Marcello Dantas
Os “gatos” em Borba
A escravidão deve ser lembrada para que nunca mais aconteça. Não apagada para que deletemos esse passado condenável de nossa história
“Nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie. E, assim como a cultura não é isenta de barbárie, não o é, tampouco, o processo de transmissão da cultura.”
– Walter Benjamin
Afinal, quantos realmente sabem quem foi Borba Gato? O movimento recente de ataques a monumentos históricos é uma oportunidade para entender um pouco como o processo de colonização aconteceu e ainda permanece latente na sociedade.
O momento político clama para que a reparação consciente aconteça. Existem inúmeros monumentos no mundo que precisam ser encarados com este olhar revisionista. E isso deveria ser uma prática constante. Revisar a história para identificar as tragédias erroneamente celebradas como momentos de glória.
Existe o risco de, ao fazermos justiça sob a ótica do presente, possamos estar apagando processos do passado que nos permitem entender como a história foi sendo construída e como verdades foram sendo apagadas. Elucidar a mentira não pode vir ao custo de se apagar a verdade. Entendo a revolta das pessoas ao queimar a estátua. Sendo assim, devemos preservar o monumento queimado como retrato de uma dinâmica na qual um dia exaltamos um assassino, enquanto em outro ressignificamos este fato. Faz-se necessária uma clara legenda que contextualize o personagem, a circunstância que o alçou a herói e as razões pela revolta em tê-lo um dia celebrado. Sem isso, perderemos a oportunidade de contar como a história é sempre reescrita. Às vezes, a exumação do cadáver é a única forma de se revelar uma verdade.
Às vezes, a exumação do cadáver é a única forma de se revelar uma verdade
Simplesmente apagar os fatos que nos incomodam é repetir o erro soviético de deletar ex-aliados de suas fotografias. Não se cria consciência tornando as coisas invisíveis. Todos que sentem-se injustiçados têm o direito de manifestar seu protesto por justiça. Os judeus ensinaram ao mundo que devemos relembrar o Holocausto sempre para evitar que ele corra o risco de acontecer novamente. O ex-chefe da KGB soviética, o presidente russo Vladimir Putin, está por trás da criação de uma atração no parque temático VDNKh sobre os czares e princesas da Rússia pré-revolução. Borba Gato passou por uma revisão de seu papel histórico mesmo em vida: foi bandeirante, garimpeiro, assassino, foragido e ainda acabou como juiz. É muito difícil que, 300 anos depois, tenhamos a capacidade de avaliar com precisão todas as forças e valores que estavam na mesa em sua época. Assim como qualquer cidadão da primeira metade do século XX seria visto como machista ou racista sob os valores em vigor hoje. Mas se não entendermos o contexto, fica impreciso fazer uma avaliação completa de seus papéis. O homem é produto de seu meio.
Nossas cidades têm o potencial de serem locais de constante aprendizado sobre os mecanismos obtusos de como a história é escrita. Os bandeirantes, por exemplo, foram resgatados para dar mais protagonismo a São Paulo, quando o crescimento econômico do estado solicitava uma narrativa mais épica de sua história. Ninguém cultuou os bandeirantes na época do Império.
Uma obra catastrófica como o minhocão de São Paulo deveria ter o nome do responsável por ela associado, ao descalabro que foi sua construção pelo prefeito Brigadeiro José Vicente de Faria Lima. Me parece uma enorme injustiça dar o nome do viaduto ao ex-presidente João Goulart que não tem autoria alguma pelo fato. Notoriedade deve ser dada aos nossos heróis, e também aos algozes que queremos usar como exemplo para que nunca mais aconteça. Burocratas anônimos precisam ser responsabilizados pelos absurdos e injustiças que promoveram. O anonimato dos carrascos relega-os ao esquecimento e assim garante a sua impunidade. E precisamos encontrar oportunidades para celebrar os personagens negros, indígenas e outras etnias em espaços que os simbolizem com os seus méritos.
Uma obra catastrófica como o minhocão de São Paulo deveria ter o nome do responsável por ela associado
Recentemente, uma equipe de consultores educacionais rejeitou um vídeo realizado quinze anos atrás com base no poema “Navio Negreiro”, de Castro Alves, ilustrado por imagens históricas de como eram arranjados os ditos navios, pelo fato dessas imagens desvalorizarem a questão da identidade racial no Brasil. A escravidão deve ser lembrada para que nunca mais aconteça. Não apagada para que deletemos esse passado condenável de nossa história.
A história não é feita de consensos, mas da alternância de visões que nos permitem reavaliar os papéis que cada personagem teve dentro de seu contexto. Talvez seja necessário queimar algumas estátuas para que nos atentemos a ver no meio de quem estamos vivendo e a quem celebramos. O que está em jogo agora é o reconhecimento de como a história nos foi contada e por quê. Mas o olhar revisionista não trará frutos enquanto não oferecermos uma leitura simbólica do espaço urbano e dos ícones que através dos tempos plantamos ali. É na pele urbana que podemos entender quem são os visionários, os vilões e os espantalhos que construíram a nossa identidade. Uma boa história não se faz sem os três.
Marcello Dantas trabalha na fronteira entre a arte e a tecnologia em exposições, museus e projetos que enfatizam a experiência. É curador interdisciplinar premiado, com atividade no Brasil e no exterior
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