Círculo de Poemas
Afinal, o que os poetas querem dizer?
O coordenador do Círculo de Poemas, Tarso de Melo, analisa “Memória”, da poeta e escritora pernambucana Micheliny Verunschk
A poesia brasileira vive um momento muito bonito: nunca antes tantas vozes tão diferentes estiveram ao alcance do público, em livros e plaquetes, em saraus e outros eventos, no mundo digital e em todos os espaços que os poetas dão um jeito de ocupar. Em meio a esses intensos fluxos poéticos, os leitores se perguntam: afinal, o que eles querem dizer com isso? Pois bem, esta coluna surge como um espaço mensal para conversar um pouco sobre poemas, abrindo caminhos para a leitura de algumas das obras mais significativas do nosso tempo e, claro, convidando cada leitora e cada leitor a encontrar sua própria forma de lidar com esse gênero. Se o poema é um presente que o poeta joga (fervendo!) no colo dos leitores, a única certeza que temos é de que há infinitas formas de desembrulhá-lo e usar suas palavras. Minha tarefa aqui é apontar algumas dessas formas. Todas as outras, fiquem à vontade para inventar.
Se o poema é um presente que o poeta joga (fervendo!) no colo dos leitores, a única certeza que temos é de que há infinitas formas de desembrulhá-lo
Para começar nossa aventura, um poema de Micheliny Verunschk:
Memória
O meu pai
possuía uma das asas
muito negra.
E dele herdei
estas estrelas na testa
e esta noite excessiva.
De minha mãe
lembro apenas
clarins e água
e que cantava canções de janeiro.
As pedras brancas
deslizam suaves
sobre a asa muito negra
que foi de meu pai.
E eis toda a lembrança
que tenho da pátria.
*
O poema acima faz parte de “Geografia Íntima do Deserto” (2003), livro de estreia da poeta pernambucana, que foi reeditado em 2024 pelo Círculo de Poemas num volume que reúne grande parte de sua produção poética até aqui. Nascida em 1972, Micheliny Verunschk é autora de diversos livros de poesia e ficção. Por seu romance mais recente, “Caminhando com os Mortos” (Companhia das Letras, 2023), ela acaba de receber o prêmio Oceanos.
Logo nos primeiros versos do poema somos tocados por imagens inusitadas, esvoaçantes: um pai que tem asas e um eu poético (vou me referir assim a essa voz que nos fala nos versos) que tem “estrelas na testa”. Na sequência, aparece a mãe e o que se guardou dela na lembrança foram “clarins e água/ e que cantava canções de janeiro”. Estamos dentro de um sonho, talvez, ou passeando entre memórias quase apagadas?
Desenhar essas imagens em que quase tudo escapa se tentamos agarrar com a razão, com a inteligência dura, é a maneira que a poeta encontra, de cara, para nos dizer que, dentro de nós, há dimensões fundamentais (o pai e a mãe como “toda a lembrança […] da pátria” e símbolos da nossa própria constituição) que não podemos captar e colocar nas gavetas mais bem organizadas da nossa consciência.
Reconhecer-se como fruto de algo que não conhecemos — nem conheceremos — completamente: somos filhos e filhas da improvável conjugação de vidas de que pouco lembramos/sabemos. E isso não nos fragiliza, mas, antes, nos liberta. A memória, no poema, é atravessada pelas ideias de liberdade e infinito: asas, estrelas, “noite excessiva”, água, canções, pedras deslizando. Tudo flui nos deslimites da memória. Afinal, o que chamamos de memória também é, em grande parte, invenção (ou como diz o verso precioso de Waly Salomão: “a memória é uma ilha de edição”).
Ao lidar com poemas como os de Micheliny Verunschk, temos que lembrar que os poetas gostam de desorganizar e reinventar nossa visão do mundo, o que é ainda mais forte em poemas que não seguem formas fixas e regulares (como métricas, rimas etc.). É preciso, então, mergulhar mais fundo para entender como a linguagem se articula para dizer o que quer dizer. Ou melhor: para fazer o que quer dizer. Por isso, uma das estratégias de poemas assim é fazer com que o leitor aceite que certas “anormalidades” podem soar “normais”. Em termos formais, o primeiro verso tem a função de causar espanto e debelar a “lógica” que exigiria, do poeta, ter que dizer “coisas normais”.
A grande jogada de poemas é fazer com que o leitor se desloque dos seus hábitos mentais para ampliar a sua percepção da realidade e de si próprio
É bem o que acontece no poema de Micheliny: depois de sermos apresentados a um pai que tem asas (e apenas uma delas é muito negra), estamos prontos para aceitar como “normal” que a herança seja recebida em “estrelas na testa” e “noite excessiva”; que no espaço da memória a mãe seja “clarins e água”; que, no presente, “pedras brancas/ deslizam suaves/ sobre a asa muito negra/ que foi de meu pai”. E, por fim, vai soar normal também que a ideia de “pátria”, sempre tão monumental, seja desarmada e reduzida a uma lembrança absolutamente livre, criativa e, por assim dizer, pessoal.
A grande jogada de poemas assim é fazer com que o leitor se desloque dos seus hábitos mentais (racionais, lógicos) para ampliar a sua percepção da realidade e, claro, de si próprio. Não é o caminho mais simples, porque somos treinados para reconhecer como “normal” apenas o que corresponde a explicações lógicas e demonstráveis. No mundo organizado pela racionalidade, pais não batem asas, mães não se confundem com “clarins e água”, mas sabemos que, na riqueza das nossas relações afetivas, as imagens do poema fazem todo o sentido. O que ele nos diz, a seu modo, é que somos bem mais complexos do que os dados inscritos na nossa carteira de identidade. Não somos?
- Geografia Íntima do Deserto: E outras paisagens reunidas
- Micheliny Verunschk
- Círculo de Poemas
- 280 páginas
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Tarso de Melo é poeta e editor. Coordena o Círculo de Poemas, coleção de poesia da editora Fósforo. Doutor em Filosofia do Direito pela USP, atualmente realiza pós-doutorado em teoria literária na UNICAMP. É autor de “As Formas Selvagens da Alegria” (Alpharrabio, 2022), entre outros livros.
Círculo de Poemas é a coleção de poesia e clube de assinatura da editora Fósforo, que lança duas publicações por mês de poetas das mais diferentes gerações, línguas e tendências. Toda semana, um poema da coleção é comentado pelo coordenador do Círculo, Tarso de Melo.
Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.