Coluna do Fernando Luna: Contra 2020 — Gama Revista
COLUNA

Fernando Luna

Contra 2020

Nesta Antologia Profética, versos desgraçadamente atuais sobre os heróis da resistência, a potência das coisas miúdas e das coisas infinitas, o nosso apocalipse-pastelão e a crise de abstinência de festas de final de ano

21 de Dezembro de 2020

“O SERTANEJO É, ANTES DE TUDO, UM FORTE”

Euclides da Cunha, 1902

Resistência. Quem chegou ao final de 2020 sabe bem o que é isso. A combinação de pandemia, crise econômica e desgoverno não é para os fracos.

Todo brasileiro, inclusive os mestiços neurastênicos do litoral, teve que incorporar um tanto da resiliência sertaneja pra aguentar o tranco.

Calhou deste final de ano me levar justamente pro sertão. Em vez do Polígono das Secas, dei de cara com um Triângulo da Resistência.

Seus três vértices são os municípios de Coruripe e União dos Palmares, em Alagoas, e Poço Redondo, em Sergipe. Cada um a apenas duzentos e poucos quilômetros do outro. Cada um resistindo à sua maneira.

Nos arrecifes do pontal de Coruripe, naufragou em 1556 o primeiro bispo do Brasil, dom Pero Fernandes Sardinha. Pra alegria dos Caetés, índios antropófagos, sobreviveu para alcançar a praia e virar comida da tribo. Um delivery de si mesmo, um iFood anticatequização.

Na serra de União dos Palmares, Zumbi liderou até 1695 o maior e mais conhecido quilombo do país. Seu nome virou sinônimo de luta contra escravidão e opressão. Se fez frente aos ataques da coroa portuguesa, vai passar por cima da investida bolsominion à Fundação Palmares.

Na caatinga de Poço Redondo, Lampião montou acampamento na grota de Angicos. A volante descobriu o esconderijo e armou a emboscada. Em 1938, quase vinte anos tocando o terror nos coronéis do sertão, o rei do cangaço perdeu a majestade – e a cabeça, exibida país afora como troféu.

Algum historiador precisa decifrar o que reúne numa região tão pequena tanta gente arretada.

E quem esticar um pouco mais o caminho, descendo em direção à Bahia, ainda chega noutro pólo de insubmissão: Canudos.

Euclides da Cunha foi o Homero da Troia de taipa dos jagunços. O fraseado barroco e científico de “Os Sertões” tem muita poesia. Taí “o/ ser/ta/ne/jo é an/tes/de/tu/do um/for/te”, um decassílabo perfeito disfarçado de prosa.

Onde quer que você esteja, na hora em que a respiração ficar mais pesada e o ar faltar, lembra que o sertão é dentro da gente. Resistência.

“HÁ SEMPRE UM COPO PARA UM HOMEM NAVEGAR”

Jorge de Lima, 1952

“Fazer 77 anos não é para amador”, disse meu pai agorinha mesmo, no dia do seu aniversário.

Ele nem é de se queixar, mas dessa vez se referia aos aborrecimentos que o tempo traz. Os físicos, costas incomodando e sinapses ariscas, e também os emocionais, saudade de quem já foi e um travo ao espiar o futuro.

Sempre melhor evitar discutir com o pai, ainda mais no aniversário. Mesmo assim, pensei comigo mesmo que talvez ele estivesse enganado, talvez fosse justamente o contrário – só amador pra dar conta de 77 anos.

Amador, afinal, é aquele que ama.

Um mero profissional da existência não aguenta o tranco, um cinzento burocrata de ser e de estar não sabe brincar nem desce pro play. Só amador segura essa barra que é gostar de viver.

Quem não ama alguma coisa nessa história cheia de som e fúria, qualquer coisa que seja, dá um jeito de antecipar a partida dessa pra uma melhor – ainda que siga zanzando por aí, sombra caminhante, um mau ator que grita e se debate pelo palco.

Quando digo amar qualquer coisa que seja, é mais ou menos isso aí mesmo: as coisas miúdas e as coisas infinitas.

Pode ser o pião de madeira que até hoje gira na lembrança, ou o neto mais novo exibindo a camisa do CRB pelas ruas de paralelepípedo de Penedo, sua cidade natal. A casa de infância, recebendo a brisa fresca do rio São Francisco lá embaixo, ou a medicina, sempre mais vocação do que profissão, mais o prazer de executar uma manobra cirúrgica melhor que os outros, do que ganha-pão.

Pode ser sua irmã mais velha lembrando de tirar a cebola do prato do caçula de 77 anos (caçula vai ser sempre caçula), ou a velha caneta Parker, presente dos pais quando completou o antigo primário. Uma jarra de suco de cajá colhido no quintal, ou a neta jogando altinho na praia da Barra de São Miguel.

Pião, neto, casa, rio, vocação, irmã, caneta, cajá, altinho.

Tudo isso é um copo de mar para um homem navegar, direto de ‘Invenção de Orfeu’, épico de seu conterrâneo, o alagoano Jorge de Lima.

É tão pouco e é tanto. Especialmente quando o mar está mexido.

“NÃO ERA ESTE O APOCALIPSE QUE EU SONHAVA”

José Paulo Paes, 1983

É dezembro e eu deveria cantarolar alegremente “um novo dia de um novo tempo que começou”.

Realmente o futuro já começou – começou mal.

Chegou como uma versão baixo orçamento do apocalipse. Nada de Sol negro, Lua de sangue, estrelas caindo do céu, sete anjos tocando sete trombetas, dragão com dez chifres, o Alfa e o Ômega.

Só conseguimos Eduardo Pazuello.

Não é inteiramente desprezível. A gestão do general da passiva e ministro da Saúde da ativa (talvez seja o contrário) vale uma praga bíblica. Começou com 14.817 mortos e já bateu a meta com 177 mil vítimas fatais de negacionismo, cloroquina e inépcia.

Ele acaba de inventar a fase 4 de pesquisa clínica – que testa a paciência da população, depois de estabelecidas a segurança e a eficácia do fármaco.

Seu programa nacional prevê o início da imunização apenas em março. Calma, gente. Sem afobação, sem pressa. O ano só começa depois do carnaval. Isso quando a pandemia não adia o carnaval.

“Calendário perplexo”, livro de José Paulo Paes, resume bem os desencontros da agenda nacional. O poeta usa datas mais ou menos comemorativas como mote. Nos versos de “15 de novembro”, glosa os tropeços da república, frequentes como nunca.

A desorganização deve reanimar o turismo: agora pacote de viagem completo inclui passagem, hospedagem, passeios – e vacina. Em vez de praia ou montanha, o dilema da temporada de férias é Pfizer ou Sputnik V.

O roteiro Pfizer Deslumbrante inclui guia brasileiro com especialização em infectologia e capinha de couro pra caderneta de vacinação. Depois da agulhada, tarde livre para conhecer as locações da série “The Crown”.

Quem escolher Sputnik V Maravilhoso vai curtir visita guiada a ambulatório com Atila Iamarino. Acomodação com vista pra Catedral de São Basílio, em quarto duplo pra ter alguém perto em caso de efeito adverso.

Se Inglaterra e Rússia não aceitarem turistas brasileiros por razões sanitárias, tenta a excursão Coronavac Inesquecível. All-inclusive, com passeio pelos bares da Vila Madalena e aglomeração na 25 de Março – tudo sem máscara, claro.

“VAI TER UMA FESTA/ QUE EU VOU DANÇAR/ ATÉ O SAPATO PEDIR PARA PARAR”

Chacal, 1971

“Aí eu paro/ tiro o sapato/ e danço o resto da vida”, arremata Chacal, num plot twist poético.

Eita. Devia ter dado um aviso de gatilho.

Não que os versos de “Rápido e rasteiro” mereçam alerta de conteúdo sensível, daqueles que algumas pessoas podem considerar ofensivo ou perturbador. Quer dizer, é conteúdo sensível, sim, no bom sentido.

O problema é falar de festa em plena pandemia. Insensibilidade minha.

São nove meses longe da farra. Siri na lata feelings. Siricutico pegando de jeito e dezembro jogando na cara: as comemorações de fim de ano vão ficar mesmo pro fim do ano que vem. Quase dá saudade da festa da firma. Quase.

A crise de abstinência de pistinha tem feito cada vez mais gente esticar a noção de quarentena flexibilizada. Sábado à noite tá um bloco de carnaval fora de época.

Praticamente um liberou geral, desde que a máscara esteja por perto. Não necessariamente cobrindo nariz e boca. Pelas fotos, ela funciona mais como um talismã. Basta carregar no queixo ou no bolso para afastar os maus vírus.

O sujeito começa a flexibilização parando de besuntar as compras com álcool gel. Quando se dá conta, tá quicando numa pista de dança, bebendo algo não identificado no copo de alguém que não conhece e tá louco pra conhecer.

Ah, mas a festa segue os protocolos de segurança.

Sei. Só que o único protocolo de segurança nesse caso é não fazer festa, não ir à festa, não passar na porta da festa. Fica em casa, se puder. Se não puder, pelo menos evita aglomeração. Os casos de covid voltaram a aumentar, os leitos de UTI lotando junto com as baladas.

Agora que as eleições passaram e ninguém precisa mais esconder o João Doria e nem o corona, São Paulo já recuou pra fase amarela de combate à doença. Outras cidades devem fazer o mesmo.

Ah, mas e as lições da sabedoria milenar daqueles latinos? Horácio, Sêneca, Marco Aurélio et caterva. Todos garantem que só importa o aqui e agora, dizem pra pensar o mínimo possível no amanhã, carpe diem e o escambau.

Bem, a expectativa de vida na Roma Antiga era de apenas 30 anos.

Fernando Luna é jornalista, modéstia à parte. Foi diretor de projetos especiais da Rede Globo, diretor editorial da Editora Globo, diretor editorial e sócio da Trip e um monte de coisas na Editora Abril

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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