Coluna do Marcello Dantas: "O senhor do clima" — Gama Revista
COLUNA

Marcello Dantas

O senhor do clima

Essenciais para a preservação da floresta, rios voadores beneficiam o Brasil com uma enorme quantidade de água proveniente da evaporação da floresta amazônica

21 de Dezembro de 2022

Em 2010, eu conheci inglês Gerard Moss, o aviador e ambientalista que se aventurou na circum-navegação da Terra em um motoplanador, coletou amostras das águas de todas as bacias hidrográficas brasileiras em um hidroavião e desvendou o fenômeno dos rios voadores. Gerard morreu precocemente este ano, mas inspirou muitas pessoas com esse tema, entre eles, eu.

Os rios voadores são um fenômeno climático da América do Sul que beneficia o Brasil com uma enorme quantidade de água proveniente da evaporação da floresta amazônica. Por conta da geografia marginada pelos andes e pelo fluxo dos ventos, o centro-oeste, o sudeste e o sul do Brasil tornaram-se uma terra prometida, com quantidades desproporcionais de água, se comparada às zonas em latitudes similares em outras regiões do mundo, como o deserto Kalahari, no sul do continente africano, o Atacama, no Chile e o Outback australiano.

Gerard colaborou com cientistas como Antonio Nobre, José Marengo e Eneas Salati para se aprofundar no assunto. Um momento chave foi a compreensão de que era possível identificar uma impressão digital sobre a origem da água que caia sobre a região centro-sul da América do Sul, através da diferenciação dos isótopos de oxigênio na água vinda de evaporação do mar ou da transpiração da floresta, uma com 18 e outra com 16 isótopos, respectivamente.

Isso, somado a conclusão de que cada metro quadrado de floresta evapora 150 vezes mais que a mesma metragem de oceano, deu o embasamento científico para alçar a tese a um outro nível de dimensionamento e conclusão. Uma árvore sozinha pode colocar 1000 litros de água na atmosfera em um único dia.

Desmatar a Amazônia pode ter uma consequência catastrófica na forma e na escala de como fluxos de vapor d’água se formam

Além do campo climático, o fenômeno tem efeitos econômicos importantes: 70% da riqueza da América do Sul provém da região impactada por estes cursos de água atmosféricos, de Cuiabá à Buenos Aires, e a matriz hidrelétrica limpa de mais de 90% dos brasileiros só existe em decorrência dessas águas que abundam pela região. Os impactos não se restringem apenas ao continente sul-americano, um bilhão de pessoas no planeta se alimenta diariamente da produção agrícola banhada pelos rios voadores. Para efeito de comparação, o rio Amazonas, o maior do mundo, desagua 17 trilhões de litros de água por dia no oceano, por sua vez, os rios voadores deslocam 20 trilhões de litros de água no mesmo período.

Desmatar a Amazônia pode ter uma consequência catastrófica na forma e na escala de como esses fluxos de vapor d’água se formam, reduzindo ou interrompendo a transferência de água, trazendo seca e miséria para uma região abençoada com a maior concentração de águas potáveis do mundo.

Esse tema inspirou criadores como o fotógrafo Sebastião Salgado, a escritora e ilustradora Yana Marull e Joarez Sutil Rodrigues a produzirem iconografia e imaginário sobre os rios que navegam sobre nossas cabeças. Imaginário esse que já existia nas culturas indígenas do Brasil.

Na última década esse conhecimento se tornou relativamente notório. Porém, uma nova pesquisa traz à tona um novo personagem que torna o assunto ainda mais delicado e precioso. Stefan Wolff, pesquisador do Instituto Max Planck, intrigado em entender como o mecanismo inicial de formação de nuvens tão carregadas acontecia de forma diferente na floresta e no mar, supôs que algum elemento orgânico ou químico deveria fazer parte do fenômeno. E a resposta é que sim, parece existir um ingrediente secreto. Ele se chama potássio e vem aos céus associado ao esporo de um cogumelo e de outros micélios que do chão e das arvores da floresta sopram aos ares.

A manutenção dos rios voadores pode fazer com que o planeta tenha alguma chance de ser resfriado

A leveza do esporo e sua constituição molecular causa a aglomeração das gotículas de água transpirada pela floresta, que é conhecido por núcleo de condensação da nuvem. Assim, inicia-se o processo que vai culminar em nuvens supercarregadas que viram as trombas d’agua que vivenciamos constantemente. A interrupção desse sistema pode fazer com que toda a água potável do mundo drene para os oceanos em menos de 10 anos. A manutenção dos rios voadores e do fenômeno chamado bombas bióticas podem fazer com que o planeta tenha alguma chance de ser resfriado.

Foi com esse argumento que o Studio MK27 e a Magnetoscópio, a qual dirijo, ganharam o concurso para o desenvolvimento do pavilhão do Brasil na Expo Osaka de 2025, cujo tema é empoderar a vida. A síntese do pavilhão é defender a preservação das florestas como questão emergencial nas mudanças climáticas e na interligação da relação das florestas com a capacidade de resfriamento do planeta.

A compreensão da importância da floresta como agente dinâmico, onde o mais sublime esporo tem um papel essencial na interligação das coisas nos obriga a olhar para a preservação do bioma de uma forma muito mais profunda. Não basta parar de queimar, tem que deixar tudo vivo e, se possível, intacto. Pois, se no passado, o grande medo que reinava sobre nossas mentes era o fim da vida através de um cogumelo atômico, hoje, entendemos que o regente do clima pode ser um cogumelo. Para nos mantermos vivos, é necessário que uma outra nuvem feita por cogumelos continue existindo.

Marcello Dantas trabalha na fronteira entre a arte e a tecnologia em exposições, museus e projetos que enfatizam a experiência. É curador interdisciplinar premiado, com atividade no Brasil e no exterior

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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