Coluna Fernando Henrique: Meu bem — Gama Revista
COLUNA

Fernando Henrique

Meu bem

Como a arte me instigou a construir minha história, me fez desejar estar vivo

28 de Março de 2020

Aos 15 anos, ocupava o posto de office-boy na Leitor Recortes, de clipping, e entregava notícias sobre tudo e todos a assessorias de imprensa e a famosos. Falava alto e em bom som: “Eu faço entrega na casa de gente ‘conhecida’ ”. O ponto alto da fofoca no meu bairro era que eu entregava na casa da apresentadora Hebe, que morava no Morumbi. Nunca a encontrei ou ganhei um selinho, mas essa atividade me rendeu o carinhoso apelido de “famosinho da Casa Verde” na vizinhança, bairro periférico na Zona Norte de São Paulo. E, confesso, amava esse rótulo. Era 1997.

No ano seguinte, mudei de emprego para ser office-boy da Marcy Junqueira, da Pool, a agência de cultura mais cool da cidade. Feliz com a mudança, não entendia o que a empresa fazia de fato, mas lembro claramente de cinco mulheres que não paravam de comentar o tempo inteiro de exposição de arte na galeria X, no centro cultural Y, e que tinha de ligar para o jornalista Z para falar da artista W.

Pouco depois, estava habituado. Lia tudo o que saía sobre exposições e me transformei em um amante da arte. Marcy, a chefe, sempre me dava uma aula — “Fê, muito bem, mas lê este livro aqui”. Quando voltava à Casa Verde, contava tudo com o mesmo entusiasmo de quando ia à casa dos famosos, mas ninguém se interessava. Ninguém com quem eu convivia tinha ouvido falar de Arthur Barrio, Bispo do Rosário, Hélio Oiticica. De “famosinho da Casa Verde” virei o “viado retardado das artes”. Dessa vez gostei menos do apelido.

Eu sabia muito de muita coisa, só não sabia como ficar branco para ser escutado e trabalhar no circuito das artes

Em 2001, Marcy me incentivou a fazer faculdade. Pensei: “Surtou”. Eu pagava as contas de casa, minha mãe não trabalhava e meu pai tinha arrumado outra família. Mas de alguma maneira eu acreditava ser um dos que dariam certo e dizia a mim mesmo: “Vou fazer artes plásticas, tem tudo a ver comigo”. Ao saber do preço do curso na Faap, desisti. Rolaram um choque de realidade e uma conversa com minha mãe, que disse: “Arte? Você se acha branco? Depois que começou nesse emprego novo, perdeu a noção”.

Quando entrei na faculdade, saí do ninho e achei que podia voar sozinho. Outro sacode: era o negro do lugar. Não havia outro na faculdade, nas galerias ou nos centros culturais. Mudo de faculdade. Entre idas e vindas, eu estava ali também na luta do ganha-pão. Não era fácil. Precisava ter uma renda maior para dar conta do recado. Começo a tal rede de relações e finalmente decido ir a Paris.

Um sufoco. Sem dinheiro e sem passaporte europeu. Todo mundo me achou maluco. Ir à polícia sem ser detido era algo novo no meu pedaço. Saí com um passaporte nas mãos. Em 2007, tudo era novo de novo.

Em Paris, além de conhecer algumas das obras de arte mais importantes do mundo, percebi, com o respeito, o sentido da vida. Nessa época, me chamavam de monsieur DE OLIVEIRA (com um leve acento no A, bem francês). Passei no curso de língua francesa com nota máxima e entrei para a graduação em história da arte com bolsa de estudos na Sorbonne. Depois da graduação e de um estágio no Palais de Tokyo, maior museu de arte contemporânea da Europa, voltei ao Brasil acostumado a ser tratado como ser humano e com tristeza por deixar para trás o respeito e o vocativo de senhor.

De volta ao Brasil, não havia mercado para negros nas artes. Todos os (vários) espaços em que bati na porta em São Paulo eram 100% brancos — ainda não estava na moda ser negro e pouco se questionava a diversidade racial. Na Fiac (Feira Internacional de Arte Contemporânea), uma das feiras mais importantes de arte de Paris, várias etnias coabitavam porque o setor ali tinha entendido que exibir diversidade vende. O acesso e a oportunidade de todo mundo se enxergar ali mudavam tudo na comunicação com o público. Eu sabia muito de muita coisa, só não sabia como ficar branco para ser escutado e trabalhar no circuito das artes.

“Vamos a um leilão de arte com meus pais?”, me convida a Monica Charoux, neta do artista Lothar Charoux e minha vizinha em Pinheiros. Vi muita coisa naquela noite, de Waltércio Caldas a Degas, e um universo que me aproximava daquelas pessoas tão diferentes de mim: o amor pela arte. Naquele endereço chique dos Jardins, nunca haviam visto pessoas como eu, negro, sentado, de pernas cruzadas, para dar lance em uma obra. Eu estava fascinado pelos lances e os preços em escalada. Era uma maluquice, um universo paralelo.

Já no final, um Cícero Dias, litografia, 88/200, 64 x 51 centímetros, é anunciado. A obra intitulada Mulheres é um misto de amor e esperança, com um vai e vem de barcos no lado esquerdo que permite a alusão entre o ser, o estar e o movimentar-se, que me tocou. Cícero foi perseguido pelo Estado Novo e, com o apoio de Di Cavalcanti, foi para Paris, onde conheceu Henri Matisse, Fernand Léger e Pablo Picasso. Reinventou-se.

Dei um lance de R$ 210. Ouço uma voz do fundo da sala que propõe R$ 260. Rebati R$ 300 e comecei a chorar. Em 12 de dezembro deste ano, comemoro o décimo aniversário dessa obra de arte na minha parede.

Foram três décadas para perceber que o mundo é um bem, que carrega não só o valor monetário do poder de compra mas as fragilidades e a essência de um objeto que tem poder transformador. Essa obra me fez desejar estar vivo. Acreditar na arte me fez voltar a Paris e ser mestre pela Sorbonne em história da arte, depois em economia da cultura e a escrever outra tese para Projetos Culturais em Espaços Públicos. Fui instigado pela arte a construir minha história.

Fernando Henrique é jornalista e produtor cultural, mestre em Economia da Arte e em Projetos Culturais para Espaços Públicos pela Sorbonne, na França. É correspondente da CNN Brasil em Nova York

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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