E então eu entendi, que, até ali, e mesmo já contando 31 anos, eu era uma brasileira pela metade.

Fui pra Amazônia de novo em 2019. Dessa vez com mais calma. Cinco dias em um barco grande, com tempo pra colocar a paisagem interna a serviço da externa, e para absorver o verde, o silêncio, a desconexão, o país. Sobretudo, o país. Que sorte, a nossa, eu pensava, toda vez que entrava em um igarapé. Se, da primeira vez, em 2006, a sensação de navegar em meio às copas das árvores havia sido de chegar perto do céu, da segunda, fui mais longe: aquilo era Deus, e que se dane o meu ceticismo.

O vídeo que mostra Bruno cantando e Dom brincando com crianças deixa claro que estamos diante do extermínio de dois heróis mundiais

Escrevo esse texto no dia 15 de junho de 2022. Estou de cama, derrubada pela covid-19, mas, principalmente, pela morte de dois homens bons. Bruno Pereira e Dom Phillips, um indigenista e um jornalista, estavam exatamente onde todos nós deveríamos estar: defendendo o futuro. Não, mentira. Defendendo o presente. O vídeo que circula há dias nas redes sociais, onde vemos Bruno cantando e Dom brincando com crianças, deixa claro que estamos diante do extermínio de dois heróis nacionais. De dois heróis mundiais. Se esses assassinatos não servirem para que cada um de nós faça da eleição de outubro o seu grande propósito dos próximos meses, vai ser justo e merecido que a gente termine sem ar e sem água, sem música e sem floresta.

Brasileiros pela metade. É isso que temos sido. Vendo nossos povos originários sendo dizimados pelo garimpo ilegal e pela pesca predatória, vendo a fome chegar a 33 milhões de conterrâneos, vendo as estrelas desabarem, como diz o xamã Yanomami Davi Kopenawa.

A primeira vez que eu entrei no Rio Negro, 16 anos atrás, eu pensei ter chegado no céu. Mas talvez ele não exista mais.

Maria Ribeiro é atriz, mas também escreve livros e dirige documentários, além de falar muito do Domingos Oliveira. Entre seus trabalhos, destacam-se os filmes "Como Nossos Pais" (2017) e "Tropa de Elite" (2007), a peça "Pós-F" (2020), e o programa "Saia Justa" (2013-2016)

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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