Coluna da Maria Ribeiro: As cinzas do meu pai — Gama Revista
COLUNA

Maria Ribeiro

As cinzas do meu pai

Meu pai amava escola de samba. Acho que também gosto. Mas suas cinzas, assim como as lembranças dos versos da Padre Miguel, também estão diferentes

16 de Fevereiro de 2024

Sempre gostei de Carnaval. Menina, decorava todas as letras das escolas cariocas. Meu pai, que adorava os desfiles, virava a noite na Sapucaí — e depois via tudo de novo comigo na TV. Ou seja, nunca vou saber o quanto da minha devoção era de fato pela Mocidade ou se, no fundo (e no raso), eu queria mesmo era agradar o Leonidio.

Ano passado, minha mãe quebrou o fêmur. Nos três meses em que passou no hospital, me preparei para a despedida. Até aquele momento, acreditava estar pronta para viver sem ela — na medida em que isso é possível — mas, ao contrário do que o meu cérebro previa, fui tomada por um pânico e um amor que ainda não tinham dado match.

Não conheço ninguém que ache simples entrar nesse território. E não só na hora da morte. Pai e mãe, independentemente da matemática de traumas, sortes e/ou conexões, são em maior ou menor grau uma paisagem em constante movimento — e haja pernas (e sabedoria) para acompanhar distância e aproximação. Saber a hora de correr para longe, para perto ou, como agora, para dentro.

Hoje é sexta-feira de cinzas. Voltei para essa ala de memórias dois dias atrás, ao ouvir a apuração das escolas de samba — uma experiência proustiana que, imagino, é coletiva. Sempre me comovo com as pessoas nos barracões e me aqueço com os termos da semana, os mesmos da vida inteira. Alegoria. Evolução. Harmonia. Palavras do mês, funcionárias e bailarinas ao mesmo tempo.

Voltei para essa ala de memórias da infância ao ouvir a apuração das escolas de samba

Nas ruas, as vitrines ainda exibem alguns poucos restos da festa. Mais alguns dias e pronto: tudo vira nada, uma espécie de esporte da vida, que, a essa altura, começo a me acostumar.
Abro minha caixa de e-mails para mandar o texto que agora você lê. Um amigo me indica um livro. “Acho que você vai gostar.” Não nos vemos há tempos. Mas, o livro, ele diz, “tem a ver com o que você escreveu sobre o filme da Sofia Coppola”.

Sorrio.

Essa pessoa, que meu amigo acha que eu sou, que talvez um dia eu possa ter sido, que quem sabe um dia eu volte a ser, hoje não existe em absoluto. Há eventos que nos mudam irremediavelmente a composição. Intervalos que viram atos, com cenas importantes, imperdíveis. Às vezes não dá pra dar “pause” sem interferir no “play”.

Penso em responder, mas desisto. “Você não me conhece mais”, eu diria, enquanto a Viradouro se consagra campeã.

“Lembra que eu era uma garota de pai? Era mentira. Minha mãe caiu e se levantou. Eu meio que fui e voltei com ela. Você viu o Salgueiro falando dos Yanomami?”

Apago a mensagem. As pessoas comemoram na TV. Meu pai amava escola de samba. Acho que também gosto. Mas suas cinzas, assim como as lembranças dos versos da agremiação de Padre Miguel que agora me vem à cabeça, também estão diferentes.

Esse, de alguma forma, foi meu primeiro Carnaval.

Maria Ribeiro é atriz, mas também escreve livros e dirige documentários, além de falar muito do Domingos Oliveira. Entre seus trabalhos, destacam-se os filmes "Como Nossos Pais" (2017) e "Tropa de Elite" (2007), a peça "Pós-F" (2020), e o programa "Saia Justa" (2013-2016)

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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