Coluna do Marcello Dantas: Um museu sem parede — Gama Revista
COLUNA

Marcello Dantas

Arte sem chão, teto ou parede

A experiência do novo museu mexicano SFER IK, em meio a riviera maia, nos provoca a olhar para onde estamos pisando e o que nos sustenta de pé

13 de Janeiro de 2021

Francisco Uh May é um pequeno vilarejo localizado a 30 km de Tulum, na Riviera Maya, no México. Estive lá recentemente para conhecer um novo museu, o SFER IK Museion. Não tinha uma ideia clara do que me esperava, além de uma obra do artista Ernesto Neto. Instalado não na cidade, mas dentro de uma mata densa típica dessa região, senti que havia chegado onde mais parecia ser uma ilha da fantasia. Ninguém precisa de ácido lisérgico ou de Ayuahuasca para empreender uma viagem existencial nesse lugar. Sem piso, sem paredes e sem teto, porém, ainda sim, um museu completo e com algo de muito novo.

Um túnel feito de fibras vegetais leva a uma rampa que anuncia a imaginação delirante do arquiteto e fundador, o argentino Eduardo Neira Sterkel, mais conhecido como Roth. Sua proposta é criar um fórum multidisciplinar que une a criatividade ocidental à sabedoria ancestral dos povos indígenas do planeta. Sua ambição ultrapassa as fronteiras do México. Roth está desenvolvendo um projeto em AlUla, na Arábia Saudita, e tem outros dois para construir, na Patagônia e na Amazônia.

Para entrar no espaço de dimensões exuberantes deve-se tirar os sapatos. Com formas orgânicas em concreto, fibras vegetais (bejuco) e fibra de vidro, o local apresenta grandes desafios a artistas e museógrafos da atualidade: não possui piso plano, parede reta ou iluminação regular — a luz natural filtrada pela fibra de vidro se mescla a spots cênicos. Fontes de água permanente, uma fogueira, túneis, passagens e passarelas por todos os lados, além de uma enorme quantidade de plantas vivas suspensas trazem mais complexidade ao lugar. A qualidade da experiência imersiva é altíssima.

Ao criar um espaço que rompa com a esterilidade do cubo branco, abre-se a possibilidade de ampliar o repertório de linguagens dos artistas

As proporções são equivalentes ao Guggenheim em Nova York. Inevitável não lembrar do arquiteto Frank Lloyd Wright ao ser confrontado com a crítica de que o Guggenheim não era um museu adequado para a arte devido às suas rampas sinuosas e continuas: “A arte vai melhorar com o meu museu”, respondeu.

A ideia é que ao criar um novo tipo de espaço para a arte que rompa com os códigos sacramentados e esterilizados do cubo branco abre-se a possibilidade de ampliar o repertório de linguagens que os artistas venham a desenvolver. A proposição de que a arte precisa dialogar com o orgânico, com as formas da natureza, com os saberes ancestrais e a vida natural é um grande desafio para o ambiente estéril dos museus atuais. Aqui, a arte pede para que seja feita de forma especifica para o museu, criada em resposta ao espaço que a abriga ou briga com ela.

Durante a visita, um monitor explicou que as passarelas flutuantes do espaço atuam tal como o micélio em relação às árvores e ao solo: criando redes de comunicação entre entidades vivas que coabitam o mesmo templo. Espontaneamente, ele havia associado os micélios, que são a origem da vida, com a forma de um museu.

É com ritos apaixonados e visionários como a criação de um espaço como esse que elevamos a barra do que a arte pode fazer por nós. Devemos encarar que a grande fronteira a ser explorada nesse campo está na nossa defeituosa relação com a natureza e com as outras espécies. Para isso, precisamos de uma mudança em nossa percepção e na maneira como nos expressamos e nos entregamos à experiência artística.

O cinismo de muita arte produzida nas últimas décadas está ligado ao método cartesiano que a arquitetura impôs aos espaços culturais

O SFER IK é uma proposta radical que convoca artistas experimentais a se arriscarem nos cipós e criarem novas propostas de engajamento. Afortunadamente, o genial Ernesto Neto foi o primeiro artista a expor lá. Ernesto é um dos maiores defensores desta mudança de paradigmas da arte e do seu papel na construção de uma consciência mais integrada à natureza e de uma conexão mais visceral com as formas que nos originam.

O cinismo que se nota em muita arte produzida nas últimas décadas está profundamente ligado ao método cartesiano que a arquitetura impôs aos espaços culturais, distanciando a experiência da vida da experiência artística. A arte torna-se artificial ao se adequar a uma arquitetura pautada pela racionalidade. A nossa sensibilidade não pode ser reduzida àquilo que o calculista acha mais fácil ou seguro de construir. A racionalidade não nos salvará.

Uma das características do corpo humano é ser bípede com um centro de gravidade alto, porém ajustável a cada passo. Em nome da funcionalidade, a arquitetura transformou essa enorme qualidade da nossa espécie em algo supérfluo. Ao planificar o mundo, deixamos de poder explorá-lo com todas as suas nuances. Perdemos a possibilidade de mudar de perspectiva, ajustar um ângulo do corpo para enxergar melhor de cima ou de baixo de acordo com a variação do relevo. O chão liso nivela por baixo em nossa habilidade de negociarmos o equilíbrio a cada passo. Essa é a origem da ideia de sustentabilidade, que não se trata de caminhar sempre de forma igual e sim alternar a forma de pisar, compensando os ângulos com o passo seguinte.

A experiência do SFER IK nos provoca a olhar para onde estamos pisando e o que nos sustenta de pé. A melhor metáfora para o nosso tempo. Ou aprendemos com a natureza ou nos tornaremos irrelevantes diante dela. Catedrais como estas do México despertam uma possível reconexão da arte com todas as formas de vida.

Marcello Dantas trabalha na fronteira entre a arte e a tecnologia em exposições, museus e projetos que enfatizam a experiência. É curador interdisciplinar premiado, com atividade no Brasil e no exterior

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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