Coluna da Isabelle Moreira Lima: Eu passo maquiagem para o delivery — Gama Revista
COLUNA

Isabelle Moreira Lima

Eu passo maquiagem para o delivery

De como, privada da companhia dos amigos e de muitos da família, das experiências de trabalho presencial e do lazer fora de casa, me sustentei pelo paladar (e uma lista dos melhores vinhos de 2020)

23 de Dezembro de 2020

Já escrevi aqui que 2020 foi um ano azedo. Mas foi também salgado, doce, amargo, umami. Foi o ano em que a comida me salvou. Privada da companhia dos amigos e de muitos da família, das experiências de trabalho presencial e do lazer fora de casa, me sustentei pelo paladar. Cheguei ao cúmulo de criar um ritual (sim, esses que nos ajudam a superar as adversidades e a sobreviver ao luto) de me embelezar — com direito a roupa especial e maquiagem — para receber o delivery.

Invariavelmente, arrumei a mesa e fiz um clima com luz e música. Em dias mais especiais, visitei o enxoval de casamento da minha mãe que amarela no armário (e que precisava ser lavado mesmo então por que não usá-lo?), e comi sobre toalhas de linho. Houve dias em que o restaurante era chique assim. Em outros, era meio bar, meio balada, as coisas meio jogadas no balcão, a luz baixa e o tapete em frente à TV como pista de dança (essas tardes e noites chamamos de “Caracolzinho”, em homenagem ao bar no centro de São Paulo). Houve ainda as viagens, sem sair do lugar. Com meu marido e nossos filhos pequenos, viajei ao Japão e fabriquei, à mesa, temakis esquisitos, mas do tamanho da nossa fome.

Nos momentos críticos, nos juntamos na cozinha para fazer nhoque. Quem já fez sabe de suas qualidades terapêuticas: os gritos paravam, virávamos um time

A mesa me salvou, mas a cozinha também. Ficar por meses em isolamento com duas crianças é uma tarefa excruciante. Nos momentos mais críticos, nos juntamos ao redor da ilha da cozinha para fazer um nhoque de mandioquinha com ragu de linguiça. Quem já fez nhoque sabe como é um processo demorado e como vai farinha por todo lado, mas pode imaginar também suas qualidades terapêuticas: os gritos paravam, virávamos um time. Na hora de comer, era paz e comunhão: rimos e nos amamos do mesmo tanto que amamos o nhoque. Da mesma forma, assamos biscoitos, batemos bolos, enrolamos brigadeiros — a paz, a comunhão, a explosão do açúcar.

Essa aventura me levou a novos ingredientes (um curry tailandês vermelho foi um dos hits), aos melhores fornecedores, e a uma conta bancária que gritava por socorro. Fingi não ver, afinal a comida, repito, ela me salvou.

E se ela me fez assim tão feliz, me senti na obrigação de honrar cada garfada. Trabalhei para seu melhor casamento, que é também como se chama a harmonização, ou seja, a perfeita combinação entre comida e bebida. Para o pão, um bom café (fui fiel ao delivery do Takko); para as noites de caracolzinho ou quando sextar era difícil e iríamos de petiscos, a cerveja da Dogma (recomendo a equilibradíssima Rejection to Oblivion II, que é maltada sem enjoar e amarga sem travar). Para a mesa, ah, aí a brincadeira era boa. Usei até manual, dois livros e um site: “What to Drink with What You Eat”, que indica bebidas (do destilado ao chá) a partir do prato e pratos para diferentes vinhos, um presente dado por Luiz Horta, um dos grandes autores sobre vinho em língua portuguesa; o guia anual de vinhos do Hugh Johnson e o site Matching Food and Wine da Fiona Beckett.

Quando um prato acha seu par perfeito na taça não é apenas que ele melhora — é formado na boca um terceiro sabor. Na cabeça de quem o sente, aposto, tem descarga de dopamina. É um prazer que eleva o ânimo e a alma e em mim, que levo esse tipo de assunto muito a sério, já causou arrepio e lágrimas nos olhos (pelo outro lado, também já chorei de frustração em restaurantes).

Por isso, mesmo que o prato principal seja um feijãozinho cotidiano, recomendo que se ache um par para ele. Não precisa ser nada complicado, pode ser uma limonada: a acidez do limão vai ajudar a limpar a gordura do feijão.

Esse casamento perfeito pode acontecer por contraste, como é o caso do feijãozinho acima, por semelhança (uma bebida doce para uma comida doce), ou ainda por região (um prato típico de um local vai bem com a bebida típica do mesmo lugar). A brincadeira é boa, há infinitas combinações. E ela traz, além de novos sabores, uma certa redenção para tempos tão difíceis.

SACA ESSA ROLHA

TOP 10 2020

Listo aqui os melhores vinhos que tomei no ano, roubando um pouco no jogo, porque alguns rótulos dividem posição

  1. Sol Tardana e Corbeau Blanc – Adoro brancos e neste ano me apaixonei pelos salinos. Esses dois me deixaram meio maluca, sem saber decidir qual amo mais
  2. Canopy Ganadero Garnacha – Ele tem mais corpo e mais textura do que se espera de um Garnacha. É rústico, mas ao mesmo tempo meio urbano/hipster. Uma delícia
  3. Bom Juiz Alentejano DOC – um dos primeiros que tomei aqui e o último pré-quarentena. É um vinho gostoso, volumoso, cheio de fruta
  4. Pét-Nat Vivente Glera – Totalmente entendo a febre do Pet-Nat, é uma delícia leve e envolvente para o verão. Prefiro os mais elegantes e esse aqui é todo perfeitinho
  5. Brigaldara Soave DOC 2018 – só está em quinto lugar para dar distância do pódio, mas segue o mesmo estilo salgado e é muito elegante. Recomendo com três exclamações!!!
  6. Font de la Figuera e Domaine Verret Bourgogne Côtes d’Auxerre Pinot Noir 2018 – Talvez os vinhos mais caros e complexos da lista. O primeiro você tem que juntar dinheiro para comprar, o segundo você tem que viajar e procurar fora. Mas vale. Vale todo e qualquer esforço
  7. Seival Sauvignon Blanc – Meu vinho trotskista de preferência, para quando se está duro mas ainda há o que comer e celebrar
  8. Bojador de Talha Branco 2018 – Afe que vinho bom! Foi meu favorito de 2019 (outra safra) e agora cá está ele com seu corpo, untuosidade, vale até com carne, melhor com porco
  9. Louis Roederer Brut Premier – foi com um corte clássico de uma maison célebre que eu entendi o que quer dizer “mousse”, um elemento importante para um bom Champagne — uma sensação de preenchimento total na boca por uma espécie de espuma ao mesmo tempo espessa e aerada, algo paradoxal e muito sensacional
  10. Rochapel e Latido de Sara – vinhos democráticos e alegres e, acima de tudo, deliciosos. Não é para pensar, é para celebrar mesmo: 2020 passou, estamos vivos!

Isabelle Moreira Lima é jornalista e editora executiva da Gama. Acompanha o mundo do vinho desde 2015, quando passou a treinar o olfato na tentativa de tornar-se um cão farejador

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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