Coluna do Fernando Luna: Desejar o impossível — Gama Revista
COLUNA

Fernando Luna

Desejar o impossível

Nesta “Antologia Profética”, versos desgraçadamente atuais sobre meu namoro com a Alessandra Ambrosio, a paz da câmera fechada no Zoom, a numerologia do 15 de novembro e a pista de dança como método de sobrevivência

29 de Novembro de 2021

O amor tem esta exigência: deseja o impossível & os cometas do coração

Roberto Piva, 1997

Eu também namorei a Alessandra Ambrosio.

Antes de rir de mim e do jogador de vôlei italiano, lembro que você já fez a mesmíssima coisa. Todo mundo passou por isso.

Ou, vá lá, todo mundo que um dia, sem esperar por um mínimo gesto encorajador que fosse, teve a ousadia de soltar a mão da borda e se aventurar nas águas fundas do amor – onde se deseja o impossível & os cometas do coração, como escreve Roberto Piva logo no início de seus “Ciclones”.

No meu caso, a Alessandra Ambrosio se chamava Kiki.

Na lista de chamada, A Kiki devia ser Cristina ou Cristiane, não lembro. A gente dividia a mesma turma no colégio, um casarão do século passado, agora já um casarão do século retrasado.

Era a quarta série do primário, hoje sabe-se-lá que ano do ensino fundamental. Eu tinha sete anos e Kiki foi minha primeira namorada. Gostava mais dela que de futebol – e ninguém gosta tanto de futebol quanto uma criança de sete anos.

Foi um relacionamento inesquecível e unilateral.

Ela jamais soube que eu era seu namorado, jamais me dirigiu uma palavra, jamais dividiu sequer um Frumelo comigo no recreio. Arruinou minha vida sem tomar conhecimento da minha existência.

(Em compensação, nunca me pediu R$ 4,3 milhões pra uma cirurgia cardíaca – é preciso pelo menos ter coração pra fazer uma cirurgia cardíaca.)

O problema foi que, quando vi Kiki pela primeira vez, ela vestia uma camiseta com um “S” vermelho bordado: o escudo do Saci. Era um dos dois times da escola nas disputas de pique-bandeira, que, aliás, deve virar esporte olímpico a qualquer momento – se breakdance faz parte dos jogos de Paris 24, por que não?

Aquilo parecia um convite irrecusável.

Prontamente, entrei pra equipe. Uma semana depois, meu mundo caiu. Descobri que Saci era o time feminino e que minha escola era experimental – por isso, deixava o aluno recém-chegado fazer suas escolhas esportivas sem qualquer constrangimento de gênero.

O bullying foi mais forte que o amor. Virei casaca, troquei o Saci pelo Coringa, e, afastado pelo “C” azul heteronormativo estampado no peito, perdi Kiki de vista.

Acho que no fim você consegue ver o que deseja

Louise Glück, 2006

Desligar a câmera de vídeo durante uma reunião virtual devia ser um direito trabalhista garantido por lei.

Nenhum adicional de insalubridade compensa encarar a própria imagem na tela do computador por oito horas diárias – já sabemos que videoconferência serve pra videoconferir nossa aparência, em vez de prestar atenção no que tão falando.

Não precisamos de terceira via. Precisamos de um Getúlio Vargas que saia da história, entre na vida digital e atualize a CLT.

Porque só existe uma coisa menos produtiva que uma reunião que poderia ser um e-mail: uma reunião virtual que poderia ser um e-mail. O sujeito já tava no computador, podia perfeitamente escrever o que queria sem aporrinhar ninguém, em vez de sair distribuindo invites por aí.

Nessas ocasiões, chega um momento em que não quero só desligar a câmera. Quero desligar a câmera, o microfone, o som, o cabo de energia, o ring light e o marcapasso. Só sobrevivi porque não uso marcapasso.

Prefiro um fim horroroso ao horror sem fim de uma reunião remota que não termina quando acaba. O assunto já foi exposto em toda sua insignificância, discutido em toda sua desimportância e todo mundo ali – fazendo hora extra no link, mal disfarçando a cara entediada em close.

Até comecei a sentir empatia por uma figura que há três meses divide comigo reuniões semanais. Empatia é pouco, virou simpatia mesmo. Durante todo esse tempo, mais de doze videoconferências, ela jamais ligou a câmera. Nem por um instante, nem pra dar bom dia.

Não bastasse isso, ainda tá usando óculos escuros na foto do seu avatar.

Agora compreendo que se trata de um ato de resistência. Sorria, você não está sendo filmado. Nada de apontar mais uma câmera pro próprio rosto, isso não. É uma batalha pessoal pelo direito ao esquecimento de si mesmo, nem que seja por uma reunião.

Não importa se atrás da câmera fechada a pessoa tá ensaiando dancinhas de TikTok na sala de casa. Talvez seja só minha imaginação, e ela apenas prefira fazer anotações sem ser observada. Como bem sabe a poeta Louise Glück, a gente acaba vendo o que deseja.

A felicidade insistiu em agitar-se dentro de ti

Roger Wolfe, 2014

Dia 15 de novembro é aniversário da República, do Flamengo e meu – não necessariamente nessa ordem.

A República não tem me dado muita alegria.

Já viu dias melhores, muito melhores, o que nem chega a ser vantagem diante do cataclisma geral da nação. Mas o dia é especial demais pra perder tempo com essa escumalha que se dedica a jogar sal em cima da democracia: pode até arruinar a República, ano que vem a gente resolve isso, só não encosta a mão no meu feriado.

O Flamengo tem me dado alguma alegria.

Ontem mesmo caprichou, quatro a zero fora o baile. Se ganhar a próxima final, compensa os dois campeonatos que declinou polidamente. De qualquer maneira, o Flamengo e eu sempre teremos Tóquio – em dezembro de 81, botou os ingleses na roda e fez aquele garoto de 11 anos pular em frente à tevê de madrugada. Nem o Renato Gaúcho é capaz de estragar isso.

O meu aniversário, em compensação, me deu uma cornucópia de alegria antes mesmo de começar.

A comemoração começou ontem, com uma festa-surpresa – e, também, como uma festa-surpresa. Sabe quando mesmo desconfiando que alguma coisa vai acontecer, você se surpreende quando acontece? Com a idade é um pouco assim: a gente tá vendo passar um dia depois do outro, mas acaba surpreso quando se dá conta de mais uma volta em torno do sol.

Pois aconteceu. De novo. Como já não é a primeira nem a segunda vez, eu poderia ter me acostumado. Diria até que eu deveria ter me acostumado: foram 51 vezes, caramba. Todo ano acontece, não por coincidência sempre no dia 15 de novembro. Normal. Mas os últimos 20 meses tiraram tudo do lugar e cobriram de estranheza o que era familiar.

Daí o espanto quando fui chegando, ouvi de longe a roda de samba, adivinhei alguns amigos só pela silhueta e ouvi o coro de parabéns.

Entendi cada palavra do Roger Wolfe – poeta inglês radicado na Espanha, ou melhor, poeta espanhol de origem inglesa, porque a pátria do poeta é sua língua –, cantando a felicidade e seus efeitos irresistíveis: desatar a correr dando gritos de alegria e mergulhar de cabeça na vida.

Nunca amar o que não vibra/ nunca crer no que não canta

Orides Fontela, 1996

Eu confesso: fui a uma festa.

Uma festa mesmo, não uma reuniãozinha com meia dúzia de amigos num parque público, mantendo a distância regulamentar de 2 metros. Não.

Dessa vez tinha lista na porta, bar, não apenas um como dois DJs e, principalmente, tinha uma pista de dança vibrando e cantando – como os versos potentes de Orides Fontela, direto de seu livro “Teia”.

Mea culpa, mea culpa, mea máxima culpa.

Pra me defender do meu próprio julgamento, tentei racionalizar. Mais de 92% da população da cidade de São Paulo já tá totalmente imunizada, não fica muito mais seguro que isso. E o aviso colado logo no portão de entrada era tranquilizador: máscara e comprovante de vacinação obrigatórios.

Além disso, a festa era numa área aberta.

Essa informação decisiva acelerou minhas sinapses no melhor estilo Nazaré confusa, combinando de maneira improvisada meus conhecimentos aleatórios de virologia e aerodinâmica. O cenário subitamente me pareceu tão ou mais seguro que almoçar num restaurante movimentado ou assistir o Grupo Corpo num teatro lotado – duas coisas que já fiz, sem me sentir um
negacionista.

Mesmo assim, deu um friozinho na barriga que eu não sentia numa festa desde que tinha 15 anos, quando toda noite era uma mistura de aventura e ansiedade – quase sempre, mais ansiedade que aventura.

Não quero nem fingir que a pandemia passou (não passou!), nem fingir que a situação não melhorou (viva o SUS!). Se piorar de novo, a gente recua; se melhorar ainda mais, prepara o carnaval. E me avisa assim que chegarem as doses de reforço.

Até lá, máscara, mãos limpas e canja de galinha não fazem mal a ninguém. Vamos com cuidado, mas sem cair num negacionismo às avessas.

Insistir em lavar as compras de mercado com álcool em gel, depois dos cientistas entenderem que isso não faz muito sentido, é mais ou menos como incorporar aquele soldado japonês que seguiu entrincheirado quase trinta anos depois do fim da Segunda Guerra.

Aos poucos, vamos saindo do bunker – literal e figurativamente. Entrar nele foi questão de sobrevivência. Sair, também.

Fernando Luna é jornalista, modéstia à parte. Foi diretor de projetos especiais da Rede Globo, diretor editorial da Editora Globo, diretor editorial e sócio da Trip e um monte de coisas na Editora Abril

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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